09 Junho 2017
“O desenvolvimento de uma ‘crítica do mundo contemporâneo’ é um tema clássico da pastoral familiar, sobretudo nos dois últimos séculos; o desenvolvimento de uma ‘autocrítica’, no entanto, aparece como um ponto novo, qualificador, mas também inquietante.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 30-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O segundo capítulo da Amoris laetitia, intitulado “A realidade e os desafios das famílias” (nn. 31-57), nos acompanha em uma análise bastante articulada da realidade familiar contemporânea. A leitura do real torna-se princípio não só de “crítica do mundo”, mas também de “autocrítica eclesial”.
A Igreja se coloca diante do mundo em uma atitude lúcida e humilde. Nesse defrontamento, ela faz emergir aquilo que, do mundo, deve ser avaliado criticamente à luz da Palavra e aquilo que, diante do mundo e da Palavra de Deus, a Igreja deve reexaminar no seu próprio comportamento.
Essa passagem assume, de algum modo, um valor exemplar para a recepção do texto da Amoris laetitia. É evidente, de fato, que o desenvolvimento de uma “crítica do mundo contemporâneo” é um tema clássico da pastoral familiar, sobretudo nos dois últimos séculos; o desenvolvimento de uma “autocrítica”, no entanto, aparece como um ponto novo, qualificador, mas também inquietante.
Depois de décadas em que nos limitávamos, muito frequentemente, a uma severa crítica do mundo com instrumentos apologéticos, o exercício de uma autocrítica clarividente – com as consequências da reforma da disciplina e da conversão dos corações que ela determina e exige – parece ser um caminho muito mais exigente e também bastante impérvio.
Por isso, considero muito útil apresentar essas “novas exigências” na forma de um Decálogo de Autocrítica da Pastoral Familiar. O ponto central dessa preocupação é representado pelos parágrafos 35-37 da exortação apostólica.
Eis o texto que devemos considerar como fundamental para delinear essa saudável e necessária autocrítica:
35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimônio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas estejam mais bem preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.
Gostaria, agora, de tentar deduzir uma série de “dez palavras” para orientar adequadamente não só o lado “crítico”, mas também o “autocrítico”:
1. A estéril denúncia: “não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa” (AL 35).
2. A pretensão normativa: “De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade” (AL 35).
3. As razões e os motivos de uma escolha: é preciso “apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas estejam mais bem preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece” (AL 35).
4. Modos inadequados de expor as convicções e de tratar as pessoas: “às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica” (AL 36).
5. Desequilíbrio entre fim unitivo e fim procriativo: “muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação” (AL 36).
6. Um acompanhamento inadequado dos novos casais: “Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas” (AL 36).
7. Abstração e idealização teológica: “Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário” (AL 36).
8. A presunção de autossuficiência da doutrina: “Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas” (AL 37).
9. O matrimônio concebido mais como ato do que como relação: “Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira” (AL 37).
10. Não substituir, mas formar as consciências: “Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37).
Essas considerações abertas, que releem a história da pastoral familiar diante dos desafios do mundo contemporâneo, não escondem as exigências de conversão dos corações e as exigências de profunda reforma da disciplina. O anúncio da comunhão em Cristo, que se realiza no amor matrimonial e familiar, exige uma assunção dramática da tensão entre liberdade e autoridade, entre comunhão e separação, entre reconciliação e divisão.
A sociedade tardo-moderna descerra novas liberdades autênticas, mas propõe novas formas de escravidão insidiosa. Mas, ao sujeito individual, que pode se tornar estruturalmente autorreferencial, não pode ser contraposta uma doutrina marcada por autorreferencialidade eclesial. Ao possível delírio subjetivista do mundo, nunca se poderá opôr eficazmente um autoritarismo objetivista da Igreja.
Se a sociedade aberta é uma das condições da mais autêntica personalização do casal, do matrimônio e da família, então, uma releitura de toda a tradição eclesial, a partir das Escrituras, de acordo com uma composição mais lúcida de exigências institucionais e de exigências pessoais, será capaz de oferecer, até mesmo para as próximas gerações, uma síntese convincente do sentido da tradição matrimonial e da sua proponibilidade em vista de uma vida boa e feliz. Sem desespero e sem presunção, mas alimentando aquela esperança que é a verdadeira resposta à profecia cristã sobre o amor. Profecia que nunca se demonstrou tão exigente a ponto de ser ainda mais misericordiosa.
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Amoris laetitia: um decálogo de autocrítica da pastoral familiar. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU