06 Outubro 2016
Identificação da TI Panambi-Lagoa Rica, do povo Guarani Kaiowá (MS), aconteceu em 2011 e foi anulada essa semana por sentença de juiz federal em Dourados, com base na tese do marco temporal. Decisão é passível de recurso.
A aplicação da tese do marco temporal em processos judiciais contra demarcações de Terras Indígenas faz novas vítimas: os Guarani Kaiowá que vivem na TI Panambi-Lagoa Rica, entre os municípios de Douradina e Itaporã (MS). O marco temporal restringe o reconhecimento como Terra Indígena apenas àquelas que eram ocupadas pelos índios na data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988 - exceto em casos em que a comunidade tenha sido expulsa, sofrido esbulho de seu território.
A reportagem é publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 05-10-2016.
A decisão, proferida pelo juiz federal Moisés Anderson Costa Rodrigues da Silva, da 1ª Vara Federal de Dourados (MS), declarou nulo o processo de demarcação da TI, delimitada em 2011 com a publicação dos estudos de identificação pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a quem cabe agora recorrer da decisão. Os indígenas, que em setembro de 2015 foram alvo de dois violentos ataques em uma das áreas de ocupação tradicional na TI, Guyra Kambi’y, souberam da decisão nesta terça-feira (4/10).
Ezequiel João, liderança Guarani Kaiowá, protesta e pede a terra de volta (Foto: Tatiana Cardeal/ISA)
Ezequiel João, uma das lideranças indígenas na comunidade em que vivem mais de 300 pessoas, em três aldeias, aguardava outra notícia: “Estamos esperando a portaria declaratória [da terra] e recebemos a notícia que [a demarcação] foi anulada pelo juiz da 1ª Vara de Dourados”.
Após os ataques em 2015, organizações indígenas e indigenistas denunciaram que o governo, ainda sob a batuta de Dilma Rousseff, estava sendo omisso em garantir a segurança dos índios, já que as agressões aconteceram na mesma semana em que o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, estivera em Campo Grande para discutir soluções para os conflitos fundiários na região sul do estado com lideranças indígenas e fazendeiros.
À época, o Ministério Público Federal (MPF) chegou a abrir um inquérito para investigar formação de milícia privada por fazendeiros da região de Douradina, já que, em uma troca de mensagens em rede social, um representante de um sindicato rural estaria convocando os fazendeiros a promover a remoção forçada dos indígenas de Guyra Kambi'y, na TI Panambi-Lagoa Rica.
Cartuchos de balas recolhidos pós-ataque à TI Panambi-Lagoa Rica, em setembro de 2015 (Foto: CIMI)
A ação judicial (nº 0001665-48.2012.4.03.6002) que anulou o procedimento administrativo conduzido pela Funai foi movida por Leonino Custódio Pereira. Já na peça inicial da ação o advogado de Pereira recorria à tese do marco temporal.
Segundo Ezequiel João, a tese não pode ser aplicada no caso de Panambi-Lagoa Rica: “Estamos chegando a quase 100 anos de luta.
Nós não estamos esperando, como vimos na notícia, de 1988 para cá. Nossos anciãos contam que essa área era antiga; antes de começar o levantamento de 1943, nossos ancestrais já viviam há muito tempo aqui”, explica Ezequiel João.
Além do marco temporal, a sentença recuperou também uma interpretação restritiva da ideia de renitente esbulho, aplicada pelo ministro Teori Zavascki em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que anulou a homologação da TI Limão Verde, do povo Terena, também em Mato Grosso do Sul, em março de 2015. Lembre aqui. Na decisão de Zavascki, o esbulho, exceção que não permitiria aplicar o marco de 5 de outubro de 1988, só deveria ser reconhecido se os indígenas estivessem em conflito efetivo ou movendo uma ação na Justiça contra os fazendeiros naquela data exata.
Mulheres guarani kaiowá em uma das três aldeias da TI Panambi, Guyra Kambi'y, em 2013 (Foto: Tatiana Cardeal/ISA)
O advogado do ISA, Maurício Guetta, lembra que a decisão de Zavascki não é vinculante e que aplicá-la a outros casos só fará aumentar os conflitos no campo: “Além do equívoco em se aplicar indistintamente a restritiva tese do marco temporal para outros casos - dado que ela valida uma série de graves violações aos índios perpetradas pelo próprio Estado e por particulares -, a interpretação do conceito de renitente esbulho conferida neste caso é, para dizer o mínimo, esdrúxula. É completamente alheio aos propósitos constitucionais exigir comprovação de conflito armado ou de ação judicial na data exata da promulgação da Constituição”.
A TI Guyraroka, outra terra de ocupação dos Guarani Kaiowá, também foi anulada pelo STF com base na tese do marco temporal e muitas outras comunidades indígenas têm enfrentado decisões orientadas por ele em tribunais de primeira e segunda instâncias. Esses ataques no Judiciário ao direito indígena à terra são questionados por juristas, organizações indígenas e indigenistas, como o ISA, e foram diretamente rebatidas em outubro de 2015 por um parecer jurídico, assinado por José Afonso da Silva, constitucionalista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Placa que identifica a TI Panambi-Lagoa Rica em Douradina (MS) (Foto: Tatiana Cardeal/ISA)
Reservada aos Guarani Kaiowá pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1951, deixando de fora áreas de ocupação tradicional, Panambi-Lagoa Rica passou a ser re-estudada pela Funai em 2005. Os estudos de identificação e delimitação da área, agora com 12.196 hectares, levaram mais de dez anos para serem publicados pelo órgão. O relatório final, base para a portaria do presidente da Funai que reconheceu a tradicionalidade da ocupação nessa área, reuniu vasta documentação histórica e todo o trabalho em campo, segundo Ezequiel João, foi acompanhado de perto pelas lideranças e anciãos indígenas - alguns com mais de 90 anos.
Esses anciãos são testemunhas de que, como afirma o relatório, as terras incluídas no município de Douradina até a década de 1940 eram ocupadas exclusivamente pelos Kaiowá, com presença atestada desde o século XIX. O relatório comprova tanto a habitação permanente dos Guarani Kaiowá em Panambi-Lagoa Rica, quanto seu esbulho, além das celeumas em torno das terras da região, onde o governo de Getúlio Vargas instalou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand), permitindo a invasão da área de ocupação tradicional, o chamado Ka’aguyrusu. Já em 1920 os indígenas teriam tido a palavra do Marechal Cândido Rondon de que obteriam a posse dos 50 mil hectares se trabalhassem, como fizeram, na instalação das linhas telegráficas e na construção do que hoje é a BR-163.
O histórico também é recuperado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, que reconheceu os processos de expulsão dos indígenas de suas terras como graves violações de direitos humanos: “Documentos do SPI (1946-1947) mostram que os Kaiowá da região entre Dourados e Rio Brilhante comunicaram-se reiteradamente com o SPI para pedir auxílio diante do avanço dos colonos, sem obter sucesso”.
No início dos anos 1950, no entanto, o decreto presidencial reconheceu aos índios apenas sete lotes da Colônia Agrícola e as reclamações aos órgãos indigenistas continuaram insistentemente pelas décadas seguintes, quando a invasão de suas terras por fazendeiros se consolidou. Agora os Kaiowá esperam que a Funai entre com o recurso e que, em segunda instância, a decisão seja favorável a eles - reparando essas injustiças históricas: “Nós queremos a demarcação da terra. Nós precisamos da nossa terra de volta e os fazendeiros precisam de indenização das benfeitorias. Se a Justiça leva a um procedimento mais longo, o que vai acontecer? A morte dos indígenas. É isso que o governo está querendo? É isso que a Justiça está querendo?”, pergunta, indignado, Ezequiel João.
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Um ano após ataques, juiz anula demarcação de terra dos Guarani Kaiowá (MS) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU