“Temos deixado em pedacinhos a cultura da igualdade”. Artigo de José María Castillo

Foto: José María Castillo

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

26 Janeiro 2017

“O resultado das últimas eleições nos Estados Unidos é a demonstração mais evidente de que, sem nos dar conta do que estamos fazendo, na realidade temos deixado em pedacinhos a “cultura da igualdade”. E, em seu lugar, estamos introduzindo a ‘cultura da desigualdade’”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, que também adverte: “Não sejamos ingênuos. O caso Trump não é assunto de direitas ou de esquerdas. Trata-se de algo muito mais profundo. É somente o exemplo eloquente de um futuro que nem sabemos onde tem suas raízes, nem podemos saber para onde nos conduz”. O artigo é publicado por Religión Digital, 24-01-2017. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Sabemos que o Papa Francisco disse: “Não gosto de me antecipar aos acontecimentos. Veremos o que Trump irá fazer. Mais uma vez, este papa foi discreto e prudente. Não sejamos “profetas de desgraças”, como sabiamente nos advertiu João XXIII. E assim deve ser. O que ocorre é que o recém-empossado presidente dos Estados Unidos da América já deu a cara suficientemente para deixar claro ao mundo inteiro não o que irá fazer, mas o que já fez.

E o que fez foi colocar em evidência que quase a metade dos norte-americanos – os milhões de eleitores que escolheram Trump – renunciaram (na prática, já que não sabemos se, em teoria, eram conscientes do que faziam) ao “princípio determinante” que inspirou a proclamação da Independência dos Estados Unidos, em 1º de julho de 1776.

Isto quer dizer que, vários anos antes das Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Assembleia Francesa de 26 de agosto de 1789, já nos Estados Unidos se fez a primeira formulação dos direitos do homem. O princípio de igualdade e de participação dos cidadãos ficou assim formulado, em embrião, mas também como ideal de uma nova sociedade e uma nova cultura. Foi o passo decisivo da sociedade submetida ao soberano à sociedade igualitária e democrática.

O que muita gente não sabe é que, nesta mudança, teve um papel importante o influxo positivo da religião. O conhecido estudo de Georg Jellinek, de 1895, apontou isto com clareza.

A ideia democrática, base da constituição da Igreja reformada, se desenvolveu em fins do século XVI na Inglaterra, e isto em primeiro lugar por obra de Roberto Brown e seus adeptos. Para este grupo, a Igreja devia se identificar com a Comunidade em uma comunhão de crentes, mediante um pacto com Deus e submetidos a Cristo. Além disso, reconheciam como norma diretora a Vontade da associação, ou seja, da maioria.

Assim, eram estabelecidas as bases de um ideal de igualdade em dignidade e direitos, que alcançaria sua plena formulação na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Desta forma, começou a se implantar, na sociedade moderna, o ideal da “cultura da igualdade”.

Levando em conta isto, o resultado das últimas eleições nos Estados Unidos é a demonstração mais evidente de que, sem nos dar conta do que estamos fazendo, na realidade temos deixado em pedacinhos a “cultura da igualdade”. E, em seu lugar, estamos introduzindo a “cultura da desigualdade”. O que significa o mesmo que dizer: se impôs, novamente, “a lei do mais forte”.

O Papa tem razão – insisto nisso – ao aconselhar discrição e vamos aguardar. Contudo, há coisas que não admitem espera. Há apenas alguns anos, a conhecida historiadora de Antiguidade, María Daraki, disse o seguinte: “A civilização nasceu sob a forma de um grande impulso histórico das técnicas. Coisa que pode confortar a fé do século das grandes realizações tecnológicas. Mas, este enorme salto adiante na história das técnicas provocou a primeira aparição de traços conhecidos desde a antiguidade: acirramento profundo das desigualdades econômicas, hierarquia social vertical, poder despótico.

Sendo assim as coisas, o fato é que, segundo a mesma María Daraky, o processo do qual surge a civilização demonstra que a evolução tecnológica e a evolução social podem se dissociar e, o que é mais grave, podem crescer em direções opostas: a “evolução tecnológica” como progresso, a “evolução social” como degradação.

E assim aconteceu. Até desembocar em um processo imparável de decomposição social que certamente, há alguns anos, não poderíamos imaginar. Por uma razão que se compreende na sequência. A tecnologia cresce de uma maneira imparável. Ninguém coloca em dúvida que o crescimento tecnológico nos traz incontáveis benefícios.

Mas, o que não advertimos é que o progresso tecnológico saiu de nossas mãos e já é imparável. Nem sabemos para onde vai, pois cresce em maior velocidade que o que dá de si a capacidade humana. Com uma consequência que dá medo: o crescimento tecnológico é inseparável do crescimento econômico. Ambos são como vasos comunicantes.

Isto significa dizer que o crescimento tecnológico é dirigido e controlado pelos magnatas da economia. Sendo assim, o presente e o futuro do mundo inteiro, ou seja, de todos nós, estão nas mãos de um número reduzido de magnatas, os grandes poderosos que manipulam a economia mundial. Tendo em conta que a paixão pelo dinheiro é mais forte e determinante que os melhores desejos de justiça, igualdade e fraternidade.

Não sejamos ingênuos. O caso Trump não é assunto de direitas ou de esquerdas. Trata-se de algo muito mais profundo. É somente o exemplo eloquente de um futuro que nem sabemos onde tem suas raízes, nem podemos saber para onde nos conduz.

Neste momento e nesta situação, atrevo-me a dizer que só o Evangelho de Jesus e a força de seu “projeto de vida” poderão potencializar a aspiração de justiça e igualdade que nos parece um sonho ou uma utopia. Certamente por isto, é naquilo que o Papa Francisco centrou seu ideal de vida e sua mensagem que está a força de atração que este homem simples exerce no mundo, sobretudo no mundo dos que mais sofrem e menos meios possuem para continuar vivendo.

Leia mais