19 Outubro 2016
"A direção em que estamos indo é a de um governo ao estilo Facebook. Os ministros decidiram alterar as configurações-padrão dos controles públicos de privacidade para que as informações pessoais dos indivíduos sejam compartilhadas, refletindo, contestam eles, uma mudança na sociedade no sentido de uma maior abertura. Eles estão em dívida com a ideia de que, através da coleta de dados dos cidadãos, poderão remodelar o Estado para o bem comum", escrevem a equipe de The Guardian em editorial publicado pelo próprio jornal, 16-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o editorial.
Na semana passada, os ministros começaram a dar os primeiros passos no sentido de suspender os direitos de privacidade dos cidadãos ingleses. Com pouco alarde, o Projeto de Lei da Economia Digital (Digital Economy Bill) contou com as suas primeiras sessões no parlamento e, embora a proposta legislativa contenha algumas medidas que são bem-vindas – como a criação de um direito legal a velocidades mínimas de downloads na internet –, a grande mudança indesejável é que os dados pessoais do público serão compartilhados entre os departamentos sem salvaguardas especificadas. Se o projeto se tornar lei, não importará se os dados foram coletados para um motivo e acabam sendo usados para um outro. Os departamentos governamentais poderão reunir dados recolhidos sem ter de pôr em prática proteções robustas de privacidade. Uma tal abordagem convida os órgãos públicos a imitarem a prática de dados livres disponíveis a todo mundo, como ocorre no setor privado. Já nos encontramos na metade deste caminho. Na semana passada, verificou-se que detalhes de crianças individuais disponíveis no banco de dados nacional da Inglaterra e País de Gales foram passadas para o Ministério do Interior com finalidades imigratórias horas depois que os ministros disseram que o mesmo não estava acontecendo.
O pensamento é que, diante da possibilidade de um Estado todo-poderoso a limitar as liberdades civis, mais vidas serão corroídas pela erosão da autoridade do que pela sua extensão. O governo aponta para o sucesso de mapear famílias problemáticas e diz que o compartilhamento de dados ajuda a melhorar a situação dos lares em situação de pobreza. No entanto, este projeto de lei é o sintoma de um credo perigosamente antiliberal. Há a ideia de que a ciência de dados irá transformar a governança: que, ao colher vastas quantidades de dados pessoais dos cidadãos, os políticos poderão identificar soluções para os problemas da sociedade. Tal objetivo não será feito. Em vez disso, uma política nesses moldes irá aparelhar um Estado arrogante com argumentos para justificar escolhas ideológicas. Em geral, a ciência de dados é apenas uma alquimia de informações. Vimos o que aconteceu quando os dados sugeriram que uma mãe solteira em York vinha reivindicando benefícios sociais de forma fraudulenta, pois estaria morando com Joseph Rowntree, o filantropo quaker falecido em 1925. Ela morava em uma propriedade fornecida pela Joseph Rowntree Housing Trust, hoje uma associação de habitação. Com o corte em seu benefício social, a mãe se viu forçada a depender de um banco de alimentos e precisou recorrer. Como o Cardeal Richelieu disse tempos atrás: “Se me derem seis linhas escritas pela mão do mais honesto dos homens, encontrarei algo nelas que irá enforcá-lo”.
Numa época de cidadãos merecedores e cidadãos indignos, juízos terão de ser feitos em torno da divisão dos recursos. Mas essa virtude deve ser atribuída por legisladores que podem criar normas decidindo-se sobre o quanto de privacidade a que o público tem direito? E se os conselhos locais decidissem revogar uma autorização de estacionamento residencial pelo fato de eles terem acesso à sua carteira de habilitação? Onde está o debate sobre os planos do Ministério do Interior para construir uma imagem do comportamento pessoal, executando algoritmos automatizados em conjuntos de dados em massa – que poderiam incluir registros de passaporte e registros da polícia? Neste novo campo de batalha, quem está lutando pelos interesses de privacidade no sistema democrático? Dado que os ministros não explicitaram as salvaguardas de dados, ninguém pode dar respostas ao público.
A direção em que estamos indo é a de um governo ao estilo Facebook. Os ministros decidiram alterar as configurações-padrão dos controles públicos de privacidade para que as informações pessoais dos indivíduos sejam compartilhadas, refletindo, contestam eles, uma mudança na sociedade no sentido de uma maior abertura. Eles estão em dívida com a ideia de que, através da coleta de dados dos cidadãos, poderão remodelar o Estado para o bem comum. Neste mundo, os eleitores não são consumidores de serviços públicos. Os dados pessoais são de propriedade do cidadão. Não são para o governo decidir se eles podem ser reaproveitados sem um consentimento informado – lição aparentemente ignorada apesar da derrota nos planos de compartilhar registros médicos. Há uma confusão sobre quem pode acumular e manipular estes dados na esfera pública e privada. A saída da Inglaterra da União Europeia complica isso, uma vez que não sabemos se o novo regime de proteção de dados da UE estará em vigor quando o projeto de lei de economia digital supostamente virar lei. Os ministros dizem que a transparência e a confiança em dados públicos terão de caminhar de mãos dadas. Isso soa vazio. O Whitehall [centro administrativo inglês] nem sequer recolhe ou analisa o seu próprio desempenho na proteção das informações. No mês passado, o Departamento de Auditoria Nacional apontou 9 mil violações de dados pessoais entre os vários escritórios. Os ministros precisam parar com este projeto de lei e substituí-lo por um equilíbrio melhor entre as necessidades do governo e a privacidade dos cidadãos.
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Compartilhamento de dados: a privacidade dos cidadãos está sendo corroída, afirma editorial do jornal The Guardian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU