06 Julho 2017
“Era inevitável que se devesse investir um novo prefeito de uma função muito delicada e valiosa: elaborar uma leitura do Magistério que retorne ao impulso com que o Concílio Vaticano II restituiu autoridade à Igreja e à história da salvação que ela vive, aqui e agora.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua, em artigo publicado por blog Come Se Non, 05-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que aconteceu na cúpula da Congregação para a Doutrina da Fé deveria ser interpretado com categorias adequadas. Essa interpretação à queima-roupa não é fácil. É mais fácil captar motivos extrínsecos e ocasionais, para explicar simpatias e antipatias, projetos de reforma e projetos de restauração. Assim, é possível, com base nessas avaliações, falar de uma “oportunidade perdida”, ou de “escândalo”, ou de “buraco na água”, ou de “não decisão”. Eu acredito que é oportuno e prudente analisar a situação de acordo com um ângulo mais amplo. É o que eu tento esboçar aqui.
a) A primeira observação que podemos fazer é que, desde os primeiros meses depois da eleição de Francisco ao ministério petrino, o cardeal Müller assumiu posições, às vezes veladamente, às vezes explicitamente, conflitantes com as palavras do bispo de Roma. Essa tensão, depois de quatro anos, devia encontrar uma solução. E era difícil pensar que o papa pudesse confirmar um “ministro” que contradizia sistematicamente o que o papa afirmava. Obviamente, não é possível aqui fazer uma comparação entre Müller e Ladaria. Poder-se-ia afirmar que, justamente, a “superexposição do prefeito” protegeu o secretário, que pode gozar de uma condição particularmente “coberta”, que hoje ele pode valorizar.
b) São muitos os pontos sobre os quais Müller fez declarações ou concedeu entrevistas com uma perspectiva muito diferente da do papa: para fazer apenas uma pequena lista, lembro a “exigência de dar estruturação teológica ao papado” por parte da Congregação para a Doutrina da Fé; uma forma de “indiferença” para com o envolvimento de “leigos” e “leigas” na luta contra a pedofilia; uma leitura radicalmente “continuísta” da Amoris laetitia com a substancial exclusão de qualquer novidade. Sobre todos esses pontos, a lacuna entre abordagem papal e abordagem do prefeito da Congregação parecia ser, nos últimos anos, quase irremediável.
c) Mas, para além dessas divergências bastante importantes, pareceu que, em Müller, sobrevivia a uma leitura redutora do Magistério e da função da Congregação em seu interior. Müller parecia ligado a uma compreensão em que a “negação de autoridade do Magistério e da Congregação” correspondia a uma confirmação substancial do limite autorreferencial da Igreja. Sobre todos os temas “novos”, Müller parecia reagir de acordo com o estilo dos últimos 30 anos, dizendo “non possumus”. Ele parecia interpretar a função dele – e a do Magistério – como um baluarte contra qualquer mudança. Enquanto o Papa Francisco entende a função do Magistério e da Congregação como acompanhamento, discernimento e integração na mudança. A mudança é mediação de fidelidade.
d) Um tema exemplar, sobre o qual Müller se pronunciou primeiro como teólogo e depois como prefeito, é o diaconato feminino. Sobre esse assunto, ele desposou, sem distinção, uma exclusão radical, passando pela extensão ao diaconato da proibição estabelecida sob João Paulo II com a Ordinatio sacerdotalis. À posição de Müller, parece estranha até mesmo uma comissão de estudo histórica. Essa “exclusão de autoridade” – como salvaguarda de uma noção velha e rígida de ministério ordenado – também é típica de uma abordagem unilateral de compreensão do Magistério e da função da Congregação para a Doutrina da Fé.
e) Tudo isso, evidentemente, desgastou irremediavelmente as relações entre o prefeito e o papa. E era inevitável que se devesse investir um novo prefeito de uma função muito delicada e valiosa: elaborar uma leitura do Magistério que retorne ao impulso com que o Concílio Vaticano II restituiu autoridade à Igreja e à história da salvação que ela vive, aqui e agora. A um prefeito achatado demais sobre o “neoantimodernismo” dos anos 1980-2010, temos agora, substituído, um prefeito, pelo menos, disponível para entrar em uma lógica “não autorreferencial” de custódia do “depositum fidei”.
Entrar com autoridade na lógica do papa, estando ao seu lado, ler a mudança também como autêntica fidelidade e não apoiar ou endossar qualquer histerismo dissidente e reacionário, para a Congregação, seria uma passagem nada pequena no caminho estreito, mas certo, de uma retomada do Magistério positivo, do modo como foi sistematizado e sonhado pelo Concílio Vaticano II. É nessa direção que me parece que se move a investidura do Padre Ladaria.
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Müller substituído, Ladaria investido: motivos plausíveis de uma reviravolta. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU