19 Mai 2017
"Semelhante contradição, vista a olho nu e sentida na própria carne gera estranheza e irritação. A ira cria fundas raízes e vai se transformando em aberta revolta. O desfile das frutas que apodreciam nas águas sujas e indiferentes do rio, acrescido pela fome a roer-lhes o estômago, aviva a chaga do abandono e da carência dos trabalhadores. O lucro coexiste com o trabalho duro e mal pago, o desperdício de alimento contrasta com a miséria. Pouco a pouco, cresce e recrudesce a revolta, preparando-se para a vindima...", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, assessor das Pastorais Sociais.
John Steinbeck, escritor estadunidense, publicou em 1939 The Grapes of Wrath, sua principal obra (traduzida para o português como As Vinhas da Ira). Acabou recebendo o Prêmio Nobel de Literatura em 1962. O livro narra a saga de uma família que, juntamente com milhares de outras, vê-se obrigada a deixar o estado de Oklahoma, onde se expandia a monocultura do algodão, migrando em direção à Califórnia. Como de costume, o deslocamento em massa é repleto de surpresas e adversidades, ilusões e esperanças.
Cedo, porém, as ilusões se convertem desilusões. E as esperanças vão se diluindo uma a uma na trajetória desse grande movimento rumo ao oeste. Após uma viagem longa e cansativa, que cruza as areias do deserto, a família tem enormes dificuldades em manter-se unida. Os migrantes recéem-chegados à Califórnia habitam precários acampamentos, onde não faltam tensões e conflitos. Além disso, são constantemente transportados de um lado para outro em busca de trabalho. Este consiste, em geral, na colheita manual de frutas. O ganho é pouco e muita a carência.
Daí o nome do título As Vinhas da Ira que o autor dá ao livro! Ocorre que os grandes produtores da Califórnia, na tentativa de manter os preços elevados das frutas, costumavam jogar no rio boa quantidade delas. Aos trabalhadores imigrantes, mesmo vivendo na pobreza e na miséria, eram-lhes negadas as sobras, como ao pobre Lázaro do Evangelho, sentado à porta da casa onde o rico se banqueteava. Sequer tinham direito às migalhas da fartura. As necessidades de trabalho, casa e alimento mantinham-nos amarrados aos donos das terras.
Semelhante contradição, vista a olho nu e sentida na própria carne gera estranheza e irritação. A ira cria fundas raízes e vai se transformando em aberta revolta. O desfile das frutas que apodreciam nas águas sujas e indiferentes do rio, acrescido pela fome a roer-lhes o estômago, aviva a chaga do abandono e da carência dos trabalhadores. O lucro coexiste com o trabalho duro e mal pago, o desperdício de alimento contrasta com a miséria. Pouco a pouco, cresce e recrudesce a revolta, preparando-se para a vindima...
Ressalvando as devidas diferenças, também a ira dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros vem crescendo dia-a-dia. Com as reformas em curso, os direitos tão duramente conquistados como que se diluem nas águas turvas de um rio sem alma. Privatização, flexibilização e terceirização constituem apenas algumas expressões desse mecanismo perverso que faz com que os pobres paguem as dívidas contraídas pelos que habitam o pico da pirâmide social. Os serviços públicos, diante do teto estabelecido pela reforma da previdência, afundam numa longa crise. Faltam em não poucos lugares e, onde existem, são precários e seletivos. A especulação financeira desenfreada e a corrupção, por outro lado, agravam ainda mais o débito público, com suas implicações e consequências para a população de baixa renda. Como diz G. K. Chesterton “vistas da montanha (Planalto Central) as coisas parecem pequenas; vistas do vale (ou planície), são bem maiores”. É o que ocorre com os problemas sociais.
Até que ponto é possível suportar tão estridente contraste? Até que ponto os governantes podem abusar da paciência popular? A greve geral, acompanhada de outras manifestações populares, são sinais eloquentes de que a ira vem crescendo. Os trabalhadores e trabalhadores, no campo e na cidade, erguem a cabeça e saem às ruas e praças. A ira amadurece, convertendo-se em revolta generalizada. A vindima não pode estar distante. Como a espiga, a flor e o edifício, a força cresce e se robustece a partir do chão. E quando devidamente organizada, produz mobilização e mudança com vistas a novos horizontes.
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As vinhas da Ira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU