05 Mai 2017
Em sua assembleia, os bispos argentinos anunciaram que vão ouvir depoimentos de familiares de “vítimas da violência” da época da ditadura, em uma ação que eles chamam de “cultura do encontro”. Eles receberam o repúdio das Avós e Mães da Praça de Maio.
A reportagem é de Washington Uranga e publicada por Página/12, 04-05-2017. A tradução é de André Langer.
No contexto da assembleia da Conferência Episcopal Argentina, que acontece esta semana na localidade bonaerense de Pilar, os bispos católicos argentinos iniciaram o que eles mesmos chamam de “um tempo de reflexão sobre os acontecimentos ocorridos durante a última ditadura militar”. Quarenta e um anos depois do golpe cívico-militar que instaurou a ditadura mais sangrenta que já assolou a Argentina, os bispos iniciaram a “escuta de alguns depoimentos de familiares de pessoas que sofreram as consequências deste período marcado pela violência em diferentes âmbitos da sociedade”. Embora a lista dos convidados não tenha sido divulgada, sabe-se que nesta série de consultas estarão tanto familiares de desaparecidos pelo terrorismo de Estado como pessoas que reivindicam acusados e condenados pelos crimes de lesa humanidade.
Demarcado por aquilo que os bispos chamam de “cultura do encontro” a ação agora empreendida recebeu a imediata rejeição das Avós da Praça de Maio e das Mães da Praça de Maio, entidades fundadas por Estela de Carlotto e Nora Cortiñas, respectivamente. Foi precisamente a presidenta das Avós, depois de um encontro pessoal com o Papa Francisco, que foi a porta-voz da decisão adotada pelo Vaticano de abrir os arquivos da Igreja relacionados com a ditadura militar. Mas, o repúdio à proposta episcopal de “reconciliação” estendeu-se agora também a grupos como os Padres da Opção pelos Pobres e o Coletivo de Teologia da Libertação.
Mesmo que o episcopado católico tenha assinalado que a tarefa empreendida é “de longo prazo”, está claro que a iniciativa vinha sendo gestada há algum tempo na Conferência Episcopal, impulsionada por um grupo de bispos que defende a ideia da “verdade completa” e que, embora não o admita publicamente, subscreve a “teoria dos dois demônios” para explicar o que aconteceu durante a ditadura militar e o terrorismo de Estado. Este grupo de bispos, que aberta ou veladamente enfrentará a política de direitos humanos do kirchnerismo, sente que sua postura encontra agora um novo clima de época auspiciado pelo macrismo e no qual se sentem mais cômodos. Não é alheio a tudo isso o anúncio, também recente, da normalização do bispado castrense, com a nomeação do bispo Santiago Olivera.
Cabe perguntar pelos motivos que fizeram os bispos colocar agora este tema na agenda, quando a própria hierarquia evita pronunciar-se sobre questões candentes da realidade nacional, inclusive sobre situações de crise social diagnosticadas pelo próprio Observatório da UCA.
Não são poucos os bispos que ficaram chateados com a decisão do Papa Francisco de abrir os arquivos da Igreja relacionados com a ditadura. Embora não existam muitas expectativas sobre a informação que eles possam conter, há bispos que insistem em “cuidar da imagem da Igreja” e têm receios sobre o uso que se possa fazer, mesmo na Justiça, em relação ao que tais arquivos possam revelar. Entendem que se deve “preservar a imagem” não dos atuais bispos, mas de quem, tendo ocupado cargos de grande responsabilidade dentro do episcopado, como é o caso do arcebispo Adolfo Tortolo (presidente da CEA entre 1970 e 1976 e bispo castrense desde 1975) e do cardeal Francisco Primatesta (quatro vezes presidente da CEA), seja considerado cúmplice da ditadura militar.
Quanto aos arquivos, o episcopado disse que se trata de cerca de três mil cartas e documentos que são conservados no Episcopado, na Nunciatura Apostólica e na Santa Sé, “sobre pedidos feitos à Igreja para saber do paradeiro de detidos e desaparecidos, e reclamar gestões junto às autoridades militares da época”. Saindo em defesa de algumas críticas, o cardeal de Buenos Aires, Mario Poli, afirmou que “não temos medo dos arquivos. Nós os colocamos à disposição como um serviço à reconciliação, à justiça e à verdade”.
Embora haja divergências dentro do episcopado com Francisco e tais diferenças sejam administradas com reserva, também é verdade que os bispos procuram utilizar os pronunciamentos – que podem ser ambíguos – do Papa para o próprio benefício. Neste sentido, não admira que agora, para justificar a iniciativa com vistas à “reconciliação entre os argentinos” – de acordo com alguns –, se use como refrão a proposta do Papa sobre a “cultura do encontro”. Tinha Francisco conhecimento prévio da iniciativa que agora a hierarquia católica argentina está colocando em prática? Será difícil ter uma resposta precisa sobre este ponto.
O arcebispo Víctor Manuel Fernández, reitor da UCA e um dos teólogos mais próximos do Papa, escreveu, em um livro que acaba de ser publicado, que “Bergoglio sempre rejeitou as dialéticas do confronto, e seu ideal é o poliedro, que tem muitas facetas, muitíssimos lados, mas todos formando uma unidade carregada de matizes”. Segundo Fernández, “trata-se de recolher algo da experiência e da perspectiva do outro, mas isso não significa perder a minha identidade”, pois, “se não há identidades claras, não há conflito, mas também não há vida; tudo é casca vazia e marqueteira”. Por isso, “não é saudável fugir dos conflitos ou ignorá-los. É preciso aceitá-los e suportá-los, nunca escondê-los”.
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Argentina. Os bispos abriram o caminho para o fracasso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU