31 Agosto 2016
Apesar do sol que brilha na maior parte do ano no Recife, em Boa Viagem a praia tem hora para mixar. Lá pelas três da tarde, no verão um pouco depois, quem domina é a sombra dos espigões.
O comentário é de Fabio Victor, jornalista, publicado por Folha de S. Paulo, 30-08-2016.
Eis o comentário.
Essa vergonha suscita em muitos nascidos na cidade um misto de respeito e inveja pela vizinha João Pessoa, que mantém limites a edificações na orla, criando uma praia mais viva e mais pública.
A poucos quilômetros de Boa Viagem, no cais de Santa Rita, há duas torres gêmeas que não são apenas horrorosas, mas foram construídas à força, em área protegida pelo patrimônio histórico e num processo cercado de denúncias de irregularidades.
São dois entre mil exemplos da derrota da cidade para a especulação imobiliária.
Parece questão de tempo que Brasília Teimosa, favela urbanizada na zona sul banhada pelo mar e riquíssima em história e cultura –que surge em "Aquarius" na festa na laje da empregada de Clara–, tenha derrubado seu status de zona especial (que a protege há anos da especulação) e vire um grande condomínio de bacana.
Kleber Mendonça Filho filmou "Aquarius" no edifício Oceania, um dos últimos remanescentes da primeira metade do século 20 da orla, com poucos andares e arquitetura menos agressiva. Para o roteiro, pensou no Caiçara, que foi demolido antes –e o jogo pesado enfrentado por moradores que chiaram até o fim foi laboratório do que se vê no longa.
O maniqueísmo algo incômodo de "Aquarius", portanto, tem como álibi o realismo: é tudo verdade.
Não é de espantar que na pré-estreia do filme no Recife, a exibição tenha se encerrado com coros do "Ocupe Estelita", movimento que virou referência nacional de ativismo urbano ao se insurgir contra mais uma aberração a rondar a cidade, a construção de um monstrengo com 13 torres sobre um cais histórico à beira da bacia do Pina –numa antiga área federal federal tornada privada a toque de caixa, que os ativistas exigem que seja de uso público.
Evocando a geografia de um Recife erguido sobre o mar e o mangue, o poeta Carlos Pena Filho escreveu que a cidade é "metade roubada ao mar, metade à imaginação". "Aquarius" permite um chiste triste: "metade roubada ao mar, metade à especulação".
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O Recife é metade roubado ao mar, metade à especulação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU