10 Agosto 2016
O olhar místico de Francisco, mais do que uma doutrina, alimenta uma ética (o cuidado dos laços que nos constituem) e, ao mesmo tempo, uma política e uma economia (a gestão da nossa casa comum a partir da centralidade dos últimos). E, como a fé, que para Francisco é generativa, está sempre a caminho, busca, arrisca, é aos jovens que o papa confia a tarefa de mostrar como é possível construir pontes quando muitos querem construir muros.
A opinião é do sociólogo e economista italiano Mauro Magatti, professor da Universidade Católica de Milão, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 08-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Por que Francisco insiste em falar de misericórdia e de perdão, quando, diante da violência, precisamos de respostas fortes e determinadas? E por que o papa quis afirmar que as religiões não têm nada a ver e que, por trás da violência, sempre há interesses econômicos e políticos?
Estamos diante de um pontífice "bonachão", que não consegue ver as tensões que agitam o mundo? São perguntas que ressoaram nesses dias e que merecem uma reflexão adicional.
A um olhar não esmagado sobre a contingência, a crise que está investindo contra o mundo inteiro expressa os dilemas da época que Charles Taylor chama de "humanismo autossuficiente": privados da transcendência de Deus, não são admitidos fins últimos diferentes da prosperidade humana.
Em um mundo globalizado, porém, isso parece nos expor a uma dinâmica, contraditória e dilacerante: de um lado, a atração tecnocrática em direção ao além-do-homem, como se o homem contemporâneo, em uma torção paradoxal, pretendesse se divinizar de novo e, desta vez, com as suas próprias mãos; de outro, o retorno a formas de sacralização arcaicas, alimentadas por reivindicações fundamentalistas, fatalmente imbuídas de violência.
Tal crise, que afeta a todos, se produz de modo particularmente agudo no contato problemático entre a modernidade ocidental e o Islã contemporâneo. Estranho ao percurso de secularização, o Islã – saído de um longo torpor – parece incerto, nos seus componentes, sobre a atitude a assumir em relação à modernidade e ao modo pelo qual a potência, hoje totalmente humana mais do que divina, é elaborada.
Oferecendo o lado a todo tipo de instrumentalização política e econômica, uma parte das suas elites considera mortal para a própria religião islâmica a exposição a um Ocidente que já fez da técnica – aliada do eu individual – o seu próprio deus. No quadro da sociedade contemporânea, o ponto de força e, ao mesmo tempo, de fraqueza da tradição islâmica é de falar de um deus inescrutável. Tanto é verdade que, ao fiel, não é exigida uma linha de comportamento específica para se salvar, nem um esforço de racionalização da própria existência.
A ideia de submissão – que nos soa escandalosa – oferece uma saída da solidão e da desorientação de muitos. Deus, através dos seus intérpretes, pode chegar a pedir qualquer coisa, até mesmo contra a razoabilidade e a humanidade comum. Na temporada da autonomia do homem, isso representa o retorno, paradoxal mas não incompreensível, do pai como pura potências: com as palavras de Lacan, quando o "pai do pacto", que une lei e desejo, deixa o lugar ao puro arbítrio, fora da lei, o sujeito pode se abandonar a um gozo anárquico e ameaçador.
É essa a fissura na qual se insere hoje o fanatismo (islâmico, mas não só), que, como observa Olivier Roy, se entrelaça com a niilismo dominante das sociedades avançadas. É na loucura dos homens-bomba que matam pensando já estarem no paraíso, ou na crueldade mostrada pelos combatentes do ISIS que vemos as consequências mais trágicas da sobreposição entre o vazio do Eu e a onipotência divina.
Assim, as convulsões que abalam o mundo inteiro expressam, de modo destrutivo, a pergunta que interpela as grandes tradições espirituais: como repensar a experiência religiosa na era tecnocientífica, por definição global? Interrogação, aliás, que não poupa a técnica: temos certeza de que o além-do-homem é o caminho certo a se seguir?
Francisco está bem consciente da delicadeza desta temporada. Por isso, a partir de uma clara distinção entre religião e política, ele faz o que um líder religioso deve fazer, isto é, trabalhar para criar um campo de diálogo entre todos os crentes. Solicitando que a sua Igreja – e a cristandade inteira – recupere uma concepção mística da fé. Uma via mística não como fuga do mundo, mas como imersão amorosa, intensa e plena na vida que nos foi dada, para ver através e para além da superfície e do limite. Para quem tem fé, se Deus não está no aqui e agora da vida, diz Francisco, Ele não está em lugar nenhum.
O olhar místico de Francisco, mais do que uma doutrina, alimenta uma ética (o cuidado dos laços que nos constituem) e, ao mesmo tempo, uma política e uma economia (a gestão da nossa casa comum a partir da centralidade dos últimos). E, como a fé, que para Francisco é generativa, está sempre a caminho, busca, arrisca, é aos jovens que o papa confia a tarefa de mostrar como é possível construir pontes quando muitos querem construir muros.
A via mística, iconicamente expressada pelo fato de ele ter estado, em Auschwitz, em solidão e em silêncio (como se dissesse que há uma fé nua que une a todos) é o possível campo de encontro entre fés diversas: ela não prevê respostas para tudo, mas uma suspensão operosa e corajosa diante do mistério, isto é, àquilo que não sabemos e não dominamos.
Essa é, para o Papa Francisco, a condição pela qual todo diálogo (entre as religiões e com a técnica) pode se regenerar hoje. Como busca sincera, repleta de estupor e de misericórdia, daquilo que nos une como seres humanos.
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A mística de Francisco, campo de encontro entre as religiões. Artigo de Mauro Magatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU