10 Julho 2016
Conversar com o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, significa criar um espaço de reflexão que requer calma, atenção, profundidade. O cardeal apresentou o texto da Amoris laetitia (AL) durante a coletiva de imprensa oficial, no dia 8 de abril de 2016, na Sala de Imprensa da Santa Sé. Posteriormente, o próprio Papa Francisco, em uma coletiva de imprensa no voo de volta para Roma de Lesbos, no dia 16 de abril de 2016, afirmou que o arcebispo de Viena tinha captado bem e comunicado corretamente o significado da exortação. O pontífice reiterou essa mesma opinião outras vezes em público. Portanto, as palavras do cardeal sobre o discernimento no documento assumem um peso específico.
A entrevista foi concedida ao jesuíta Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, 07-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Alguns falaram da Amoris laetitia como de um documento menor, quase de uma opinião pessoal do pontífice, sem pleno valor magisterial. Que valor tem essa exortação? É um ato do magistério? Isso parece evidente, mas, nestes tempos, é bom ressaltar isso, para evitar que certas vozes criem confusão entre os fiéis, afirmando que não o é...
É evidente que se trata de um ato de magistério! É uma exortação apostólica. É claro que o papa exerce aqui o seu papel de pastor, de mestre e de doutor da fé, depois de ter se beneficiado com a consulta dos dois Sínodos. Eu acho que – sem dúvida alguma – se deve falar de um documento pontifício de grande qualidade, de uma autêntica lição de sacra doctrina, que nos remete à atualidade da Palavra de Deus. Eu a li muitas vezes e, todas as vezes, capto a fineza da sua composição e uma quantidade cada vez maior de detalhes ricos de ensinamento.
Na exortação, não faltam passagens que explicitam o seu valor doutrinal de maneira forte e decisiva. Reconhece-se isso a partir do tom e do conteúdo da enunciação, postos em relação à intencionalidade do texto. Por exemplo, quando o papa escreve: "Peço com insistência...", "Não é mais possível dizer...", "Quis propor com clareza a toda a Igreja...", e assim por diante.
A Amoris laetitia é um ato do magistério que torna atual no tempo presente o ensinamento da Igreja. Assim como nós lemos o Concílio de Niceia à luz do Concílio de Constantinopla, e o Vaticano I à luz do Vaticano II, assim também, agora, devemos ler as intervenções anteriores do magistério sobre a família à luz da sua contribuição. Somos levados de modo vital a distinguir a continuidade dos princípios da doutrina na descontinuidade de perspectivas ou de expressões historicamente condicionadas. É a função própria do magistério vivo: interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida.
Algumas coisas lhe surpreenderam? Outras lhe fizeram refletir? Teve que reler várias vezes algumas passagens?
Felizmente, fiquei surpreso com a metodologia. Nesse âmbito das realidades humanas, o Santo Padre fundamentalmente renovou o discurso da Igreja, certamente na linha da Evangelii gaudium, mas também da Gaudium et spes, em que os princípios doutrinais e as considerações dos homens do tempo presente estão em contínua evolução. Há uma disponibilidade profunda a acolher a realidade.
O olhar tão aberto à realidade e, portanto, à fragilidade, na sua opinião, pode ser prejudicial à força da doutrina?
Absolutamente não. O grande desafio do papa é justamente o de demonstrar que esse olhar capaz de apreciar, permeado de benevolência e de confiança, não prejudica em nada a força da doutrina, mas faz parte da sua coluna vertebral. Francisco percebe a doutrina como o hoje da Palavra de Deus, Verbo encarnado na nossa história, e a comunica escutando as perguntas que são feitas no caminho.
Ele rejeita, em vez disso, o olhar de encurvamento sobre enunciações abstratas, separadas do sujeito que vive testemunhando o encontro com o Senhor que muda a vida. O olhar abstrato de tipo doutrinário domestica algumas enunciações para impor a sua generalização a uma elite, esquecendo-se de que fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos também diante de Deus, como disse Bento XVI na Deus caritas est.
Estou intrigado com o fato de que o papa fale das situações irregulares colocando o adjetivo entre aspas e fazendo-o preceder pela expressão "chamadas". Na sua opinião, isso tem um significado particular?
O fato relevante desse documento é que ele supera as categorias de "regular" e "irregular". Não há, de modo simplista, de um lado, os matrimônios e as famílias que funcionam, que vão bem, enquanto as outras não vão bem. Francisco fala dessa realidade que diz respeito a todos: somos viatores, estamos a caminho. Estamos todos sujeitos ao pecado e todos precisamos da misericórdia. Na mais ortodoxa das situações, o apelo à conversão é tão real quanto aquele em uma situação irregular. É só em um segundo momento que se deve falar de pecado, de fracasso, de feridas que tocam a realidade familiar. Ele repete muitas vezes: as situações "chamadas irregulares". Não se trata, de fato, de relativismo, mas, ao contrário, ele é muito claro sobre a realidade do pecado. Francisco não nega que há situações regulares ou irregulares, mas vai além dessa perspectiva para pôr em prática o Evangelho: quem dentre vocês nunca pecou que atire a primeira pedra.
O pontífice, ouvindo os Padres sinodais, tomou consciência do fato de que não se pode mais falar de uma categoria abstrata de pessoas, nem encerrar a práxis da integração em uma regra totalmente geral.
No plano dos princípios, a doutrina do matrimônio e dos sacramentos é clara. O Papa Francisco novamente a expressou com grande clareza comunicativa. No plano da disciplina, o pontífice leva em conta a inumerável variedade de situações concretas e afirmou que não devíamos esperar por uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. No plano da prática, diante das situações difíceis e das famílias feridas, o Santo Padre escreveu que é possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer que, "uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos de uma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos" (AL 300). Ele acrescenta, de modo muito claro e sem ambiguidade, que o discernimento também diz respeito à vida "sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, em uma situação particular, não há culpa grave" (AL, nota 336). Especificando, além disso, que "a consciência das pessoas deve ser mais bem incorporada na práxis da Igreja" (AL 303), em particular em uma conversa "com o sacerdote, no foro interno" (AL 300).
Depois dessa exortação, portanto, já não tem mais nenhum sentido a pergunta se, em geral, todos os divorciados recasados podem ou não podem ter acesso aos sacramentos...
Existem a doutrina sobre a fé e os costumes, a disciplina fundada na sacra doctrina e a vida eclesial, e existe a práxis condicionada pessoal e comunitariamente. A Amoris laetitia se coloca nesse nível muito concreto da vida de cada um. Existe uma evolução claramente expressada pelo Papa Francisco na percepção por parte da Igreja dos elementos condicionantes e atenuantes que são próprios da nossa época. "A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes.
Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada 'irregular' vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente de um eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender 'os valores inerentes à norma' ou pode se encontrar em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais, 'pode haver fatores que limitam a capacidade de decisão'" (AL 301).
Mas essa orientação, além disso, já estava contida, de algum modo, também no famoso parágrafo n. 84 da Familiaris consortio, que Francisco retoma várias vezes, escrevendo: "Os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações"...
De fato, São João Paulo II distinguia algumas situações. Para ele, há diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram para salvar o primeiro matrimônio e foram injustamente abandonados, e aqueles que, em vez disso, destruíram com culpa grave um matrimônio canonicamente válido. Depois, ele falou daqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o matrimônio anterior, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido. Cada um desses casos, portanto, constitui o objeto de uma validação moral diferenciada. São tantos pontos de partida diferentes em uma participação cada vez mais profunda na vida da Igreja, à qual todos são chamados.
João Paulo II pressupõe já de modo implícito que não se pode simplesmente dizer que cada situação de um divorciado recasado é o equivalente a uma vida em pecado mortal separada da comunhão de amor entre Cristo e a Igreja. Portanto, ele abria a porta a uma compreensão mais ampla passando pelo discernimento das diferentes situações que não são objetivamente idênticas e graças à consideração do foro interno.
Parece-me, portanto, que essa etapa representa uma evolução na compreensão da doutrina...
A complexidade das situações familiares, que supera longamente aquilo que era habitual nas nossas sociedades ocidentais, ainda há algumas décadas, tornou necessário um olhar mais nuançado sobre a complexidade dessas situações. Ainda menos do que antes, a situação objetiva de uma pessoa não diz tudo sobre uma pessoa diante de Deus e diante da Igreja. Essa evolução nos leva de modo vital a repensar aquilo a que visávamos quando falávamos das situações objetivas de pecado. E isso implicitamente envolve uma homogênea evolução na compreensão e na expressão da doutrina. Francisco deu um passo importante, obrigando-nos a esclarecer algo que tinha ficado implícito na Familiaris consortio, sobre o laço entre a objetividade de uma situação de pecado e a vida de graça diante de Deus e da sua Igreja e, como consequência lógica, a imputabilidade concreta do pecado.
O cardeal Ratzinger tinha nos explicado isso nos anos 1990: não se fala mais automaticamente de situação de pecado mortal em caso de nova união. Lembro-me de que, em 1994, quando a Congregação para a Doutrina da Fé tinha publicado o seu documento sobre os divorciados recasados, eu perguntei ao cardeal Ratzinger: "Por acaso, a velha práxis assumida como óbvia e que eu conheci antes do Concílio, a de ver em foro interno com o próprio confessor a possibilidade de receber os sacramentos, sob a condição de não criar escândalo, é sempre válida?". A sua resposta foi muito clara, como as afirmações do Papa Francisco: não existe uma norma geral que possa abranger todos os casos particulares. Tão clara é a norma geral quanto é claro que ela não pode abranger todos os casos de modo exaustivo.
O papa afirma que, "em certos casos", quando nos encontramos em uma situação objetiva de pecado – mas sem sermos subjetivamente culpados ou sem sê-lo inteiramente –, é possível viver na graça de Deus, amar e poder igualmente crescer na vida de graça e de caridade, recebendo, para esse fim, a ajuda da Igreja, incluindo a dos sacramentos e também da Eucaristia, que "não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos". Como integrar essa afirmação dentro da doutrina clássica da Igreja? Há uma ruptura com o que foi afirmado no passado?
Levando sempre em conta o ponto de vista do documento, parece-me fundamental, no desenvolvimento da Amoris laetitia, que – em qualquer categoria abstrata que possamos ser classificados – todos somos chamados a mendigar a misericórdia para desejar a conversão: "Eu não sou digno de que entreis em minha morada...". Se o Papa Francisco tratou apenas em nota de rodapé sobre a ajuda dos sacramentos "em alguns casos" de situações irregulares, isso ocorre apesar de que o problema, embora importante, seja mal posto quando é hipostasiado, e embora se queira tratá-lo através de um discurso geral e não através do discernimento singular do corpo de Cristo, ao qual nós somos todos e cada um devedores. Com muita perspicácia, o Papa Francisco nos pede para meditar 1Cor 11, 17-34 (AL 186). É a passagem principal em que ele fala da comunicação eucarística. Um modo de deslocar o problema, colocando-o lá onde São Paulo o põe e um modo sutil de indicar outra hermenêutica para responder às questões recorrentes. É preciso entrar na dimensão concreta da vida para "discernir o corpo", mendigando misericórdia.
É possível que aquele que está em regra não tenha discernimento e coma o próprio julgamento. É possível que, em certos casos, aquele que está em uma situação objetiva de pecado possa receber a ajuda dos sacramentos. Nós temos acesso aos sacramentos em uma condição de mendicância, como o publicano no fundo do templo, que não ousa levantar os olhos. O papa nos convida a não olhar apenas para as condições exteriores, que têm a sua importância, mas também a nos perguntarmos se temos essa sede de perdão misericordioso, a fim de responder melhor ao dinamismo santificador da graça. A passagem entre a regra geral e os "certos casos" não pode ser feita apenas através de considerações de situações formais. Portanto, é possível que, em certos casos, aquele que está em uma situação objetiva de pecado possa receber a ajuda dos sacramentos.
O que significa "em certos casos"? Alguns se perguntam por que não se faz uma espécie de inventário deles para explicar o que isso significa...
Porque, caso contrário, o risco é o de cair na casuística abstrata e, o que é mais grave, criamos – também mediante uma norma de exceção – um direito de receber a Eucaristia em situação objetiva de pecado. Aqui, parece-me que o papa nos coloca diante da obrigação, por amor à verdade, de discernir os casos singulares em foro interno, assim como em foro externo.
Deixe-me entender: aqui, Francisco fala de uma "situação objetiva de pecado". Portanto, obviamente, ele não se refere àqueles que receberam uma declaração de nulidade do primeiro matrimônio e se casaram, nem àqueles que conseguem satisfazer a exigência de viver como "irmão e irmã". Por mais que haja uma situação irregular, de fato, eles não vivem em uma situação objetiva de pecado. O pontífice, aqui, se refere, portanto, àqueles que não conseguem realizar objetivamente a nossa concepção do matrimônio, transformar o seu modo de vida de acordo com essa exigência. Está correto?
Sim, certamente! Na sua grande experiência de acompanhamento espiritual, quando o Santo Padre fala das "situações objetivas de pecado", ele não se contenta com os casos de espécies distintas na Familiaris consortio, n. 84, mas se refere, de modo mais extenso, àqueles que "não realizam objetivamente a nossa concepção do matrimônio" e cuja "consciência deve ser melhor incorporada'', "a partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos" (AL 303).
A consciência assume um papel fundamental...
Certamente, "essa consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho", mas pode "reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que essa é a doação que o próprio Deus está pedindo no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objectivo" (AL 303).
Evangelii gaudium, Amoris laetitia... Parece que o Papa Francisco quer insistir com força no tema da alegria. Na sua opinião, por quê? Precisamos hoje falar de alegria? Corremos o risco de perdê-la? Por que a misericórdia inquieta? Por que a inclusão preocupa? Que medos despertam em alguns as palavras do papa? Pode nos dar uma explicação?
O apelo à misericórdia nos remete à exigência de sair de nós mesmos para fazer misericórdia e obter em troca a misericórdia do Pai. É a Igreja em saída da Evangelii gaudium. Essa saída de si mesmos dá medo. Devemos sair das nossas seguranças preconcebidas para nos deixar unir a Cristo. O Papa Francisco nos toma pela mão para nos colocar na direção certa do testemunho da fé: demonstrar um encontro que muda a vida, um encontro de amor que não pode acontecer se não indo ao encontro com os outros. A conversão pastoral busca continuamente essa presença de Deus em ação hoje. Essa presença provoca alegria, a alegria do amor. O amor é exigente, mas não existe alegria maior do que o amor.
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Amoris laetitia. "É evidente que se trata de um ato de magistério! Ele se coloca no nível concreto da vida de cada um". Entrevista com Christoph Schönborn - Instituto Humanitas Unisinos - IHU