22 Novembro 2016
“Qual é a monstruosidade de Belo Monte? Na arquitetura desenhada nos corredores de Brasília, o público e o privado se misturam. A arquitetura financeira da obra, hoje estimada em 30 bilhões de reais, a maior parte financiada por recursos públicos do BNDES, está sendo investigada pela Operação Lava Jato. Mas a catástrofe humanitária causada por ela segue se desenrolando no Xingu com níveis cada vez maiores de desespero”, escreve Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, em artigo publicado por El País, 21-11-2016.
Eis o artigo.
– Vocês hoje vão pra casa de vocês. Quando vocês chegarem lá, vocês têm empregada, a comidinha de vocês tá lá, os filhos de vocês tão bem.
– Nós não.
Maria Francineide Ferreira dos Santos costumava segurar o remo. Hoje, empunha o microfone. Ela quase grita. É uma mulher no limite. Neste momento, a audiência pública já chega perto do fim no centro de convenções de Altamira, no Pará. Maria Francineide pressente que pode não haver conclusão, e o temor aumenta. Depois dali, ela, como tantos, não têm para onde voltar. É uma audiência pública para garantir que os ribeirinhos atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte tenham uma vida. Mas o que está em jogo, neste momento, é que a “vida” não é um conceito abstrato, a vida é.
Este é o grito de Maria Francineide. Enquanto para uns, os que têm casa para voltar, a vida pode ser discutida, e até filosofada, para Maria Francineide e outras centenas a vida urge porque a morte urge. O desespero de Maria Francineide é que aqueles que têm poder para decidir sobre a sua vida não entendem – ou fingem que não entendem – que a vida não é algo apenas sobre o que se fala, mas algo em movimento de morte.
Havia pelo menos dois tipos de pessoas reunidas naquela sexta-feira, 11 de novembro: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra; aqueles para quem a fome é. É nesta diferença que a tragédia se instala no auditório da cidade amazônica: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra têm o poder de decidir sobre a fome daqueles para quem a fome é.
Maria Francineide precisa que entendam. E o tom de sua voz se eleva um pouco mais:
– Tem autoridade aqui. Vocês sabem ler e escrever, eu não sei. Mas eu sei falar. E eu quero os meus direitos. Eu não tenho mais como pedir pra vocês: olhem o meu caso. Porque eu já falei tudo o que tinha pra falar. O que mais querem que eu peça pra vocês? Esmola? Eu não sou mendiga! Eu sou ribeirinha, eu sou pescadora. E eu quero os meus direitos como mulher, como cidadã. Me perdoem, mas é meu grito de socorro!
Maria Francineide faz na sua fala essa outra divisão: aqueles que dominam a palavra escrita e aqueles que contam com a palavra oral. Ela deixa explícito em qual palavra está o poder de decidir sobre os destinos. Aqueles que, como ela, contam a vida pela oralidade, com muita frequência não são contados na escrita. Sem ser contados, não contam. Quando o governo federal decidiu construir Belo Monte, eles não foram sequer ouvidos. Tampouco foram contemplados no mapa das consequências do barramento do rio Xingu. Sem estar na letra, era como se não existissem. Maria Francineide não lê nem escreve, mas sabe do que fala.
Neste momento, Maria Francineide se dirige principalmente a dois “que sabem ler e escrever”: Suely Araújo, a presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), e Amauri Daros, representante da Norte Energia, a empresa concessionária de Belo Monte. Eles estão ali chamados pela procuradora da República Thais Santi, que há anos denuncia as violações de direitos humanos e ambientais produzida pela construção de uma hidrelétrica conhecida na região como “Belo Monstro”.
Qual é a monstruosidade de Belo Monte? Na arquitetura desenhada nos corredores de Brasília, o público e o privado se misturam. A arquitetura financeira da obra, hoje estimada em 30 bilhões de reais, a maior parte financiada por recursos públicos do BNDES, está sendo investigada pela Operação Lava Jato. Mas a catástrofe humanitária causada por ela segue se desenrolando no Xingu com níveis cada vez maiores de desespero. O barramento do rio barrou a vida de Maria Francineide e de milhares de outros. O que ela grita – e é isso que precisa ser escutado – é que o barramento das vidas não pode ser tratado apenas como metáfora. O barramento barra. E aquele que quer viver é impedido de viver.
Cada ribeirinho que sobe ao palco e empunha o microfone carrega nos olhos aquela dureza que vem do desespero. Essa é uma sombra nova no olhar dos xinguanos. “Vou dizer para vocês o que é direito. Nós não queríamos a Norte Energia na nossa região. Hoje eu não consigo sustentar a minha família com a pesca. Hoje eu tou mendigando o pão. Sabe o que é mendigar o pão? Esperar que o vizinho dê um pouco de leite pra minha filha?”, diz Gilmar da Silva Gomes. Dá as costas para o público. Ele quer falar para os da palavra escrita: “Não tenho estudo. Uso o meu português, o meu modo de falar. Mas tou com vergonha de seus professores, acho que vocês precisam voltar pra escola um pouquinho. Sabem o que é o Xingu pra nós? É o nosso banco, é a nossa vida. Vocês estão ganhando bilhões. Como puderam botar f ogo nas nossas casas sem nem pagar indenização? Pelo amor de Deus, o que tá acontecendo? Querem botar esse monte de pai de família na cadeia?”.
A tensão é crescente, ela sobe junto com o tom de voz. Os atingidos por Belo Monte esperam muito da audiência pública.
Nenhuma das 26 ações movidas contra Belo Monte pelo Ministério Público Federal conseguiu suspender a obra da usina por mais do que alguns dias. Ou produzir reparação. Thais Santi decidiu então que era imperativo atravessar a barreira entre os mundos. Era preciso que a palavra escrita se encontrasse com a oral. Não como uma relação entre subalternos, como é tão comum nestes casos, mas como um diálogo de conhecimentos. Ainda no primeiro semestre, a procuradora embarcou num avião para São Paulo. Tinha uma conversa marcada com a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader.
Em um momento tão brutal do Brasil – e do mundo –, onde os muros dos condomínios se erguem ainda mais altos e os arames farpados ganham reforços, abriu-se ali uma das poucas janelas de 2016. A SBPC se colocou a serviço dos refugiados de Belo Monte para produzir um relatório que permitisse alcançar pelo menos dois objetivos: um diagnóstico preciso da destruição humana e ambiental gerada pela usina e uma proposta concreta para que os ribeirinhos possam recuperar seu modo de vida – e voltar a viver. “Ficar na universidade, de muros fechados, sem interferir na realidade, não vale nada”, posicionou-se Thais Santi, que antes de se tornar procuradora foi professora universitária na área do Direito.
Vinte e seis entre os melhores pesquisadores do país, de diversas áreas e diferentes universidades, alcançaram o Xingu para produzir um relatório com mais de 300 páginas. O grupo de trabalho foi coordenado por duas das mais notáveis antropólogas brasileiras: Manuela Carneiro da Cunha, professora aposentada da Universidade de São Paulo e professora emérita da Universidade de Chicago, e Sonia Magalhães, professora da Universidade Federal do Pará. O projeto foi apoiado pelo MPF e pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Ao abrir a audiência, Thais Santi disse: “Eu não sou daqui. Vim do Sul. Durante muito tempo da minha vida, eu vivi dentro de uma universidade. Ensinando a pensar um mundo diferente. Uma das coisas que aprendi é que é possível estar no mundo e não ser. É possível estar no rio e não ser. É possível estar no rio e não ser mais ribeirinho. É isso o que eu descobri aqui nesse processo que violenta. O MPF já denunciou o etnocídio dos indígenas, quando foram levados ao balcão da Norte Energia para consumir, e suas aldeias foram transformadas em periferias urbanas. Etnocídio aponta para a destruição da cultura, para a destruição sistemática dos modos de vida. Este país exige que se respeite o diferente. E Belo Monte não fez isso. Mas os ribeirinhos não têm sequer FUNAI. Estamos aqui, portanto, falando dos invisíveis de Belo Monte. Estamos falando de um vazio, de um buraco no processo de licenciamento de Belo Monte.
O ato de Thais, ao procurar a SBPC, provocou a primeira ruptura do barramento. Aqueles que, como disse Maria Francineide, “são autoridades, sabem ler e escrever”, atravessaram os muros: alcançaram o Xingu e usaram a palavra escrita não para violentar, mas para produzir conhecimento. A partir dos métodos da academia, mas também a partir da experiência acumulada pelos ribeirinhos. O relatório produzido materializa essa conversa entre saberes. Como na memória dos povos da floresta “aqueles que sabem ler e escrever”, as “autoridades”, escrevem para subjugá-los e expulsá-los, esta aproximação não acontece sem uma tensão inicial.
Antes da audiência pública, houve encontros entre pesquisadores, ribeirinhos e técnicos do IBAMA e da Agência Nacional de Águas (ANA), entre outros. Ao final de um dia de conversas difíceis, Jansen Zuanon, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e um dos principais estudiosos dos peixes da Amazônia, descia a escada para ir embora. Já era noite, mas o calor desta época do ano em Altamira produzia uma sensação de estufa. A pescadora Raimunda Gomes da Silva, que conhece os peixes do Xingu na intimidade do cotidiano e que, até Belo Monte ser construída, dependia deles para gerar renda na feira, interceptou-o. Quem conhece Raimunda sabe que não há como escapar se ela está decidida a esclarecer algum ponto. Era o caso. A mão negra de Raimunda pescou Jansen por um braço bem branco:
– Não tem professor com 15 universidades que sabe mais do que um colono. A gente não tem leitura, mas tem sabedoria. Escuta o que estou lhe dizendo: é nós que sustentamos essa elite. É a mão grossa que sustenta a mão fina.
Jansen a escutou com respeito. E respondeu:
– O mais bonito é que um não vive sem o outro. São duas visões de mundo.
Separaram-se. Um para o hotel, outra para a periferia de Altamira. Separaram-se um pouco mais juntos.
Mesmo antes de começar, a audiência pública precisou ser transferida às pressas para um espaço maior porque os ribeirinhos começaram a chegar às centenas, num número muito superior ao previsto. No final da manhã já passavam dos 800, segundo os organizadores, surpreendendo a própria procuradora. Vestidos com suas melhores roupas, alguns com sapatos maiores do que os pés. Ao longo das mais de 10 horas de embate, a dramaticidade foi crescendo. Tudo ali dizia respeito a qual era a palavra que tinha valor.
Desta vez, os atingidos por Belo Monte contavam com um aliado poderoso: as vozes da academia, a SBPC. Os “especialistas”, como são apresentados na mídia. Ocorreu então um fenômeno que seria fascinante, não fossem seus efeitos de catástrofe: a palavra dos documentos oficiais se mostrou impermeável à palavra de quem vive a vida descrita. Nem o amparo da SBPC foi suficiente para alterar, naquele primeiro momento, um valor encravado nas raízes do Brasil.
Um a um os ribeirinhos subiram ao palco, pegaram o microfone e contaram como o rio não é mais o mesmo rio, a água não é mais a mesma água, os peixes não são mais os mesmos peixes e a pesca já não é mais a mesma pesca. Jansen Zuanon e outros pesquisadores pegaram o microfone para apresentar a análise dos dados colhidos, mostrando que o rio não é mais o mesmo rio, a água não é mais a mesma água, os peixes não são mais os mesmos peixes e a pesca já não é mais a mesma pesca. E que tudo isso ainda poderá piorar muito. Mas os relatórios oficiais, conforme sublinharam o chefe do escritório do IBAMA em Altamira, Hugo Loss, e o representante da Norte Energia, Amauri Daros, afirmavam que o Xingu seguia sem alterações significativas após Belo Monte.
O deslocamento entre a vida vivida e a vida descrita nos documentos oficiais foi provocando um crescente mal-estar. Alguns fragmentos de discursos pinçados ao longo das horas ajudam a iluminar o impasse:
Jansen Zuanon (SBPC): “Vocês sabem muito mais do que eu venho aprendendo nos últimos anos (dirigindo-se aos ribeirinhos, antes de explicar que a variedade de peixes endêmicos na Volta Grande do Xingu é extraordinária e não se repete em nenhum outro lugar). Mas aquele Xingu da Volta Grande não vai mais existir. A recomposição do rio levará entre dois e cinco anos. Neste período, é preciso encontrar uma maneira de os pescadores sobreviverem”.
Amauri Daros (Norte Energia): “Até o momento a qualidade da água não mostrou grandes alterações”.
Gilmar Gomes (ribeirinho): “Ah, mas eu queria ter estudado na universidade deste homem!”.
Jansen (SBPC): “A vegetação suprimida foi enterrada. Vai apodrecer e tende a criar sérios problemas na qualidade da água. É possível prever uma nova onda de mortalidade de peixes em função da poluição orgânica gerada e da redução nos teores de oxigênio. Encontramos peixes muito magros, com infecções na boca. O peixe que ia nascer agora não vai aparecer daqui a dois anos. O rio não está fazendo o que fazia, o peixe não sabe o que fazer, o pescador não sabe o que fazer”.
Hugo Loss (IBAMA): “Há previsão de que a qualidade pode piorar, mas isso ainda não foi constatado”.
Giacomo Dall Acqua Shaffer (ribeirinho): “Eu não estudei, mas o governo me deu carteira de pescador. Desde oito anos pesco pra sobreviver, e eu vivia muito bem obrigado antes de a Norte Energia chegar aqui. E hoje eu tou passando fome. Mas se tem um culpado é o IBAMA. Não somos nós pescadores. Não é a Norte Energia. Falo com toda certeza: nós somos invisíveis pra vocês”.
Amauri (Norte Energia): “Vou me apropriar da expressão que a Thais (Santi) usa, a da invisibilidade. (E cita ações da empresa para a realocação dos ribeirinhos que, na sua opinião, deveriam ter sido levadas em conta na audiência.) Ficaram também invisíveis as questões relacionadas a todos os outros projetos que vamos implementar após o reassentamento. Ficou invisível também que há quatro anos se estuda o estoque pesqueiro. Para que a coisa não fique tão invisível assim gostaria de apresentar essas contribuições”.
Giacomo (ribeirinho): “De 2012 pra cá um furacão chamado Belo Monte acabou com tudo o que eu tinha. Acabou com o rio. Hoje não existe mais rio, existe a cacimba do Xingu. Se vocês dizem que nada mudou no rio, como é possível que a gente vivia uma vida tão folgada antes de Belo Monte e agora é obrigado a mendigar o pão, então? Não tenho nada com a sua pessoa (referindo-se à presidente do IBAMA). A senhora é o governo e meu problema é com essa instituição. Vi passar mais de cinco presidentes do IBAMA nos quatro anos e nenhum viu nossa situação. A senhora vai ser a sexta?
Suely Araújo (IBAMA): “Em seis meses de IBAMA é a segunda vez que estou aqui. Não estou despencando no tema. Toda obra como essa tem impactos seríssimos, que são mitigados nas condicionantes. Eu vi a quantidade de condicionantes com problemas e pedi ao pessoal para fazer um levantamento completo. Isso vai ser resolvido ponto a ponto. Os dados até agora não apontam a redução do volume dos peixes. Vamos tentar entender o que está acontecendo. Não estou dizendo que não diminuiu. Estou dizendo que, nos relatórios, pelo que me informaram até agora, não está dando isso”.
Giacomo (ribeirinho): “Vão me desculpar. Vocês são de Brasília, de São Paulo. Quem conhece o Xingu somos nós”.
Amauri (Norte Energia): “A discussão está tomando um rumo complicado. Faço um apelo à senhora... (referindo-se à procuradora).
Grito de um ribeirinho: “Na próxima vez vou trazer água pra eles beberem!”.
Jansen (SBPC): “Os ribeirinhos reclamam no dia, o relatório do IBAMA é de sete meses atrás. A fome não segue este ritmo. A burocracia segue. A fome é de todo dia. O ritmo da fome é em tempo real”.
Anoitece. E a ideia de que sairão dali sem nenhuma garantia vai transformando desespero em raiva. Antes de começar a falar, alguns batem com o punho ou a palma da mão na mesa “dos que sabem ler e escrever”. Fazem perguntas diretas, com o rosto bem perto da “autoridade”: “A senhora tem filhos?”. Ou: “Sabe o que é uma malhadeira?”. Um ribeirinho sobe no palco, pede ajuda para abrir uma rede de pesca toda esburacada.
– Vi que reclamou de cansaço porque tá o dia todo sentado aqui numa cadeira (referindo-se ao representante da Norte Energia). A gente pesca a noite todinha, porque o peixe diminuiu. E de dia a gente remenda esses buracos aqui da malhadeira. Sabem o que são estes buracos? É jacaré. O rio não tem mais oxigênio!
Entre tantas vozes alteradas ao longo das horas, houve um minuto de silêncio. Bel Juruna, a vice-cacique da Aldeia Mïratu, na Terra Indígena Paquiçamba, subiu ao palco. Pediu um minuto de silêncio para lembrar a morte de Jarliel Juruna. Em 26 de outubro, ele pescava um peixe ornamental chamado acari marrom. A Volta Grande do Xingu, onde vivia, é uma das mais afetadas pela construção da usina. Lá o rio está transtornado, e os peixes que antes se encontravam no raso já não estão. Para alcançá-los, Jarliel teria mergulhado em águas profundas. E lá mesmo, no fundo do Xingu que não é mais Xingu, o indígena parou de respirar. Tinha 20 anos. Os jurunas da Volta Grande culpam a Norte Energia pela morte de Jarliel. “Ele morreu afogado”, afirma Bel. “Agora, me digam, como um indígena vai morrer afogado?”
A interrogação fica sem resposta.
– Eu preciso de um sim!
Torcendo as mãos, ela de tempos em tempos olha pra um lado, olha para o outro, e repete: “Eu preciso de um sim”. A mulher pequena, sozinha, doente, passa o dia sentada no auditório esperando que, ao final, digam a ela que, sim, ela é o que é. Chama-se Maria Iolanda Pereira do Nascimento. Mais cedo ela também tinha pegado o microfone para dizer que não tem casa desde que a expulsaram da ilha onde vivia e, pra “não mexer em nada de ninguém”, está trabalhando na casa dos outros. Outra Maria lembrou no palco de uma dimensão da vida que se perdeu: “Desde que a Norte Energia chegou, acabou a alegria e o amor de todo mundo”.
Desde que os ribeirinhos começaram a ser expulsos das ilhas e beiradões do Xingu pela Norte Energia, para o enchimento do reservatório de Belo Monte, abriu-se um novo capítulo da palavra escrita como instrumento de opressão. Muitos foram coagidos a assinar, com o dedo, papéis que não eram capazes de ler, nos quais se comprometiam a deixar suas casas, ilhas e terras em troca de quantias em dinheiro ou de cartas de crédito, em valores considerados insuficientes – ou de uma casa num conjunto habitacional urbano que nada tinha a ver com seu modo de vida. No processo, os laços comunitários foram rompidos e a ligação com o rio, cortada. Estes foram os mais afortunados.
Outros não tiveram sua casa reconhecida como casa. E outros ainda sequer foram reconhecidos como impactados pela hidrelétrica, mesmo que já não consigam viver no rio depois do barramento. Alguns apenas tinham saído para pescar ou para resolver algo na cidade quando os funcionários da empresa passaram para fazer o cadastro. Foi o suficiente para não constarem nos registros oficiais. São os desaparecidos que todo mundo vê, mas que a Norte Energia não reconhece a existência. Muitos deles estão ali, na audiência, pedindo socorro no microfone.
A violência do processo provocou adoecimentos e misérias em grande escala na região de Altamira. Como todos que acompanham minimamente a implantação da hidrelétrica no Xingu sabem, o governo de Dilma Rousseff revolucionou a língua portuguesa ao mudar o sentido da palavra “condicionar”, para que a usina fosse construída e liberada para operação. Em vez de ser algo que condiciona o acontecimento, as condicionantes passaram a ser algo a ser cumprido depois do acontecido. Assim, a Licença de Operação da usina foi concedida, no final de 2015, sem que a totalidade das condicionantes tivesse sido cumprida.
Para entender bem: no caso de Belo Monte, as condicionantes não condicionaram. Este é um dos momentos em que os ribeirinhos costumam perguntar em qual universidade os técnicos do governo estudaram. Na audiência pública, a atual presidente do IBAMA, Suely Araújo, reconheceu que há problemas e afirmou que as condicionantes estão sendo revisadas uma a uma, para que as irregularidades sejam solucionadas “ponto a ponto”.
Com a denúncia sistemática das violências, iniciou-se um processo de retorno dos ribeirinhos ao rio. Mas o que deveria ter sido o começo de uma reparação, ainda que tardia, adicionou à palavra escrita uma nova camada de horror. Para fazer o reassentamento na área do reservatório, quem determinava – e ainda determina – quem é ribeirinho e quem não é ribeirinho é a Norte Energia. Em resumo: se já tinha sido possível expulsar os ribeirinhos do território em que viviam, tornou-se possível expulsá-los também do território de si, ao dizer que não são o que são. Assim, os ribeirinhos foram arrancados de dois territórios indissociáveis de pertencimento: o da vida e o da identidade. A audiência pública se deu em tempos de perdição no Xingu; o mesmo Xingu.
Movidos pelo desespero e pela fome, os ribeirinhos não reconhecidos como ribeirinhos passaram a voltar ao rio do jeito que conseguem. Colocam uma lona, abrem uma clareira de roça, agarram-se à terra. Na véspera da audiência, o gerente do IBAMA, Hugo Loss, encontrou Fernando da Silva, morador de uma ilha que sumiu. Fernando então agarrou-se à outra, o mais perto que pôde. Não tem mais casa, só uma lona onde amarra a rede para dormir. Já abriu roça e mostra orgulhoso sua macaxeira, seu maxixe, sua melancia. Um dos seus filhos desabafa: se quiserem que vá morar na cidade, que lhe deem uma metralhadora para que possa viver. O ribeirinho recebe então a orientação do representante do governo: “O procedimento agora é ir lá na DPU (Defensoria Pública da União) e juntar a documentação, aí eles vão instruir o processo”. O ribeirinho responde contando a sua história. As autoridades vão, e Fernando fica lá, agarrado.
Na DPU, os defensores enfrentam o desafio de encontrar documentos escritos sobre uma vida que não é documentada por escrito. E então demandar o reconhecimento pela Norte Energia de que o ribeirinho é ribeirinho. “Só falta chamar a Norte Energia de Sua Excelência”, desabafou a defensora Cíntia Collaço de Oliveira durante uma reunião dias antes. “Todo dia abrimos seis novos processos de pessoas que não foram reconhecidas.”
A Norte Energia diz “sim” ou “não”. Só tem direito ao reassentamento – e à possibilidade de recriar uma vida no Xingu – se a empresa disser “sim”. Se a empresa disser “não”, a alternativa é levar o caso à justiça. A questão é: como pessoas cuja segurança alimentar está ameaçada poderão esperar o tempo do judiciário no Brasil?
“Insegurança alimentar” é o nome elegante para fome.
Há poder maior do que aquele de dizer se uma pessoa é ou não é aquilo que é? Como uma empresa pode ter esse poder num empreendimento público? Essas interrogações atravessam a audiência.
A Norte Energia tem esse poder porque o governo federal permite que tenha esse poder. A concessionária de Belo Monte é composta em grande parte por fundos de pensão e empresas estatais e privadas do setor elétrico. Ela contratou o Consórcio Construtor Belo Monte, que ergueu a hidrelétrica, e é formado pelas principais empreiteiras do país, parte delas investigada pela Operação Lava Jato. É da Norte Energia, hoje, a prerrogativa de dar a palavra final, em documento escrito, determinando quem é e quem não é ribeirinho.
Em caso de “não”, é pela negação de si que ribeirinhos têm ingressado no mundo do papel. Essa experiência é tão violenta que as pessoas sobem ao palco do auditório com toda a papelada que conseguem reunir para dizer que são o que são, mesmo que não possam ler os documentos que mostram. “Eu era um ribeirinho”, diz Raimundo Berro Grosso, mostrando uma foto. “Eu era um pescador”, e mostra outra foto para as “autoridades”. “Quando surgiu o empreendimento, eu fui arrancado pela Norte Energia.” Gilmar grita: “Eu nasci e me criei no remo. Eu sou pescador, eu não sou pedreiro!”.
Diante desta violência, a SBPC construiu uma proposta junto com os atingidos por Belo Monte: a criação de um conselho de ribeirinhos. Quem dirá quem é será o único que pode dizer quem é: o próprio ribeirinho. E seus pares, como são aqueles que o conhecem, são também os únicos capazes de reconhecê-lo e ampará-lo na autodeclaração. “São os ribeirinhos que sabem quem são os ribeirinhos. É simples como isso”, manifestou-se a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha.
A proposta retoma o valor da palavra. Hoje, é o documento escrito, produzido pela empresa, que determina se uma experiência existiu ou não. A palavra é desencarnada. Com a criação do conselho, é a experiência, transmitida pela oralidade, que passa a dar carne, conteúdo, ao documento escrito. O valor da palavra, da transmissão oral de conhecimento e de reconhecimento, que estava deslocado, retornaria ao seu lugar no Xingu.
Mas, para que a palavra volte a ter valor, é preciso que o governo federal reconheça o conselho de ribeirinhos, que está sendo formado, como uma instância de poder. “Quem define ou não quem é ribeirinho não pode ser a empresa. Está é a preocupação central”, diz Francisco Nóbrega, defensor público da união e representante do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
A SBPC propõe um território ribeirinho, com a reocupação da terra por quem a ela pertence. As áreas não poderiam ser vendidas e haveria espaços de uso coletivo, respeitando os laços de parentesco e vizinhança já consolidados ao longo das décadas de convivência comunitária. A partir de um extenso trabalho de pesquisa coordenado pela antropóloga Ana de Francesco, chegou-se a um número de cerca de 300 famílias que, para poder voltar ao modo de vida ribeirinho, precisam retornar ao Xingu. Este número poderá ser maior ou menor, dependendo do que for confirmado pelo conselho de ribeirinhos. Para que isso se realize, é preciso uma decisão de Estado.
Hoje, o reassentamento em áreas destinadas pela Norte Energia produz vários conflitos. Há famílias que foram colocadas em terras que, antes de Belo Monte, eram ocupados por outras famílias. Estas, por sua vez, ficaram sem nada. Há famílias em que os membros foram espalhados pelo reservatório, impedindo a organização do trabalho e rompendo a rede de afetos. Há famílias ameaçadas pelos antigos proprietários, que venderam a terra à Norte Energia mas a querem de volta. Muitos destes ex-proprietários já entraram na justiça. Há quem foi assentado sobre pedras ou sobre pasto, em floresta degradada. Há quem divide o espaço com fazendeiros que mandam o gado avançar sobre a roça dos ribeirinhos. Os conflitos de terra na Amazônia paraense já deixaram um rastro de cadáveres. A possibilidade de que isso se repita deveria ser mais um motivo de urgência.
O ribeirinho Weides Alves Dutra é um dos que foi apartado da família expandida. Até Belo Monte se erguer no Xingu, eles eram 12 chefes de família que plantavam 12 roças em regime de mutirão, alternando as culturas. “Família Pessoa e Família Balão”, explica ele, referenciando-se em dois dos grandes ramos de ribeirinhos xinguanos. Hoje, Weides foi jogado numa pirambeira, povoada por pedras e tucum, um espinho que atravessa a carne e causa danos graves. Não há como plantar roça, não há como criar nada. E Weides está longe de todos. Para ir à cidade, precisa ultrapassar um banzeiro do rio. Não tem embarcação e depende de carona. Às vezes, ele e o piloto amargam até cinco horas para conseguir vencer as ondas e redemunhos. O ribeirinho não sabe nem o nome do lugar onde está. “Fica em frente à ilha da Taboca”, diz alguém. “Mas essa ilha afundou”, lembra o outro. Weides, pela primeira vez, sente-se perdido no Xingu.
Deucilene Gomes da Silva tem só 23 anos, um filho de oito. A mãe, Maria das Graças, está doente. Ela acampa na terra que a Norte Energia destinou à família. Fica embaixo da lona enquanto a casa é construída. Não tem medo de bicho nem da solidão. Há três semanas, porém, uma parente da antiga proprietária apareceu. Mandou parar com a construção da casa e sair de imediato porque a terra estava na justiça. “É muita incerteza. E se fazendeiro vem aqui com a polícia e a gente perde tudo o que já fez? A casa, a roça, tudo?”, questiona a ribeirinha. Deucilene seguiu com a construção da casa, seguiu plantando roça. Sabe que corre risco, mas escolhe entre desesperos.
Há dois fatos que precisam ser compreendidos: um aponta para o passado, outro para o futuro. Segundo a lei, para que Belo Monte fosse construída, era obrigatório que os atingidos tivessem o seu modo de vida assegurado antes de qualquer alteração no território. Não aconteceu. Em vez disso, Belo Monte produziu refugiados de seu próprio país. O que acontecer com estes homens e mulheres, adultos e crianças, vai determinar não só a vida deles, mas também a forma como o Brasil se relaciona com a Amazônia e com ameaça representada pela mudança climática. Só existe floresta em pé porque existem os povos da floresta. Só continuará existindo floresta em pé se continuarem existindo os povos da floresta.
O futuro é já. Para os ribeirinhos, porque muitos deles têm fome – e muitos adoeceram pela violência do processo de implantação da usina. Para o conjunto dos brasileiros, porque em tempos de aceleração, o futuro é um presente expandido em que a vida é corroída dia após dia. Como afirmou o professor Jansen Zuanon: “Eu também sou atingido por Belo Monte”. Neste sentido mais amplo, todos são atingidos por Belo Monte.
Diante da proposta do território ribeirinho, a presidente do IBAMA afirmou na audiência pública: “O que prometo fazer é levar o relatório (da SBPC) a Brasília para ser analisado. E então dar uma resposta”. O representante da Norte Energia disse: “Vejo com muita preocupação que não esteja se levando em conta todo o processo de licenciamento até agora. Há possibilidade de que tenha se vendido algo aqui que não caiba no licenciamento”. E aconselhou os ribeirinhos a terem cuidado com o que aplaudem.
O representante do Conselho Nacional de Direitos Humanos foi fortemente aplaudido ao dizer: “A necessidade de novas áreas para reassentamento é ponto pacífico. Quem dá as normas é o poder público. Mas a sensação é de que quem decide é a Norte Energia. É isso que não pode acontecer. É do Estado o dever de proteger todos os direitos humanos da população”.
Mais tarde, quando a audiência acabou, um ribeirinho comentou com outro na porta do salão de eventos: “Estou saindo decepcionado. Só veio empregado de Brasília. Ninguém que decide. Tem que trazer quem decide”.
E outro disse à presidente do IBAMA: “O tempo de vocês não é o mesmo que o nosso”.
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