11 Novembro 2016
Aos 80 anos, continua intelectualmente ativo, escrevendo e publicando. Antes de se aposentar, entre 1979 e 2001, Wolfgang Fritz Haug foi professor titular de Filosofia na Universidade de Berlim. Mas isto somente na teoria, pois o que ele fez foi reconverter a disciplina em "filosofia das práxis"; assim a transmissão desde um ponto de vista marxista e feminista (pela influência do movimento feminista alemão de Maio de 68, e de sua mulher, Frigga Haug, especialista na obra de Rosa Luxemburgo). Hoje, se empenha em continuar uma obra prima em 15 volumes, dos quais 10 já foram publicados: o "Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo", que conta com vários artigos traduzidos para o espanhol.
A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 10-11-2016.
Em 2016, "Lições Introdutórias à Teoria do Capital" também foi traduzido ao espanhol. Em sua vasta produção, "Publicidade e consumo: crítica da estética da mercadoria" também foi traduzido no México. Wolfgang Fritz Haug é afiliado ao Die Linke desde sua fundação em 2007 e é membro do Conselho Científico ATTAC. Fundou e dirigiu durante muitos anos a revista de filosofia e ciências sociais "Das Argument", que tentou seguir os passos de "Zeitschrift für sozialforschung”, publicação lançada por Max Horkheimer. O filósofo alemão participou do lançamento do último número da revista "Pasajes" (primavera de 2016), na Universidade de Valência (La Nau).
Você fundou e é o atual coeditor e diretor científico do “Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo”. Uma década atrás, dava conferências sobre o legado de Marx no Estado espanhol. Seu pensamento atual é o mesmo que em 2007?
A resposta é fácil. Temos um capitalismo absolutamente global pela primeira vez na história. E para os fundamentos da análise do capitalismo, não há teoria mais forte e que oriente-nos mais à verdade do que o marxismo. Mas em 2007 era diferente. Tinha-se uma impressão de que Marx, após o fim da União Soviética, era um pensador pré-totalitário e determinista. Eu queria ensinar outra coisa, a "surpresa" do verdadeiro Marx. O Marx que, assim como o filósofo e poeta Bertolt Brecht, considero como um "campo axiomático", ou seja, um Marx que constrói e estrutura teorias, que é um teórico.
Que aspecto de Karl Marx mais lhe interessa: o de economista, de filósofo, de agitador ou de jornalista? Em que aspecto você acredita ser o mais atual?
Minha proposta é outra. Pesquisei a fonte do pensamento de Marx, mas não as teorias já formuladas desde a origem. O "código-fonte" de seu pensamento. Isso me parece muito atual. Por exemplo, o que Marx - e não Hegel - entende por dialética. A interpretação que acredito ter descoberto não é a tradicional, nem a compartilhada pela maioria dos marxianos de hoje. A maior parte deles tem um conceito de dialética vinculado a Hegel. No entanto, apesar de Marx fazer várias referências a Hegel e venerá-lo, sua ideia é oposta. Um é idealista (Hegel) e o outro, materialista (Marx). O que isso significa? O que expliquei ontem em uma conferência de duas horas (risos). Enquanto a dialética hegeliana tem como base os conceitos, o essencial para Marx é entender os processos reais; em outros termos, o que está dentro da cabeça frente ao que que está fora, no mundo. Não tem como ser igual.
Tão fácil assim?
Estas fórmulas simples sempre são “secretas”, escondem algo que não se percebe à primeira vista. No epílogo da segunda edição de O Capital, Marx define dialética como considerar todo fenômeno no fluir de seu devir. A pergunta é, portanto, como se analisa o fluir do devir das coisas. E aqui entra a prática... Porque sem recorrer à prática torna-se impossível. É o que tento mostrar no livro "Lições Introdutórias à leitura de O Capital". Para Marx, a origem é o processo do devir, mas muitos marxianos ficaram na parte dos conceitos.
Por outro lado, sua tese de doutorado trata de Sartre e a construção do absurdo…
Lukács já fez uma crítica ao existencialismo, mas a minha é diferente. Responder a essa pergunta de maneira breve é impossível. A questão era como se construía a ideia do absurdo; na verdade, era uma tese "desconstrutiva", apesar de não bater de frente: toda discussão filosófica tem sempre algo de valor; e levar esse princípio em consideração é sempre muito útil. Se o marxismo perdeu de vista o indivíduo de carne e osso durante muito tempo? É a divisão entre deterministas, objetivistas, estruturalistas e, por outro lado, subjetivistas. A filosofia das práxis é o conjunto.
No último número da revista Pasajes (Universidade de Valência, primavera de 2016) você publica um artigo intitulado "A digitalização: uma mudança de época". Quando começa este processo totalizador, que tem como protagonista as novas tecnologias?
Comecei a estudar este tema no final dos anos 70, durante a primeira etapa da automatização da indústria alemã. Denominei-o "arqueologia do modo de produção eletrônica-automático". Esse era o termo na época. Trata-se, novamente, do processo do devir. Observava e dedicava muito esforço para estudar o processo de automatização, além de me perguntar o que viria a seguir. Nos anos 90, surgiu a Internet, com uma rapidez incrível. Então, no início do novo século, publiquei o primeiro volume da trilogia "Hightech-Kapitalismus”. O "Capitalismo de Alta Tecnologia" referia-se a todo o conjunto de tecnologias baseadas no computador. Mas a esquerda falava de "pós-fordismo". Meu contra-argumento era que Gramsci não falava de "pós-liberalismo" quando analisou o fordismo na prisão, mas sim da realidade de seu tempo: e nomeava-a. Pois bem, o nome da nova época, da força de produção central é o computador e todas as tecnologias que operam em torno dessa meta-máquina.
Atualmente, até mesmo o indivíduo é um elemento na soma de informações do "Big Data". Depois da grande recessão de 2008, publiquei o segundo volume -"Hightech-Kapitalismus in der Groben Krise” -, já que o capitalismo, assim como aconteceu com o fordismo em 1929, teve sua grande crise naquele ano. A pergunta que interessa é: O que vai acontecer agora? A guerra e o fascismo como naquela época? Pergunta-se sem ter resposta.
Além de Marx, você tem trabalhado a respeito das obras de Brecht, de Mariátegui, dos teóricos da Escola de Frankfurt... Que importância você atribui a Gramsci, tão citado na Espanha nos últimos anos?
Dediquei dez anos de minha vida à tradução de "Cadernos do Cárcere" ao alemão, em uma edição crítica de dez volumes. Um trabalho gigantesco, que fizemos basicamente em três pessoas. Foi como uma travessia no deserto do Saara. Atualmente há uma versão mais barata à venda (os dez livros por menos de cem euros), e continua sendo vendida. Já faz parte da cultura política da juventude alemã, estudantes e alguns sindicalistas. A filosofia das práxis marxistas - ou seja, não especulativa, como era o materialismo tradicional objetivista - está em Gramsci, mas já estava no filósofo marxista da primeira geração, Antonio Labriola (1843-1904). A práxis implica, sempre, em atividade humana. Bem, essas teses de Gramsci e Labriola partem de Marx, na verdade das “Teses sobre Feuerbach”, que é onde encontramos a essência. Pessoas como Althusser desprezavam essas ideias, pois consideravam-nas como ideias para intelectuais de biblioteca... Apesar de que naquela época Althusser não sabia muito sobre Marx. Mas eu não sou um intelectual de biblioteca, te garanto: trato de colocar as teorias de Marx (sobre o capital) à prova quanto à sua utilidade, ou não, para analisar a crise atual.
E quanto à categoria gramsciana de Hegemonia?
O Partido Socialista Unificado da República Democrática Alemã (RDA) esteve sob a tutela da União Soviética, assim como os estadunidenses destacaram suas forças na Alemanha Ocidental. Quando Walter Ulbricht, secretário geral do partido, durante os primeiros anos, quis levar uma política menos rígida, menos centralizada e "de cima para baixo" do que era característico dos Soviéticos, eles o depuseram. O partido dominante na RDA não precisava de Gramsci, ali se praticava o despotismo burocrático. A categoria "hegemonia", central para Antonio Gramsci, foi substituída pelo conceito de propaganda na RDA; mas quando as pessoas entendem que a propaganda não é a verdade, os efeitos são terríveis. Lênin também utiliza o conceito de hegemonia durante a Revolução Russa de 1905. Plejánov, um dos mestres filosóficos de Lênin, apesar de pertencer a outra tendência dentro do Partido Social Democrata Russo, tinha consciência que o fim de Atenas como poder independente na Antiguidade aconteceu quando se deixou de trabalhar "hegemonicamente" e passou a se trabalhar de maneira despótica. Nestes momentos seus aliados se foram, era o fim...Plejánov e Lênin sabiam bem disso. Atualmente as esquerdas da Europa, sem poder militar e burocrático, lutam por mudanças a partir de baixo, culturais e desde a raiz: não há outra possibilidade. Die Linke também faz uso dessas ideias (de hegemonia gramsciana). A Fundação Rosa Luxemburgo de Die Linke publica textos selecionados do filósofo italiano, utiliza-os em seus cursos e dão a eles grande relevância prática.
Que aspectos você considera aceitáveis do modelo econômico e político da RDA, que possam ser "resgatados" da propaganda anticomunista e do celebrado "fim da história"?
Em 1996, fundei o Berliner Institut für Kritische Theorie (INKRIT) para dar suporte ao Dicionário Crítico Histórico do Marxismo. Tomamos como emblema para o projeto o desenho de Picasso para o Congresso Internacional da Juventude Comunista, celebrado em Berlim, em que continham uma pomba no centro e no entorno, os povos, em unidade plural. Brecht também adotou este símbolo para seu teatro. Em suma, é algo que salvamos das ruínas. Todos os anos o Instituto organiza um congresso internacional em Berlim; em uma edição a pergunta foi o que permanece das experiências de planejamento centralizado, de cunho soviético, aplicados na RDA. É uma questão muito importante a ser estudada. Se houverem erros, é importante conhecê-los para que não se repitam. Mas agora é impossível tirar conclusões, terão de extraí-las de gerações futuras.
Mas, independentemente das investigações e a opinião das gerações futuras, qual é a sua análise sobre a experiência comunista na RDA?
Minha opinião, que não é somente pessoal, mas geralmente bastante aceita, é que as consequências podem ser vistas em Cuba e na China, onde ainda há algo que tenha surgido das revoluções do século passado. Este super-centralização administrativa não funcionou. É preciso fórmulas que incluam um controle social e deixem espaço para o movimento de atores concretos. Uma das questões centrais é como as inovações são feitas, porque é ontologicamente impossível planejá-las. Existe sempre um fator imprevisível no novo, e além disso, a novidade está na base de outras mudanças. Um planejamento geral, diretivo, previa com cinco ou seis anos de antecedência cada detalhe da produção na URSS. Mas, durante esses anos, poderia mudar tudo: novos materiais, formas de produção ou necessidades. Em resumo, este era um método que já se aplicava no Egito há 4.000 anos atrás, e eles tampouco sabiam previamente se a colheita seria boa ou não.
Que “alternativas” você propõe?
Por exemplo, a tecnologia digital seria um campo a ser trabalhado, pois não requer um centro e seria possível replanejar a cada momento, quase exatamente quando surgissem novas possibilidades. Além disso, se opera em rede: cada terminal é co-central com as demais. Para ele a tecnologia é ideal, mesmo que também sirva para todo tipo de "trumpismos". A Internet certamente não é o que se prometia, mas no momento é o meio idôneo para o autogoverno de toda uma sociedade. Ou seja, tudo depende dos conteúdos e do uso que se dá.
Os filósofos geralmente propõem reflexões de caráter geral, em uma sociedade cada vez mais especializada e segmentada…
Com certa ironia, chamam os filósofos de "generalistas". Mas olhe, Nietzsche dizia que os filósofos nutrem-se da filosofia comum como os vermes, do cadáver. Porque quem é filósofo? Tem gente muito simples, sem qualquer título acadêmico, que reflete sobre os problemas. Gramsci afirma que, de certo modo, todos somos filósofos porque elaboramos nossos pensamentos. Mas acontece que alguém que prepara apenas sua comida não é considerado cozinheiro. Falamos, por isso, na profissionalização da Filosofia. Há muitos filósofos que se nutrem de filosofias mortas, que estão somente nos livros e nos tratados. Por outro lado, há quem tente estudar o mundo tal como ele se apresenta hoje, utilizando também o que já foi pensado por outros filósofos antes... Porque também estudamos os mestres do passado.
Por último, há algum filósofo que pareça particularmente interessante para você?
Não vejo um grande filósofo, mas sim do cotidiano e com grande furor midiático. Você assiste a eles e aprende algo, mas não encontra uma reflexão sistemática. Além disso, atualmente há pouca filosofia marxista que mereça esse título; poderia ser outra, sem que nos ensine a analisar o conjunto das relações sociais e com a natureza... É isso que o materialismo histórico dialético faz. Aprendemos e temos de continuar aprendendo sobre os ecologistas, os avanços das ciências, da linguística, da psicanálise. Temos de incorporá-los. Somos aprendizes por toda a vida.
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“O fundamental para Marx é entender os processos reais, o que está no mundo”. Entrevista com o filósofo Wolfgang Fritz Haug, editor do “Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU