22 Setembro 2016
A Igreja está lutando para deixar para trás uma visão de mundo – isto é, uma Weltanschauung – que a absorve inteiramente para tornar-se uma igreja que se envolve com o mundo.
O artigo é de Massimo Faggioli, professor de teologia na Villanova University, na Pensilvânia e o seu mais recente livro intitula-se “The Rising Laity. Ecclesial Movements Since Vatican II” (Paulist Press, 2016), publicado por Global Pulse, 20-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Uma das transições difíceis que a Igreja Católica está tentando fazer é a de uma visão de mundo – isto é, uma Weltanschauung – inteiramente voltada a si mesma para uma Igreja pastoral engajada no mundo.
Quanto mais o catolicismo tenta se apresentar como uma visão de mundo separada que divide o mundo em dois, tanto mais os católicos (especialmente os jovens) retiram-se do campo de batalha, tendo já o suficiente para lidar na zona de combate que é a vida diária.
A percepção inicial da exortação do Papa Francisco intitulada Amoris Laetitia é um bom exemplo disso.
A assembleia do Sínodo dos Bispos sobre o matrimônio e a família terminou quase um ano atrás (24-10-2015) e a exortação do papa foi publicada há quase seis meses (08-04-2014). A recepção deste documento está em curso e a forma como ela vem se desdobrando diz algo sobre a situação da Igreja Católica hoje.
Um aspecto típico do catolicismo contemporâneo é uma divisão entre os bispos. A primeira divisão segue linhas geoculturais. Os bispos da região de Buenos Aires produziram orientações para a publicação da exortação pós-sinodal em que falam sobre a possibilidade aos fiéis divorciados e recasados que não vivem “em castidade” de receberem a Comunhão após um processo de discernimento junto de seus pastores.
Francisco enviou a estes bispos uma carta – conforme informado pelo jornal oficial do Vaticano L’Osservatore Romano – endossando a interpretação dada a este documento.
Isto tudo, porém, se dá no extremo sul das Américas.
Na América do Norte, a recepção de Amoris Laetitia parece ser bastante diferente. Dom Charles Chaput, de Filadélfia (quem, em junho passado, foi nomeado presidente do grupo de trabalho dos bispos americanos encarregado de implementar a exortação) emitiu suas próprias orientações no dia 1º de julho para a Arquidiocese de Filadélfia.
Ele provavelmente quer que suas diretrizes se tornem um padrão para outras dioceses dos Estados Unidos também.
O documento de Chaput deixa claro que a interpretação oficial e pastoral da exortação não levará em consideração o contexto teológico das suas assembleias sinodais de 2014-2015. Tampouco irá considerar certos trechos de Amoris Laetitia.
“Quanto às pessoas divorciadas e recasadas no civil, o ensinamento da Igreja exige-lhes que se abstenham de intimidade sexual. Isto aplica-se até mesmo em casos em que eles devem (para o acompanhamento dos filhos) continuar a viver sob o mesmo teto”, dizem as orientações do arcebispo.
“Aceitar viver como irmão e irmã faz-se necessário aos fiéis divorciados e recasados para que recebam a reconciliação no Sacramento da Penitência, o que poderá, então, abrir caminho para a Eucaristia. Tais pessoas são encorajadas a aproximarem-se do Sacramento da Penitência regularmente, recorrendo à grande misericórdia de Deus nesse sacramento caso falharem em castidade”, continua o texto do arcebispo.
Ao norte da fronteira com os EUA, no Canadá as orientações emitidas pelos bispos católicos de Alberta e dos Territórios do Noroeste adotam uma abordagem semelhante e negam a ideia de que o Sínodo e Amoris Laetitia tenham trazido alguma mudança.
“Por meio da imprensa, amigos ou família, pode ter acontecido que casais tenham sido levados a achar que houve alguma mudança na prática da Igreja, de modo que agora seria possível eles receberem a Sagrada Comunhão caso tenham um a conversa com o padre. Esta visão é errônea”, dizem os bispos.
“Os casais que manifestam este desejo devem ser acolhidos por um padre para que ouçam novamente o ‘projeto de Deus [referente ao matrimônio] em toda a sua grandeza’ (Amoris Laetitia, n. 307) e, portanto, que sejam ajudados a compreender o caminho correto a seguir em direção à plena reconciliação com a Igreja. Para que se torne possível uma tal caminhada de cura e reconciliação de maneira que permaneça obediente ao mandamento de Cristo de que ‘o que Deus uniu não o separe o homem’, a Igreja estabeleceu os seus tribunais matrimoniais”, insistem os prelados canadenses.
A questão de quem são os divorciados novamente casados não é o único foco de Amoris Laetitia. No entanto, ela é sintomática do tipo de recepção que o documento de Francisco está tendo em outros aspectos também, tais como a questão dos homossexuais na Igreja.
Não há dúvidas de que a recepção teológica do Sínodo está acontecendo nos EUA e não somente aí.
E o que tem ocorrido na recepção de Amoris Laetitia entre os bispos demostra duas questões.
A primeira é a diferença entre a recepção pastoral e a recepção que tenho chamado de “visão de mundo ou Weltanschauung”. Em artigos publicados no sítio Global Pulse, já falei sobre a diferença entre uma abordagem pastoral e uma abordagem ideológica às questões levantadas pelo Papa Francisco.
O problema com Amoris Laetitia na América do Norte é que o debate sobre o matrimônio é levado para o lado da biopolítica (leis sobre o aborto, a eutanásia, sexo, etc.). Este marco tem sido um fator central e fundamental para a maneira como o magistério católico tem visto a modernidade ao longo dos últimos cinquenta anos.
A tendência a pôr a questão dos católicos divorciados e recasados juntamente com outras questões que são cultural e pastoralmente mais perturbadoras (como, nesse exemplo, a eutanásia) revela que o problema é mais profundo: trata-se de uma Weltanschauung, uma visão totalmente absorvente de mundo e de Igreja. Infelizmente, a reação de alguns bispos a Amoris Laetitia está condicionada por um contexto em que, como acontece com o aborto, a eutanásia, etc., a prática pastoral com os divorciados que voltaram a se casar não pode mudar porque, acredita-se, ele nunca mudou.
A segunda questão que quero analisar é como e onde a recepção e a implementação dos ensinamentos de Francisco (com base no Sínodo) está ocorrendo. A recepção tem acontecido mais no nível das trocas públicas na imprensa do que onde deveria mais propriamente acontecer: quer dizer, em ambientes eclesiais como as conferências episcopais e os sínodos diocesanos.
Mas há exceções. Por exemplo, Dom Robert McElroy, de San Diego (EUA), decidiu convocar um sínodo diocesano sobre o matrimônio e a família.
Infelizmente, tais iniciativas como essa de San Diego continuam sendo exceções.
O fato é que mesmo onde há bispos dispostos a falar sobre os ensinamentos do Papa Francisco e seu impacto na vida diária dos católicos, eles não estão fazendo-o dentro de suas conferências episcopais.
Recentemente, em um discurso proferido na Universidade de Notre Dame, Chaput comparou Washington, DC, a um “grande golem mecânico”; isto é, um monstro.
No folclore judaico, um golem é um ser antropomórfico animado, magicamente criado inteiramente de matéria inanimada. Nos salmos e em escritos medievais, essa palavra era empregada para significar algo amorfo. Alguns bispos parecem ter a mesma percepção para com suas conferências.
As conferências episcopais nacionais são a mudança institucional singular mais importante na Igreja posterior ao Vaticano II. Suspeito, porém, que, nesse exato momento, muitos bispos (e não só os bispos dos Estados Unidos) enxergam essa instituição como não sendo significativa para o ministério pastoral ou para a vida da Igreja. No pior dos casos, eles veem as conferências como um golem.
Isto é paradoxal porque os documentos das conferências episcopais são uma das fontes mais importantes para as encíclicas e exortações de Francisco, enquanto a Cúria Romana, neste seu pontificado, tem produzido muito menos documentos do que antes. Na verdade, neste momento tem havido um novo espaço para os bispos trabalharem em nível nacional, o que poderia sugerir o início de uma nova fase na vida das Conferências dos Bispos em todo o mundo. Porém, não é o que está acontecendo, pelo menos não ainda. No momento, muitas conferências episcopais parecem quase paralisadas.
O problema é que muitos bispos pastorais, que percebem um racha profundo entre uma Igreja pastoral e uma Igreja Weltanschauung, parecem estar escolhendo retirarem-se e não mais se engajar nas conferências nacionais. Há bem poucos “bispos ao estilo Francisco” liderando as conferências de seus países ou que estejam visivelmente ativos em tentar transformar estes ambientes num lugar para a recepção do magistério papal (cf. os casos dos EUA, da Itália e da Europa oriental; a Alemanha e a Áustria são exceções).
A impressão que tenho é que muitos dos bispos que querem uma Igreja pastoral e não uma Igreja ideológica acabaram se desiludindo com suas conferências episcopais.
Eles simplesmente deixaram a liderança dessas instituições a “bispos Weltanschauung”, os quais não têm interesse em receber o que está vindo de Roma atualmente. Eis uma reversão verdadeiramente estranha das coisas, dado que durante os últimos cinquenta anos esses mesmos guerreiros culturais tentaram reduzir as conferências episcopais a nada mais que megafones do Vaticano.
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Quando os bispos desistem das Conferências Episcopais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU