11 Março 2017
“O que nos falta não é diálogo, mas encontrar a palavra nesta sua força instauradora”, afirma Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 10-03-2017.
Eis o artigo.
Faz parte de uma certa leitura hegemônica da vida social moderna a ideia de que a razão se realiza necessariamente na vida social por meio da consolidação de um horizonte de diálogo.
Assim, uma sociedade cujas instituições e práticas são racionais seria necessariamente capaz de regular seus conflitos a partir da capacidade de exigir dos sujeitos a explicitação de suas razões para agir e a avaliação de tais ações a partir da procura do melhor argumento. Ou seja, a razão nos permitiria orientar nossas ações a partir do consenso possível produzido pela procura do melhor argumento.
Uma posição como esta, no entanto, só pode produzir niilismo e violência. Pode parecer paradoxal afirmar que a organização dos conflitos a partir da expectativa de diálogo produza necessariamente niilismo e violência, afinal aprendemos que o diálogo é exatamente o inverso da violência, que ele é seu melhor antídoto. Mas talvez devamos assumir que há uma violência implícita no diálogo.
O filósofo francês Jacques Derrida lembrava, com propriedade, que não há nada mais violento do que dizer: "posso ouvir suas considerações, posso levar em conta o que você tem a dizer, mas desde que você fale a minha língua".
Esta "minha língua" não é exatamente a língua que falo agora, mas algo mais determinante, a saber, o conjunto de valores, a gramática que organiza minha sintaxe, a compreensão do que é um enunciado válido ou não.
Para dialogar é necessário pressupor uma gramática comum. Mais do que isto. É necessário pressupor que todos os conflitos e todas as posições conflitantes farão sempre referência à mesma gramática comum.
No entanto, talvez o problema esteja exatamente neste ponto. Pois e se boa parte de nossos conflitos visassem exatamente mostrar que não há uma gramática comum no interior da vida social? Que quando nos digladiamos a respeito do que significa "liberdade", "justiça" não temos uma gramática comum na qual nos apoiarmos, pois estamos ligados, pois somos legatários de experiências históricas muito distintas?
Nossas sociedades não são só momentaneamente antagônicas. Não estamos simplesmente divididos e voltaremos a nos unir assim que as paixões se arrefecerem. Nossas sociedades são estruturalmente antagônicas e a divisão é sua verdade. Pois julgamos a partir da adesão a formas de vida e o que nos distingue são formas diferente de vida. Não queremos as mesmas coisas, não temos as mesmas histórias.
Neste ponto, há os que dirão que esta é a maior prova de que precisamos de sociedades baseadas no respeito a diferença. Sendo sociedades antagônicas, devemos neutralizar os combates e construir uma forma de convivência entre as diferenças.
Mas o que fazer quando temos aqueles que defendem a tortura, que exaltam ditaduras militares (e, por favor, que não venha pela enésima vez dizer: "mas, e Cuba?".
Há muitos de esquerda que não compactuam com regimes degenerados como o cubano) ou que naturalizam a espoliação social das mulheres? Há de se respeitar esta "diferença"? Mas você realmente acredita que podemos resolver tais diferenças por meio do diálogo?
Neste ponto, seria importante lembrar que nem todos os modos de circulação da linguagem se resumem ao diálogo e à comunicação.
A palavra que circula na experiência estética do poema, na experiência analítica da clínica e mesmo nas conversões de toda ordem não argumenta nem comunica. Ela instaura, ela mobiliza novos afetos e desativa antigos, ela reconstrói identificações, em suma, ela persuade com uma persuasão que não se resume a explicitação de argumentos, e isto vale também para os verdadeiros embates políticos.
O que nos falta não é diálogo, mas encontrar a palavra nesta sua força instauradora.
Triste é a sociedade que vê nesta persuasão a explosão da irracionalidade, pois ela conhece apenas um conceito de razão baseado em dicotomias que remetem, ao fim, a distinção metafísica entre o corpo e a alma. Um conceito pré-pascaliano de razão. Pois há de se lembrar de Pascal, para quem: "o coração conhece razões que a razão desconhece". A frase foi muito usada e gasta, mas a ideia era precisa. Compreender circuitos de afetos não é calar a razão, mas ampliá-la.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
É racional parar de dialogar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU