11 Janeiro 2017
“A intolerância e a ausência de diálogo talvez sejam o efeito mais nefasto do conflagrado ambiente político e social atual. Tocados pelo sentimento de congregação próprio de fim de ano, e imbuídos do espírito democrático, nos valeremos deste nobre espaço para exibir reflexões e contribuições ao debate político-econômico. Preciosas e dissonantes reflexões, na contramão das opiniões exibidas em nossos artigos”, escrevem Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Belluzzo, economistas, em artigo publicado por CartaCapital, 11-01-2017.
Eis o artigo.
Entre tantos diálogos devastadores em suas sutilezas, o filme As Confissões, de Roberto Andò, nos oferece à meditação as gélidas sabedorias da dita ciência econômica.
O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Daniel Roché, personagem encarnado pelo ator francês Daniel Auteuil, marca uma reunião com os ministros das Finanças dos oito países mais poderosos do planeta, em um luxuoso hotel na Alemanha, no período de seu aniversário. Estão também no rol dos convidados uma escritora de livros infantis, um músico e... um monge trapista.
Antes de brindar os convivas na abertura do jantar, o diretor-gerente lembra John Maynard Keynes: a economia é uma ciência moral. Ela nos ensina que não somos deuses, mas humanos, prisioneiros da incerteza, das expectativas e, por isso, não conseguimos compreender todas as consequências de nossas ações.
Os ministros se entreolham, abalados em suas certezas, que entrariam em pânico depois de uma longa confissão de Roché ao monge. Ao pânico sucede-se a suspeita. Perigosíssimo suspeito que poderia saber do plano final, elaborado para terminar com todos os planos e impor a supremacia do saber econômico sobre a vida dos humanos de carne e osso. Pressionado, ameaçado, o monge resiste.
Nas cenas finais, o padre é submetido a uma teleconferência para sofrer os vitupérios de uma dama Senhora do Universo de Wall Street. “O senhor é uma ameaça à civilização.” Mansamente, o religioso retruca: “Temos ideias diferentes a respeito da civilização”.
A intolerância e a ausência de diálogo talvez sejam o efeito mais nefasto do conflagrado ambiente político e social atual. Tocados pelo sentimento de congregação próprio de fim de ano, e imbuídos do espírito democrático, nos valeremos deste nobre espaço para exibir reflexões e contribuições ao debate político-econômico. Preciosas e dissonantes reflexões, na contramão das opiniões exibidas em nossos artigos.
Iniciaremos pela polêmica figura de Geddel Vieira Lima, merecedor do destaque pelo meteórico protagonismo que assumiu em nossa República, após guindar seu imbróglio imobiliário ao status de questão de Estado, envolvendo três ministérios, a Advocacia-Geral da União e a Presidência da República na sua mediação.
Episódio que, nas palavras de Octávio Guedes, diretor de redação do jornal Extra, pode ter reduzido o presidente Temer a “corretor de luxo do Minha Casa Minha Vida do Geddel”.
Recentemente, o site Sensacionalista reuniu elucidativas interações do ex-ministro com o público, por meio de sua conta no Twitter. Não estamos apontando práticas idiossincráticas disseminadas na política nacional, como postar em 2010 “Na Bahia toda começa a ganhar força o voto DILMEL, Dilma e Geddel” ou “Minha candidata é Dilma, e ponto”, para posteriormente dedicar-se com fervor à sua deposição.
A questão revela-se muito mais profunda e pode emanar de uma visão talvez hedonista cirenaica do processo democrático. Ao ser interpelado, sempre via Twitter, sobre como “é a sensação de assumir um cargo do executivo sem voto popular”, Geddel respondeu: “Gostosa”.
Reflexão cuja profundidade só pode ser alcançada se complementada por outra anterior, também de sua lavra: “Não quero nem saber se o pau é (sic) dos outros, só sei que tou (sic) gozando rsrs”.
Valendo-se do mesmo Twitter, a apresentadora e jornalista da Globo News Monica Waldvogel também pôde expressar sua visão de democracia. Ao analisar a escolha, pelo voto popular, da maioria dos britânicos em abandonar a União Europeia, questionou: “Os entusiastas da democracia participativa ainda estão apegados às consultas populares ou já estão revendo o conceito?”
É desafiador e instigante pensar nas vantagens de um regime democrático que busque restringir a participação popular. Imaginamos que Waldvogel tenha buscado inspiração em Platão e seus reis-filósofos, o que só reafirma nossa admiração pelo padrão cultural do jornalismo brasileiro.
Ainda no âmbito da filosofia grega, agora aristotélica, Miriam Leitão, também apresentadora da Globo News, exibiu toda sua isenção jornalística e habilidade silogística ao comentar as vaias recebidas por Michel Temer na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro: “Vaias a Temer são por decisões tomadas por Dilma”. Horas depois, a manchete de seu artigo foi substituída por: “Vaias a Temer serão amenizadas quando economia melhorar”.
Enveredando pela crise econômica, mas sem abandonar os paradoxos, a partir da lógica de que a crise não é uma doença que necessitava de cura, mas, sim, a cura para os excessos, Samuel Pessoa comemorou estoicamente o sucesso do ajuste fiscal de 2015: “Em maio, eu fiquei superfeliz com a queda de salário real de 5%. Economista é um bicho meio ruim”.
A recessão em 2015 produziria o hiato no produto necessário para a recuperação econômica em 2016. Cresce a popularidade dos corifeus da Nova Teoria Dietética da Política Econômica. Essa nova visão advoga regimes de emagrecimento rápido para economias obesas, embora muitos trumpistas-populistas tenham dúvidas, certamente inconsistentes e improcedentes, a respeito dos riscos de anorexia.
Infelizmente, “a crise insiste em não ir embora”, nas palavras de Renata Lo Prete, que a percebe como um hóspede mal-educado. A economia brasileira é realmente prodigiosa, capaz de desafiar até a álgebra. Segundo a edição de 26 de junho do jornal Folha de S.Paulo: “Dependendo do setor, o faturamento diminui até 300% no período mais quente em relação à temporada de frio”.
Desencontros a respeito de porcentuais são compreensíveis em um ambiente intelectual de inovações algébricas. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, ofereceu sua contribuição ao introduzir a dialética do “caiu, mas subiu”. Por isso, sentenciou recentemente: “Nos últimos meses, tivemos a consolidação da recuperação da atividade industrial. Apesar de o indicador estar em queda em relação ao ano passado, está em franca recuperação”.
A depender do deputado Nelson Marquezelli, do Partido Trabalhista Brasileiro, os efeitos da crise econômica nos direitos sociais vão retroalimentar esse tipo de análise. Para o representante do povo: “Tem que cortar universidade. Quem pode pagar vai ter de pagar. Quem não tem dinheiro não faz universidade. Meus filhos vão pagar”.
Formação universitária tampouco é garantia. Em março, os promotores paulistas Cassio Conserino, José Carlos Blat e Fernando Henrique Araújo tornaram-se o assunto mais comentado entre os brasileiros nas redes sociais, não exatamente por solicitarem a prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas por uma passagem específica do pedido de prisão: “As atuais condutas do denunciado Luiz Inácio Lula da Silva, que outrora chegou a emocionar o País ao tomar posse como presidente da República em janeiro de 2003 (“o primeiro torneiro mecânico” a fazê-lo de forma honrosa e democrática), certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados”.
Apesar da vasta literatura a abordar a influência do pensamento de Georg Hegel, falecido em 1831, na obra de Karl Marx, nascido em 1818, tudo indica que os promotores tentavam referir-se a Friedrich Engels, coautor de diversas obras com Marx.
Há, no entanto, juristas que transitam sem inibição por diversos ramos do conhecimento. A doutora Janaína Paschoal demonstrou recentemente que seus conhecimentos em direito, orçamento público e geopolítica possuem o mesmo alcance: “Com a construção de uma base militar russa na Venezuela, uma posição firme do Brasil já não é só questão humanitária, mas de defesa.
Putin tem pouco mais de 60 anos, pode ser idoso, pela lei brasileira. Para fins políticos, é um adolescente. Imperialista, ninguém nega. Com uma base militar na Venezuela, Putin está a um passo de atacar o Brasil. Estão rindo? Estou falando sério. Bem típico: fazer a pessoa passar por burra, para que ela se cale. Mas comigo, não”. Para a sorte dos incautos, o País está repleto de gente que, mesmo passando por burra, não se cala.
Rosângela Muller, integrante do grupo de manifestantes que invadiu o Congresso Nacional esgoelando as palavras de ordem “essa é a casa do povo e nós exigimos intervenção militar”, o que para doutrinados no pensamento progressista pode parecer um contrassenso, ao ver ao lado do estandarte brasileiro a bandeira do Japão, com sua esfera vermelha que representa o sol, não se conteve e gravou um vídeo para as mídias sociais: “Nós nos deparamos com uma cena nojenta. Reparem aqui a nossa bandeira, com o símbolo vermelho, comunista. O que está acontecendo, esta será a nova bandeira do Brasil. Preparem-se brasileiros, você incauto, que ainda não se deu conta do que está acontecendo no Brasil, fique esperto”.
Quem está esperto há tempos é o engajado Lobão. Após quase retirar a Globo do ar, ao cantar “é Lula lá” no programa do Faustão em 1989, no dia da eleição, o autor de Essa Noite Não (Marcha a Ré em Paquetá), chamou o ex-presidente de psicopata em entrevista concedida à IstoÉ, em outubro.
Incontinente, afirmou ainda que Chico Buarque parece sofrer de “pressão baixa” e “comer capim”, e ressaltou que já havia alertado Lula para ter cuidado com “Gilberto Gil, porque ele era um braço da Warner Brothers” e “com a Paula Lavigne, que é assessora do José Serra”.
A sequência da entrevista indica a frustração ante seus desígnios para a cultura. Ao ser questionado sobre o que gosta, Lobão sentenciou: “Gosto de literatura portuguesa, de Eça de Queirós. Mas literatura brasileira...? Tento gostar de Machado de Assis desde que minha mãe me deu a coleção para escrever bem. Leio, mas odeio. A narrativa me irrita. Sensorialmente, quando leio Machado, me sinto na antessala da delegacia do Catete. Não é nada aconchegante. Tenho sensação similar quando entro no Facebook. Acho chato Guimarães Rosa. E Graciliano Ramos, são três delegacias do Catete. É um purgatório intelectual”.
Temos ideias diferentes sobre o purgatório.
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'As Confissões' e as gélidas sabedorias da dita ciência econômica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU