27 Mai 2016
A advogada, professora e intelectual feminista Alda Facio, da Costa Rica, relatora sobre discriminação contra a mulher do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, esteve em Porto Alegre na última segunda-feira (24) participando de evento organizado pela ONG Themis. No seminário “Os Gêneros e as Cores da Justiça”, ela falou sobre as barreiras que as mulheres encontram, em todo o mundo, para ter acesso à Justiça, assim como sobre os avanços e desafios sob essa perspectiva.
A entrevista é de Débora Fogliatto, publicada por Sul21, 27-05-2016.
Atualmente professora da Universidade de Toronto, Alda dedicou os últimos 30 anos de sua vida à militância feminista, sendo uma das fundadoras da organização “Women’s Caucus for Gender Justice” na Corte Criminal Internacional, assim como da Fundação Justiça e Gênero e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, além de conselheira de diversas outras organizações internacionais. Ela ainda foi uma das líderes da campanha “Nossos Direitos Não São Opcionais”, que pressionou pela ratificação e aplicação da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
Em sua fala na capital gaúcha, Alda frisou que as mulheres são metade da população, e não um setor minoritário. “São quase 4 bilhões de mulheres que vivem discriminadas, algumas mais do que outras devido à intersecção das diferentes formas de discriminação, mas todas discriminadas por serem mulheres. E isso custa muito para entrar na cabeça das pessoas. Sempre temos que provar que o que fazemos é importante. Seguiremos falando até que a discriminação termine, só pararemos quando ela não existir mais”, falou ela, sobre sua militância e atuação.
A especialista apontou que a discriminação sempre é considerada um problema menor nas sociedades, sobre a qual não há estudos nem entendimento suficiente. “Não se percebe que há esse desprezo pela vida das pessoas devido à sua raça, classe ou gênero e que é a partir disso que acontece tortura, violência”, apontou, mencionando que os direitos das mulheres só foram classificados como direitos humanos em 1993. Para a Justiça e para a sociedade, o modelo de cidadão segue sendo o homem branco, heterossexual e seguidor da religião vigente do país, disse Alda. “É nisso que pensam os tribunais e todo o sistema judiciário. Estão pensado para um sujeito que existe, mas que não é o único. Todas as pessoas que não seguem esse modelo vão, quanto mais afastadas disso estiverem, encontrar mais barreiras, como falta de representação e abuso de autoridade”, afirmou ela.
A falta de acesso a direitos reprodutivos também é causa de morte e sofrimento para mulheres, especialmente as negras e pobres, segundo a professora. “A legalização do aborto salvaria vidas, mas a grande maioria das pessoas que se dizem cristãs está contra ela e se dizem ‘pró-vida’, mas eu os chamaria de ‘pró-morte das mulheres'”, criticou. Em entrevista ao Sul21, em conjunto com a assessoria de imprensa da Associação de Juristas do Rio Grande do Sul (Ajuris), que sediou o evento, Alda falou sobre esses direitos e discriminações.
Eis a entrevista.
A senhora mencionou a falta de acesso das mulheres aos direitos reprodutivos. O controle sobre os corpos das mulheres pode ser considerada uma das primeiras opressões que elas sofrem? A legalização do aborto poderia mudar essa realidade?
O aborto é um direito reprodutivo muito importante, mas não é a única forma de controle sobre os corpos das mulheres. Por exemplo, na Índia e na China o aborto é legalizado, mas os corpos das mulheres continuam sendo controlados, com políticas como abortos forçados quando a criança é menina. Então o controle dos corpos das mulheres, que sempre existiu, começa inclusive na menstruação. No Nepal, por exemplo, quando meninas e mulheres estão menstruando, elas precisam ficar fora de casa, muitas vezes está frio e ficam expostas a perigos. E essas são as formas pelas quais a sociedade faz as mulheres se sentirem sujas, erradas, não-pertencentes, e isso acontece desde muito pequenas, como se o corpo fosse o problema, e não a sociedade.
Nesse sentido, você percebe o machismo como a “primeira” discriminação, a base para todas as outras opressões?
Sim. Não é que seja a mais importante ou a mais forte, mas historicamente é a primeira que existe. Acontece na família, desde quando o patriarcado começou, há seis mil anos, e decidiram que há algumas pessoas que são superiores e outras inferiores, e no caso os homens seriam superiores. Mulheres têm determinados papéis que não são tão valorizados em relação aos papéis dos homens. O racismo, por exemplo, não poderia existir tanto tempo atrás, porque não havia ninguém que era diferente, já que não havia mobilidade e migração. Então é por isso que o sexismo é a primeira forma de discriminação. Existe desde antes de a pessoa nascer, quando se sabe que é menino ou menina o valor muda, o valor daquela pessoa que ainda não nasceu. Enquanto outras características, como a homossexualidade e transexualidade só se descobre mais tarde na vida. E isso é para dizer que se não eliminarmos o machismo, não podemos eliminar as outras discriminações. Porque é metade da população do mundo que vive sob essa discriminação. Então pode-se eliminar algumas formas, mas se não acabarmos com o machismo, ainda teremos metade do mundo sendo discriminada.
Nesse caso, pode-se dizer que a homofobia, lesbofobia e transfobia existem a partir do machismo?
Sim, porque em uma sociedade patriarcal, não se pode ter pessoas que são ambíguas, que não são totalmente um ou outro modelo. Porque daí pode-se ter papéis que homens e mulheres podem fazer, e para uma sociedade patriarcal estrita, tudo tem que ser dicotômico. Mulheres são o que os homens não são, e vice-versa. E quando se tem pessoas que podem ser algo considerado “meio termo”, isso é complicado para o patriarcado. Em muitas sociedades indígenas nas Américas, havia pessoas que eram chamadas de “dois espíritos”, e isso não era necessariamente sobre suas genitálias. Eram pessoas que sentiam não ser nem homens nem mulheres, isso acontecia em muitas sociedades tribais. E foi apenas quando o patriarcado chegou, com a colonização, que essas pessoas foram consideradas desviantes, porque antes eram consideradas sagradas.
As escolas de Direito abordam questões de gênero e sexualidade?
Não, é uma das escolas em que é mais difícil se abordar o pensamento feminista. Há muitas pensadoras feministas juristas, mas as escolas de Direito não ensinam isso. Elas não aceitaram, é preciso estudar por si mesma, ter um grupo, não é incorporado nas escolas. A lei ainda é, na maioria dos países… Talvez em todos os países, centrada no homem. O modelo de ser humano para o Direito é o homem branco, heterossexual, sem deficiências.
E isso dificulta o combate e a aplicação de leis sobre violência doméstica contra a mulher.
As provas que são exigidas durante os processos são pensadas em delitos na esfera pública, então é difícil aplicar as mesmas leis para um delito que acontece na rua e um que acontece dentro de casa. Além disso, há estudos que mostram que a voz da mulher é menos acreditada que a voz de um homem. Se um homem diz que seu carro foi roubado, ninguém questiona se ele realmente tinha um carro, ou o que aconteceu antes do roubo. Mas se uma mulher diz que foi abusada, ela é imediatamente questionada. E os homens são ensinados a falar de forma mais contundente, mais objetiva, enquanto as mulheres são mais inseguras, falam de forma mais subjetiva. E os juízes acham que estão mentindo, que não sabem do que estão falando. Agora, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que os juízes precisam escutar suas mulheres em suas diferentes formas de falar, especialmente se são indígenas, analfabetas, de baixa renda.
O Direito foi por muito tempo uma área fechada para as mulheres, e mesmo que elas já tenham conquistado algum espaço, parece que ainda há um longo caminho.
Sim, em todas as profissões a mulher é quem tem que se adaptar à forma já estabelecida. Não querem mudar as formas como se faz a medicina, a Justiça, mas querem que as mulheres se adaptem. Há uma feminista norte-americana que diz que quanto mais educação tem uma mulher, mais está acostumada ao pensamento androcêntrico, porque só estuda sobre os homens.
E nas Nações Unidas, essa questão também encontra resistência?
Sou nova como perita na ONU, fui eleita há dois anos. Mas tenho trabalhado como lobista para a ONU por 30 anos, para conseguir, por exemplo, a inclusão dos direitos das mulheres no Código Criminal Internacional, convencendo países e rascunhando o código. Eu venho trabalhando com a ONU, que é algo enorme e com muitas partes diferentes. O sistema da ONU que trabalha com direitos humanos é muito pequeno comparado ao resto. E eu estou muito interessada nessa parte, em colocar uma perspectiva de gênero e feminista dentro dos direitos humanos. Isso não é fácil, mas é ainda mais difícil nos outros setores. As pessoas que estão na ONU em Nova York e em Genebra são diplomatas, não estão cientes da realidade em seus países. Não sabem que há pobreza, violência contra a mulher onde vivem, acham que isso acontece em outros países.
Aqui no Brasil isso também acontece, muitas pessoas dizem que não precisam do feminismo porque as mulheres já têm direitos e não precisam cobrir os corpos, por exemplo, fazendo uma comparação com países muçulmanos. Ignoram que há outras formas de sexismo.
Sim, e vocês já repararam no quanto a mídia fala da condição das mulheres no Afeganistão, por exemplo? É muito útil para o patriarcado, porque então as pessoas pensam “nossa, as mulheres lá têm uma condição péssima”, então você tem que ficar grata no Brasil por não precisar usar uma burka, por poder estudar, mesmo tendo que estudar numa linha androcêntrica. É por isso que a mídia sempre quer comparar, sempre me perguntam “em que país a condição das mulheres é pior?”, e isso não importa. Pense em seu país, todos têm problemas. Concentrem-se nos seus países, não em pensar se é melhor ou pior do que a realidade no México, em Honduras… A questão é: melhorem os seus países, sua região.
A senhora acompanhou o momento político do Brasil? identificou que no processo que suspendeu o mandato de Dilma houve traços de machismo?
Sim, sempre há. Há muita misoginia na forma em que as pessoas avaliam o que Dilma fez ou deixou de fazer. Seria bom fazer um estudo aprofundado sobre a misoginia que facilitou esse golpe. Se fosse um homem, talvez teria sido mais difícil. Sempre podem fazer [o golpe], porque a direita faz isso mesmo, em Honduras teve um golpe em um presidente homem. São as novas formas de golpe de estado, feitas pelo Congresso, e isso é muito perigoso. Quando aconteceu em Honduras, disseram que era um país muito pequeno, instável, mas que aconteça no Brasil é mais preocupante. Porque todo o continente olha para o Brasil, é importante na América Latina e ameaça as células democráticas que temos.
E agora também não há mulheres nos ministérios, então parece que há um retrocesso.
É triste, mas temos que saber que quando há vitórias, sempre há retrocessos em seguida. O importante é manter a militância. Eu sou militante há 50 anos, e minha família e amigos me perguntam se não estou cansada. Claro que sim, claro que há dias em que é muito difícil, mas é isso que dá sentido à vida.
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‘Se não eliminarmos o machismo, não iremos eliminar as outras discriminações’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU