31 Agosto 2016
Nos últimos dias, o padre Giulio Meiattini tinha levantado uma série de perguntas críticas sobre os "quatro princípios" que orientam o magistério do Papa Francisco.
Em um post do dia 24 de agosto, o teólogo italiano Andrea Grillo tinha respondido ao padre Giulio, que, por sua vez, tinha replicado em um longo comentário ao post.
Grillo recebeu também de Stefano Biancu uma carta que relê os quatro princípios e os coloca em um âmbito teológico-sapiencial e não filosófico. "Parece-me – afirma Grillo – uma ótima contribuição para o debate que se abriu sobre esse tema, e eu a publico integralmente abaixo, agradecendo de coração ao seu autor, Stefano Biancu, que ensina ética na Universidade de Genebra e é professor da Universidade Católica de Milão".
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, 25-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caro Andrea,
Li com muito interesse a reflexão do Prof. Meiattini sobre os quatro princípios do Papa Francisco (disponível aqui, em italiano), assim como a tua resposta.
Esses quatro princípios também me impressionaram muito, a tal ponto que eu retornei sobre eles em diversas ocasiões: tanto na intenção de aprofundar melhor o seu sentido e a sua gênese (disponível aqui, em italiano), quanto na intenção de imaginar – a partir deles – a identidade de uma ética cristã que possa estar à altura do nosso tempo (disponível aqui, em francês).
Em relação ao que eu já escrevi, não tenho muito mais a acrescentar. Retomo aqui apenas algumas intuições, em particular sobre a natureza dos quatro princípios – são realmente postulados filosóficos ou, ao contrário, pressupõem uma leitura teologal e crente da história? – na esperança de contribuir para a reflexão comum.
Digo logo que não acredito que os quatro princípios possam ser catalogados sob a categoria da produção filosófica. Parece-me que eles derivam mais de uma leitura sapiencial e crente da história.
Explico-me. Na Evangelii gaudium, os quatro princípios encontram a sua colocação na seção que trata de como se pode implementar a tarefa de "tornar-se povo" (EG 220).
A categoria de "povo" é muito cara ao Papa Francisco: os seus antecedentes são a categoria bíblica de "povo de Deus" e a retomada que dela fez o Concílio Vaticano II, a fim de pensar a Igreja. O Papa Francisco considera que a categoria de povo é frutífera também para pensar – como cristãos – o âmbito social. O pano de fundo dessa reflexão, portanto, é bíblico e teológico (ele deriva de uma leitura crente), não filosófico.
Prova disso é a observação segundo a qual um dos quatro princípios – o princípio da superioridade da realidade sobre a ideia – "está ligado à encarnação da Palavra" como encarnação que não se esgotou com a vida do Jesus histórico, mas continuou em uma história da Igreja como "história da salvação" (EG 233). O modelo de uma ideia que se encarna na realidade sem se separar dela, portanto, é encontrado na Palavra de Deus
Mas um discurso análogo também pode ser feito para o princípio relativo à superioridade do tempo no espaço: como destacou o pensador judeu A. J. Heschel, no seu clássico livro de 1951, Il Sabato. Il suo significato per l’uomo moderno [O Sábado. O seu significado para o homem moderno] (Milão: Garzanti, 1999), é o Sábado bíblico que atesta e fundamenta aquela superioridade.
Se, portanto, esses princípios não constituem retomadas literais do texto escriturístico, mesmo assim, estão imbuídos de teologia bíblica.
Para compreender a intenção do Papa Francisco, eu acredito que se deva olhar para a história da qual ele vem. A "teologia do povo" argentina, certamente cara a ele, articulou a relação (abstrata) Igreja-mundo, tematizado pelo Concílio, nos termos (concretos) de um Povo de Deus que se encarna, de vez em quando, em um povo particular do qual ele evangeliza a cultura, mas do qual também recebe algo essencial para a sua apropriação crente do Evangelho.
Francisco dá um passo a mais: recebe as intuições do Concílio e da teologia argentina e as coloca diante da situação atual de sociedades multiculturais nas quais é difícil captar os traços de uma história comum, de uma cultura comum, de uma religião comum. Não somos mais povo, precisamos nos torná-lo.
Na sua opinião, a tarefa dos cristãos se torna, então, a de pôr a serviço das nossas sociedades multiculturais a própria expertise em ser povo: um povo que vive uma unidade de fundo, embora na riqueza das suas infinitas diferenças. Não se trata – esta me parece ser a sua proposta – de encontrar um espaço para (abstratos) valores cristãos na elaboração dos grandes maîtres-à-penser do momento, na esperança de uma recristianização da sociedade a partir de cima. Ao contrário, trata-se de redescobrir que somos "povo de Deus" a caminho na história e nas ruas de cada cidade em particular: cidades nas quais Deus mesmo já habita (esse é um dado de fé, não uma evidência sociológica ou filosófica).
Esse tornar-se povo não é irrelevante – de acordo com Francisco – para a qualidade da convivência civil, mas também não o é para a qualidade da vida cristã.
Os quatro princípios, portanto, devem ser relidos dentro do quadro – de fé – de um povo que caminha na história e junto ao qual o próprio Deus fez Sua morada.
Muito poderia ser dito sobre cada um deles e sobre a força que eles têm para a vida cristã e para a reflexão teológica. Sobre a superioridade do tempo sobre o espaço, que se traduz na necessidade de "ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços" (EG 223), limito-me a dizer que compartilho as tuas considerações sobre o fato de que o que parece causar problemas para alguns é precisamente a passagem de uma visão estática para uma visão processual, portanto, o fato de aceitar o dado – antropológico e teológico – da temporalidade e da historicidade (enfim, a seriedade – teológica e antropológica – da nossa condição corpórea). Acho que deveríamos nos admirar com o contrário: viemos de uma longuíssima tradição – esta sim, filosófica – de sinal radicalmente oposto.
Francisco não faz um discurso filosófico, e não é por acaso que ele tenha indicado na misericórdia a categoria geradora uma adequada forma de vida cristã e eclesial (cfr. S. Morra, Dio non si stanca. La misericordia come forma ecclesiale. Bolonha: EDB, 2015): ao contrário de outras categorias geradoras do passado (as categorias de ratio, de natureza, de verdade...), a de misericórdia, de fato, não pertence ao vocabulário clássico da filosofia.
O fato de que a necessidade de "iniciar processos mais do que possuir espaços" é intrinsecamente teologal parece-me ser demonstrada também pela sua afinidade essencial com a virtude – teologal, não filosófica – da esperança. O que é a esperança senão um contínuo iniciar processos, aceitando – com confiança – a indisponibilidade do tempo? Um contínuo iniciar processos cujo resultado não depende de nós? E, vice-versa, não é, talvez, uma forma de desespero a busca continua da posse dos espaços: a atitude daqueles que consideram que não podem receber nada gratuitamente e que, portanto, devem se apossar de tudo o que possam (também é uma tentação dos evangelizadores!)?
Lembro-me, a esse propósito, daquilo que um Emmanuel Mounier leitor de Charles Péguy observava: a esperança "semeia começos". É precisamente a virtude de quem sabe iniciar processos.
Por tudo isso e por outros motivos, que eu expressei em outros lugares, não acredito que uma leitura simplesmente filosófica dos quatro princípios acerte o alvo.
Camaldoli, 25 de agosto de 2016
Stefano Biancu
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Sobre os quatro princípios do Papa Francisco: Stefano Biancu responde a Giulio Meiattini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU