05 Março 2017
“A reforma da Igreja também se faz reformando os procedimentos com autoridade. Se o procedimento é entregue à disponibilidade dos sujeitos individuais, é fácil que o sistema se paralise. E que, em um sistema paralisado, prevaleçam, como sempre, os piores instintos. A resistência sobre os procedimentos pode ser de boa fé. Mas só uma normativa explícita diferente é capaz de contê-la substancialmente. E de permitir percursos comuns de integração e de debate.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 03-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A renúncia de Marie Collins da Comissão vaticana que se ocupa de combater a pedofilia na Igreja suscitou uma justa agitação. O secretário de Estado, Parolin, também a definiu como “uma maneira de sacudir a árvore”. Parece-me que se deve ler esse gesto a partir de uma explicação que a própria Collins anexou à sua decisão: ou seja, a dificuldade de obter escuta e respostas adequadas por parte de órgãos vaticanos, particularmente da Congregação para a Doutrina da Fé.
A esse respeito, parece-me fundamental aquilo que Marie Collins disse (na entrevista com Andrea Tornielli) a propósito dos “procedimentos”. Eis o texto, que apresenta abertamente o ponto-chave da questão.
A senhora falou de resistências internas. Acredita que a Cúria está resistindo às novas normas contra esse terrível fenômeno dos abusos de menores?
Não, não acho que haja resistências às normas ou a ações específicas contra a pedofilia. Trata-se, ao contrário, da sensação de que o trabalho da nossa comissão era considerado por alguns como uma interferência. Não sei se isso faz parte das resistências ao papa. Eu encontrei, sim, uma relutância geral a colaborar.
Pelo menos um caso específico, porém, a senhora citou, defendendo que foi a gota d’água: a falta de compromisso por parte da Congregação para a Doutrina da Fé para responder a todas as cartas das vítimas...
Eu não quero dar nomes de dicastérios. Mas esse, sim, é um caso específico. Se você é uma vítima, um sobrevivente, e escreve para contar a sua história pedindo ajuda e justiça, e vê que não lhe respondem, você é novamente ferido. Isso, sim, custa a entender.
No entanto, tanto Bento XVI quanto Francisco se encontraram com as vítimas, deram-lhe ouvidos, receberam-nas.
Francisco tinha dito “sim” à nossa recomendação. Nós pedíamos que se respondesse sempre e diretamente às vítimas individuais. O papa estava de acordo, mas alguns não quiseram seguir essa indicação.
Qual é a razão da recusa?
Eles têm o seu procedimento interno para gerir a correspondência, e esse procedimento não prevê que se responda diretamente às vítimas, uma tarefa que cabe aos bispos locais.
Como a senhora reagiu a essa notícia?
Eu não consegui suportar essa atitude para com as vítimas. Parece-me uma falta de respeito, e eu não posso ficar, as pessoas devem saber que existem pessoas que causam essas dificuldades.
Esse texto é muito interessante, porque evidencia como existe uma conexão decisiva entre “reforma da Igreja” e “cuidado com os procedimentos”. Marie Collins captou com muita lucidez uma contradição entre “afirmações de princípio” e “práticas adquiridas”.
Essa observação, que eu considero totalmente preciosa, que nos permite ampliar a discussão e avaliar, à luz desse episódio, o impacto abrangente que as reformas do Papa Francisco têm no plano da “recepção oficial”. A reação de Collins, que diz respeito a um tema delicado como a “luta contra a pedofilia”, imediatamente obteve um destaque e um interesse particulares. Mas o que foi denunciado por ela pode ser estendido, com grande facilidade, para a recepção pastoral e jurídica da Amoris laetitia, ao modo de avaliar os procedimentos no campo educativo e formativo, ao modo de considerar os procedimentos de iniciação ou de reconciliação.
O ponto sobre o qual eu gostaria de me deter, portanto, pode ser assim resumido: reforma da Igreja não é apenas “reforma da mentalidade”, mas também “reforma dos procedimentos”.
Marie Collins está preocupada com razão com uma Igreja que não responde. A Congregação para a Doutrina da Fé parece não perceber que “o modo da resposta” faz parte do seu conteúdo. E uma Congregação que diz: “Por costume, essas cartas (de denúncia de violências contra menores) são respondidas pelo bispo, não pela Congregação”, talvez faça uma afirmação sensata, mas que soa como prova insuportável de desinteresse e de indiferença.
Como é possível não notar, justamente na Congregação, essa diferença flagrante? Como é possível que um (outro) papa tenha dado a uma Comissão, em 2007, o poder de responder a partir de Roma a todas as questões que dizem respeito ao Vetus Ordo, passando por cima de todas as competências episcopais a respeito, e que, ao contrário, em matéria de pedofilia, o centro curial deixe aos bispos individuais o papel de dizer toda palavra de atenção e de conforto? Que prioridades e que esquecimentos esses procedimentos diferentes propõem?
É evidente que, neste caso, a primeira mentalidade que deve mudar é a dos procedimentos.
Do mesmo modo, se poderia notar uma mesma inadequação procedimental em todos aqueles que, diante da Amoris laetitia, receberam o seu texto apenas com a preocupação de “não tocar os procedimentos”. Na realidade, ligar a doutrina a um procedimento contingente é o modo mais fácil para torná-la incomunicável. O trabalho dos bispos no Sínodo e, depois, o texto final do Papa Francisco inovam, em vez disso, no plano de uma profunda renovação de procedimentos de acompanhamento, discernimento e reintegração.
Aqueles que permanecem ligados ao aut-aut comunhão/excomunhão – que é o procedimento típico com o qual a Igreja, em uma sociedade fechada, enfrenta as crises familiares – perdem toda a beleza do texto, a novidade da abordagem e a fidelidade à tradição. Mas o déficit é, mais uma vez, no nível de “rigidez procedimental”. E o paradoxo é que, hoje, são justamente os juristas – que deveriam ser mestres em procedimentos – que são particularmente rígidos e míopes a esse propósito.
Portanto, a questão levantada por Marie Collins vai muito além da luta muito importante contra a pedofilia na Igreja. Ela diz respeito a um déficit estrutural da Igreja contemporânea, que Francisco evidenciou muito claramente. E aqui é preciso fazer uma dupla consideração, que ajuda a compreender melhor também as diversas resistências ao pontificado e ao seu impulso reformador.
Por um lado, e seria ingênuo não se dar conta disto, há o número daqueles que se opõem aberta e conteudisticamente à reforma. E encontram todos os meios, procedimentais ou não, para obstruir a mudança e a conversão da Igreja.
Mas há também um certo número de sujeitos – em diversos níveis da hierarquia – que estão dispostos a receber os conteúdos novos, mas fazem isso sem nenhuma elasticidade no plano dos procedimentos.
Isso, evidentemente, exige que se considere que a reforma da Igreja também se faz reformando os procedimentos com autoridade. Se o procedimento é entregue à disponibilidade dos sujeitos individuais, é fácil que o sistema se paralise. E que, em um sistema paralisado, prevaleçam, como sempre, os piores instintos. A resistência sobre os procedimentos pode ser de boa fé. Mas só uma normativa explícita diferente é capaz de contê-la substancialmente. E de permitir percursos comuns de integração e de debate.
Deve-se acrescentar que uma certa prática “tuciorística” [de tuciorismo, doutrina moral segundo a qual deve-se seguir sempre a opção mais segura ou próxima da lei], que assume uma norma procedimental rígida como salvaguarda da “verdade” (e da instituição), corresponde a um modo de compreender a própria função do magistério que, há séculos, se interpreta como “magistério negativo”.
Essa grande tradição compreendeu e desenvolveu a função magisterial como “residual”, deixando um amplo campo de liberdade para outros sujeitos de autoridade. O magistério falava pouco e só sobre coisas importantes. No geral, calava-se. E isso era funcional para uma sociedade fechada e para uma Igreja que se identificava com a sociedade.
Hoje, há pelo menos um século, não é mais assim. O magistério fala muito, talvez até demais, e se espera que ele diga a sua opinião sobre quase tudo. Esse não é um fato indiscutível, mas deve ser levado em conta. Se, precisamente em um campo delicado como a “luta contra a pedofilia”, assume-se – também de boa fé – uma abordagem de “magistério negativo”, erra-se de alvo e priva-se o sujeito que sofreu a violência de uma palavra direta e imediata de conforto, sem tirar nada das inevitáveis competências locais, que, no entanto, precisamente nesse campo, nunca podem ser a única instância.
Os “procedimentos magisteriais” fazem parte da história do magistério. Hoje mais do que nunca. E não é por acaso que quem preside a Comissão que se ocupa dessa matéria é justamente o arcebispo de Boston: quem já viu o filme Spotlight sabe do que se trata e entendeu que, por trás dos casos de “pedofilia”, há um problema de compreensão do papel da autoridade da Igreja em relação aos direitos dos jovens batizados e à paridade de tratamento no campo civil.
Gostaria de encerrar com uma imagem. Assim como nos anos 1980, depois de quase 40 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, encontraram-se, nos atóis do Pacífico, fiéis soldados do imperador do Japão, que ainda defendiam o império do perigo estadunidense, assim também hoje, na Igreja, há funcionários isolados, fiéis à sua ideia de papado (mas não ao papa real) que, de boa fé, aplicam os procedimentos como se ainda estivéssemos em guerra com o mundo moderno, com os direitos das mulheres e das vítimas, com as pretensões dos imigrantes e dos coabitantes, com as confusões dos divorciados e dos homossexuais, com as alterações dos nascimentos e das mortes.
Na realidade, há 50 anos, fizemos as pazes com tudo isso. Não com as problemáticas espinhosas e árduas que são levantadas pelas novidades, mas com a pretensão de que um “procedimento romano” saiba, a priori, enquadrar e julgar todas as coisas. Reduzir todo fenômeno à sua estrutura ideal, esses procedimentos mantém a realidade longe e imunizam a Igreja de sentir sobre isso o cheiro do próprio povo.
Devemos acompanhar novamente os nossos fiéis soldados japoneses – não importa se com a capa magna ou com o colarinho romano, com terno e gravata ou com a máscara da vergonha – à bela realidade de uma Igreja capaz de acompanhar, discernir e integrar a todos. Precisamente a todos, sem exclusão: incluindo os soldados japoneses.
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A reforma da Igreja também envolve a reforma dos procedimentos eclesiais. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU