11 Agosto 2016
Quando se diz que os assassinatos, e os massacres, e os crimes desumanos perpetrados em nome de Deus não são atos de uma religião, isso significa que não são os de uma religião que seja digna desse nome. De fato, não se pode matar em nome de Deus, gritando "Deus é grande", porque, ao se dizer isso, afirma-se, nos gestos, o contrário. Afirma-se que esse Deus que mata e quer matar não é mais Deus, mas apenas aquilo que o violento imagina como tal.
A opinião é do teólogo e padre italiano Giovanni Mazzillo, professor do Istituto Teologico Calabro, de Catanzaro. O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 10-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Deus bíblico que ofereceu a aliança (fundamental também no Islã, na reproposição corânica de que o Deus que se revela é único, verdadeiro e somente Deus) não é nem pode ser "dono do pacto" estipulado com Abraão e, depois, com Moisés (Lacan), a ponto de Se contradizer.
Isso aconteceria no momento em que Aquele que prescreveu "Não matarás", dando a esse imperativo o valor de um absoluto (conectado ao respeito pela Sua imagem no ser humano), obrigasse a matar no Seu nome. Ele não pode fazer isso, porque contradiria a Si mesmo. Deus não pode mandar ninguém matar, nem mesmo em Seu nome.
Se não chegarmos a estabelecer isso, todo desvio religioso é possível, e o sentido do Absoluto, que é Deus, está à mercê de todas as formas de absolutismo (religioso, político, idealista). Os casos contrários registrados na Bíblia devem ser examinados de modo atento, com hermenêuticas diferenciadas e corretas.
Os extermínios ordenados em caso de guerra, o episódio da filha de Jefté etc. são casos excepcionais e, de algum modo, podem ser remetidos a situações extraordinárias, nas quais a interpretação humana da vontade de Deus como tal, certamente, parece ser problemática também do ponto de vista bíblico.
O problema aflora de modo consistente: era essa a vontade de Deus, ou foram os seus interlocutores que quiseram entendê-la como tal? A Bíblia contém episódios de expedientes e subterfúgios, mas também de homicídios e até de massacres, cujos artífices se remeteram à vontade de Deus, mas não é evidente que isso seja verdade. Uma confirmação nesse sentido também vem daquilo que, em alguns documentos de mais autoridade do que esta opinião, se encontra expressado como "as páginas obscuras da Bíblia":
"No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o caso de páginas da Bíblia que, às vezes, se apresentam obscuras e difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isso, deve-se ter presente, antes de mais nada, que a revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela, vai-se progressivamente manifestando o desígnio de Deus, atuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente fatos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a sua imoralidade. Isso se explica a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem tantos comportamentos ‘obscuros’ que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. (…) Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os fiéis a se aproximarem também dessas páginas por meio de uma leitura que leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo" (Bento XVI, Verbum Domini, n. 42)
Em suma, não é Deus que quis a violência, mas a determinação de homens "de Deus", que apelavam a Ele para uma legitimação última dos atos evidentemente repugnantes à sua consciência moral. A objeção mais consistente pode vir a partir do caso da obediência de Abraão, pronto para sacrificar o filho Isaac, obediência retomada e justificada também em outras passagens da Bíblia (cf. Carta aos Hebreus, 11, 17-18: "Pela fé, Abraão, submetido à prova, ofereceu Isaac; e justamente ele, que havia recebido as promessas, ofereceu seu único filho, do qual fora dito: ‘Em Isaac você terá uma descendência’").
Está escrito, mas à luz do que foi dito sobre as "páginas obscuras" e sobre o relato bíblico restante, não se deve esquecer que a maior e mais verdadeira obediência de Abraão foi a de salvar a vida do filho, visto que a cultura ancestral considerava necessário o sacrifício de um filho ou de um inocente para garantir o favor divino em relação a grandes projetos humanos aos quais se dava início (fundações de cidades, grandes viagens, declarações de guerras etc.).
De modo semelhante, se a Bíblia parece aplaudir o cumprimento do voto de Jefté de matar a primeira pessoa encontrada depois da vitória, que tragicamente acabou sendo a sua filha (Livro dos Juízes, 11, 32-36ss), foi realmente essa a vontade de Deus? Não se tratou, ao contrário, de uma adaptação "ao nível cultural e moral de épocas antigas", incluindo aquele nível cultural que considerava o voto a Deus mais sagrado do que a própria vida humana?
A mentalidade sacrificial aplicada a Deus era e ainda é, mesmo em alguns círculos católicos, também ela, fruto de um nível cultural ancestral. Esta considerava a considera a autoridade suprema (o rei, o patriarca e, com maior razão, Deus) dono da própria vida.
No caso de um Deus, ela chegava e chega ao ponto de que, embora oferecendo um pacto, Ele continua superior ao próprio pacto e, portanto, capaz de legitimar também aquilo que comumente pode parecer transgressão e até mesmo ato contra o próprio pacto. Podemos nos perguntar: mas ela chegava e chega a considerar Deus capaz de legitimar também aquilo que é chamado de "perversidade" [nefandezza] ou de "abominação"? Esse é o ponto. Existem perversidades e perversidades.
A Bíblia chama assim, e o Alcorão retoma o seu conceito, tanto a transgressão dos mandamentos mais graves, mas também aquilo que vai contra a inviolabilidade do "nome" e, portanto, da realidade de Deus, da Sua unicidade e da Sua santidade. Mas, neste último caso, embora Deus, nessa visão errônea, que é raiz do fundamentalismo, pudesse pedir a transgressão do mandamento "Não matarás", nunca poderia pedir que se adorasse um ídolo ou se blasfemasse contra o Seu nome.
A perversidade, também chamada de abominação, contém na sua raiz a ideia daquilo que é absolutamente proibido. É aquilo que é chamado, em âmbito mais genérico, de tabu, mas que, na Bíblia, ao menos inicialmente, é atribuído àquilo que se faz entre os pagãos, enquanto o que acontece entre os judeus é chamado de infâmia.
Nesse ponto, coloca-se o critério fundamental que toca o presente e o futuro da fé. Da nossa e da das outras religiões.
1) Para o cristianismo mais coerente a toda a revelação, lida à luz de Cristo e do dom da Sua vida, Deus deve ser compreendido e pregado como Aquele que não quer a violência contra outro ser humano, nem pode querê-la, porque a Sua imagem impressa no homem e a Sua própria natureza ("Deus é amor") fazem a violência entrar no caso concreto da abominação contra o Seu nome e a Sua pessoa. Não se trata apenas de um postulado racional, mas de um dado revelado. É preciso reconhecê-lo, e, reconhecendo os erros cometidos também na história da Igreja, chegou a hora de indicar com clareza o nosso amadurecimento sobre algo que, até agora, não tinha sido entendido de fato ou tinha sido compreendido apenas parcialmente.
2) O Islã, o judaísmo atual e as outras religiões (das quais, aqui, não se pode falar senão genericamente) podem e devem chegar a tal concepção. Movendo-se a partir do respeito pela vida alheia, apelando aos direitos fundamentais do ser humano, à inviolabilidade da vida, especialmente do inocente, eles podem e devem colocar tudo em relação com o Deus que adoram e ao qual fazem referência. A própria religião, como é finalmente anunciado por alguns, não pode ser fundamentada única e simplesmente sobre a "submissão", conceito derivado, como tal, de uma cultura ancestral e de uma experiência superável e superada, a dos senhores e dos servos. É hora de buscar e encontrar no próprio conceito de submissão não a realidade servil (antropomorficamente referida, justamente, ao servo e ao senhor), mas a realidade da contemplação e da grandeza como glória que não mata, nem faz matar, e é benevolente e amiga não apenas do "servo" de Deus, que tal não é, mas do filho ou, ao menos, do amigo de Deus, que Deus é, mas como amigo da humanidade inteira.
Quando se diz que os assassinatos, e os massacres, e os crimes desumanos perpetrados em nome de Deus não são atos de uma religião, isso significa que não são os de uma religião que seja digna desse nome. De fato, não se pode matar em nome de Deus, gritando "Deus é grande", porque, ao se dizer isso, afirma-se, nos gestos, o contrário. Afirma-se que esse Deus que mata e quer matar não é mais Deus, mas apenas aquilo que o violento imagina como tal.
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Os textos sagrados e a frágil "justificação" da violência. Artigo de Giovanni Mazzillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU