28 Julho 2016
O Estado Islâmico atingiu o segundo símbolo religioso na Europa desde o seu surgimento O Governo francês pode estar demasiado fraco para travar a divisão entre as maiores confissões nacionais.
As raízes do diálogo inter-religioso em França são profundas. A igreja de Saint Etienne de Rouvray e o padre Jacques Hamel são dois exemplos trágicos disso mesmo. Antes de ser degolado por dois jovens muçulmanos na manhã de terça-feira, o padre de 86 anos pertencia a um comité interconfessional comum à mesquita vizinha, construída apenas a 50 metros do local onde foi assassinado, num terreno cedido pela sua igreja. “[Estou] assustado com a morte do meu amigo”, dizia na terça-feira o imã da mesquita de Saint Etienne de Rouvray, Mohammed Karabila, companheiro habitual de Jacques Hamel, com quem conversava sobre “religião e a convivência entre comunidades”.
A reportagem é de Félix Ribeiro, publicada por Público, 27-07-2016.
Nesta quarta-feira de manhã, contudo, um dia depois do homicídio brutal de Jacques Hamel, os líderes das principais confissões religiosas em França davam por si diante das televisões pedindo aos seus fiéis que não se esqueçam da sua cultura inter-religiosa e não caiam na narrativa hipermediática do grupo Estado Islâmico, que interpreta o mundo através de uma lógica de guerra civilizacional entre muçulmanos e o mundo dos “infiéis”. Uma visão que, a reboque da grande vaga de atentados terroristas no último ano e meio, conquistou algum espaço nas grandes democracias europeias e norte-americana – na França isso é sobretudo visível na popularidade do movimento de Marine Le Pen; e em Donald Trump, nos Estados Unidos.
“Não nos podemos deixar levar pelo jogo político do Daesh [acrônimo em árabe para o Estado Islâmico], que quer pôr os filhos de uma mesma família uns contra os outros”, disse o arcebispo de Paris, André Vingt-Trois, ao lado dos líderes das Igrejas Protestante e Ortodoxa e das comunidades judaica, budista e muçulmana. Todos pediram mais proteção nos locais de culto, como aconteceu quando entrou em vigor o estado de emergência, em Novembro, sobretudo em mesquitas e sinagogas, embora reconheçam, como disse o representante da Igreja Protestante, François Clavairoly, que é impossível guardar todos os espaços religiosos e que todos devem “manter-se atentos” na protecção dos seus fiéis.
Os neo-jihadistas ou a “islamização da radicalidade”
O Estado Islâmico quer criar uma guerra civil religiosa. É esse o pilar central das suas mensagens de propaganda, que mobilizam os seguidores no estrangeiro contra o “apóstata”, seja ele um turista ou um católico numa missa. Antes desta terça-feira, o grupo só por uma vez tinha conseguido atingir um local religioso na Europa, quando, há dois anos, Mehdi Nemmouche matou quatro pessoas no museu judaico de Bruxelas. Existe por isso o receio de que o atentado desta semana inflame o sentimento islamofóbico europeu mais do que qualquer outro ataque. É que Jacques Hamel foi degolado enquanto conduzia uma missa, ajoelhado à força por dois presumidos jihadistas que filmaram o seu homicídio e gritavam Allahu akbar (Deus é grande).
Alguns líderes muçulmanos franceses diziam esta quarta-feira que nas redes sociais já circulavam ameaças de morte pelo homicídio do padre Hamel. Mas a radicalização do discurso está também á tona. Um bom exemplo é o de Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha de Marine Le Pen e uma das vozes mais importantes da sua Frente Nacional: “Matam as nossas crianças, assassinam os nossos polícias, cortam a garganta aos nossos padres. Acordem!”, escreveu no Twitter, antes de anunciar a sua entrada na reserva militar. E desde o vaticano, em desacordo com o Papa Francisco, o cardeal Robert Sarah escrevia: “Quantos mortos são precisos para que os governos europeus se apercebam da situação no Ocidente? Quantas cabeças decapitadas?.”
Segurança e Estado de Direito
Os líderes religiosos franceses não estiveram sozinhos esta quarta-feira nos apelos à unidade nacional. Acompanhava-os o Governo francês, que nos últimos dias repetiu a mesma ideia de diálogo inter-religioso e convivência pacífica sobre a qual conversavam o padre Hamel e o imã Karabila. Mas François Hollande e os seus partidários não parecem ter sequer força política para aguentar a ofensiva da oposição de direita e extrema-direita, que exige novas e mais draconianas medidas de segurança, como, por exemplo, deter preventivamente várias centenas de pessoas com uma “Ficha S”, que são suspeitas de serem radicais religiosos mas não cometeram qualquer crime. O Governo decidiu esta quarta-feira mobilizar 6000 dos 10 mil militares em patrulha especial para a província e reforçar as reservas de gendarmes.
O grande desafio do Presidente francês – para além da sua estrondosa impopularidade – é fazer com que os seus apelos à preservação do Estado de Direito se pareçam menos com imobilismo do que com a protecção dos ideais democráticos, como tem argumentado o ex-Presidente Nicolas Sarkozy – e com sucesso, visto o recente salto de mais de dez pontos percentuais na corrida das primárias no seu partido Os Republicanos. “Toda esta violência e barbárie paralisou a esquerda francesa desde Janeiro de 2015”, disse esta quarta-feira. “Perdeu o rumo e está agarrada a uma mentalidade que não pertence a esta realidade.”
O desafio torna-se mais difícil quando pelo menos um dos atacantes de terça-feira, um jovem de 19 anos com um grande historial de perturbações psiquiátricas chamado Adel Kermiche, estava em liberdade condicional depois de por duas vezes ter tentado juntar-se ao Estado Islâmico na Síria. O diário Le Monde escreve que os procuradores públicos tentaram impedir a libertação de Kermiche com uma pulseira eletrônica, mas que o jovem conseguiu convencer o juiz de que estava arrependido e de que a convivência com outros jihadistas na cadeia o fez aperceber de que era um “muçulmano que defende os valores da misericórdia e bondade, não um extremista”.
A tomar pelas últimas respostas a atentados terroristas em França, porém, de pouco importarão os pormenores do que motivou a liberdade condicional de Kermiche. “A linha entre o que os franceses estão dispostos a aceitar em nome da segurança e o que dizem ser uma violação das suas liberdades civis altera-se sempre que acontece um novo ataque”, explica um conselheiro governamental francês à edição europeia da revista Político.
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A França tenta impedir uma guerra civil religiosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU