13 Abril 2016
Na Amoris laetitia, para Francisco, é uma nova hermenêutica não jurídica da fisiologia do matrimônio que permite pensar, com fiel liberdade, os melhores remédios para as suas velhas e novas patologias.
A análise é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 11-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Uma singular e eficaz intuição teológica alimenta a sistematização da Amoris laetitia: através de uma acurada reflexão sobre a delicadeza da relação entre "lei geral" e "caso particular", redescobre-se a centralidade do "discernimento", que requer a arte do encontrar, do acompanhar, mas também a lucidez do distinguir e do integrar.
Tudo isso, deve-se notar, não diz respeito simplesmente aos "casos particulares", ou aos "casos-limite" sobre os quais se aflige a atenção da maioria, mas ambiciona a ser princípio geral de vida cristã, ou seja, de "escuta da Palavra", de "experiência sacramental" de "testemunho eclesial" e de "relação com o mundo". Todo o espectro da experiência cristã – que o Concílio Vaticano II recolheu nas suas quatro grandes constituições – aparece redescoberto na sua importância a partir da reemergência muito clara no texto de Francisco desse "critério fundamental".
Nem a Palavra de Deus, nem o sacramento celebrado, nem a vida eclesial, nem a relação com o mundo se deixam compreender simplesmente com base de uma "objetividade" que se impõe sobre o sujeito, de uma "autoridade" que se impõe sobre a liberdade.
Como disse bem o padre H. Legrand, especialista eclesiólogo francês, esse documento é expressão não só do papa, mas também do Sínodo dos bispos e, por isso, atesta uma reviravolta ainda mais significativa: "Nele se encontra, como no Vaticano II, o primado Evangelho sobre as normas".
Ora, essas aquisições, de grande relevo, e que representam uma "conversão e autolimitação do magistério papal", com uma retomada poderosa do magistério episcopal, levam a uma série de consequências pastorais e canônicas de absoluta importância, sobre as quais deveremos trabalhar nos próximos meses e anos.
Tento elencá-las aqui:
a) Dar forma "externa" ao "foro interno"
Na recepção do ditado da Amoris laetitia, é preciso esclarecer um primeiro ponto delicado: a ênfase do "foro interno" – que é, essencialmente, "por diferença" do "foro externo", ou seja, juízo mediado por um procedimento judiciário – não significa, de fato, definir uma marginalidade sua em relação à "forma" pastoral e canônica. Se lermos o texto que é mais explícito a esse respeito na exortação apostólica, podemos tirar daí uma série de características preciosas:
"Trata-se de um itinerário de acompanhamento e discernimento que 'orienta esses fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação de um juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade de uma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris consortio, 34), esse discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isso aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita a ela'" (Amoris laetitia 300).
É evidente que "foro interno" não nega, mas, ao contrário, afirma:
b) Dar novamente densidade ao primado do tempo sobre o espaço: necessidade de itinerários e acompanhamento
É preciso considerar que o grande princípio que já brilha na Evangelii gaudium e que agora é retomado na Amoris laetitia (o primado do tempo sobre o espaço) introduz uma "variável temporal da comunhão" que representa não só um grande recurso para a pastoral (b), mas também um princípio hermenêutico decisivo para a releitura da tradição canônica (c). Comecemos a considerar aqui o primeiro desses dois "efeitos".
A pastoral torna-se "lugar de transformação da comunhão". Isso, obviamente, não é nada novo. Mas a novidade consiste em ter libertado a pastoral da "obsessão de uma conformidade imediata à comunhão". Com uma mentalidade jurídica tardo-moderna, a verificação da comunhão era pensada e concebida só "no espaço" e, portanto, "fora do tempo". Esse procedimento tinha duas consequências deletérias:
Por trás desse desenvolvimento oportuno promovido pela Amoris laetitia, podemos descobrir também a transformação da compreensão do valor da norma em relação à vida. A leitura "apenas pedagógica" da norma tinha se tornado princípio de incompreensão da experiência. As normas sempre mantêm um inegável valor pedagógico, mas não se esgotam nele: elas sempre são também formas de "reconhecimento da realidade", da sua "maravilhosa complicação", cada vez mais complexa e rica em valor, que, no seu interior, é necessário encorajar e defender de modo objetivo.
Desse modo, podemos descobrir que o descerrar-se de um "espaço de reconstrução de uma possível comunhão" põe em jogo não só as consciências, mas também as formas de escuta recíproca, da mediação, da elaboração do luto e da memória. De fato, são "itinerários" em que se exercita o exame de consciência, a penitência e a retomada das virtudes. Caminhos temporais de nova iniciação à comunhão, mediados pela palavra ouvida, rezada, meditada, praticada.
c) Recuperar a distinção entre "segundas bodas" e "adultério"
O segundo filão interessado nesse desenvolvimento é precisamente o filão estritamente "canônico". É evidente, de fato, que a nova "abnegação pastoral", se deve superar a tentação de "autonegação pastoral", à qual, muitas vezes, já estávamos resignados, deve encontrar "margem" em uma nova consciência jurídica e canônica, que não preveja o "sequestro de todo o horizonte" da questão. Note-se que justamente este era formalmente – e continua sendo praticamente – um obstáculo de porte nada pequeno. Tento apresentá-lo do modo mais claro possível, em três passos:
- Onde tínhamos parado?
A disciplina sucessiva à Familiaris consortio também continuava propondo uma identificação imediata e direta entre "segundas bodas" e "adultério". A condição de "excomunhão sacramental" só podia ser superada ou pela "nulidade das primeiras bodas" ou pela "redução ao nada das segundas".
O critério da "objetividade" era o critério decisivo, diante do qual a "consciência" e o "tempo" não tinha nenhuma autoridade, nem de acordo com a Familiaris consortio, nem de acordo com a carta Annus internationalis familiae, da Congregação para a Doutrina da Fé de 1994, nem de acordo com a Declaração sobre a Admissibilidade à Santa Comunhão dos Divorciados Recasados, que o Pontifício Conselho para os Textos Legislativos tinha publicado no dia 24 de junho de 2000.
Enquanto a Familiares consortio e a carta da Congregação, de fato, são superadas pela aprovação da Amoris laetitia, é preciso atualizar esta última declaração de autoridade, que, a partir de 19 de março, se encontra em aberto contraste com os ditames da Amoris laetitia. De fato, ela propunha uma interpretação do cânone 915 do Código de Direito Canônico. Tal cânone afirma:
"Não sejam admitidos à Sagrada Comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto."
A interpretação fornecida pela Declaração pretendia explicar que o cânone, na sua segunda parte, devia ser aplicado à condição dos "divorciados recasados" e que, se se podia falar de discernimento, ele devia ser aplicado não para integrar, mas para excluir. De fato, falava-se – literalmente – de "discernimento dos casos de exclusão da Comunhão eucarística dos fiéis que se encontrem na condição descrita".
Por outro lado, a condição dos divorciados recasados é compreendida com estas palavras muito pesadas:
"Receber o Corpo de Cristo sendo publicamente indigno constitui um dano objetivo para a comunhão eclesial; é um comportamento que atenta aos direitos da Igreja e de todos os fiéis de viver em coerência com as exigências dessa comunhão. No caso concreto da admissão dos fiéis divorciados novamente casados à Sagrada Comunhão, o escândalo, concebido como ação que move os outros para o mal, diz respeito simultaneamente ao sacramento da Eucaristia e à indissolubilidade do matrimônio. Tal escândalo subsiste mesmo se, lamentavelmente, tal comportamento já não despertar alguma admiração: pelo contrário, é precisamente diante da deformação das consciências que se torna mais necessária por parte dos Pastores, uma ação tão paciente quanto firme, em tutela da santidade dos sacramentos, em defesa da moralidade cristã e pela reta formação dos fiéis."
O texto permitia apenas as exceções previstas, quase 20 anos antes, pela Familiaris consortio, mas era evidente que continuava pensando os "divorciados novamente casados" com a categoria clássica de "infames". Deve-se notar, além disso, que a argumentação posta em campo utilizava o "lugar comum" da "falta de autoridade" da Igreja diante de uma "lei divina":
"A proibição feita no citado cânone, por sua natureza, deriva da lei divina e transcende o âmbito das leis eclesiásticas positivas: estas não podem introduzir modificações legislativas que se oponham à doutrina da Igreja."
- Onde está a novidade?
Na Amoris laetitia, lemos, claramente, uma compreensão nova e uma perspectiva que se liberta de uma concepção "apenas pedagógica" da lei. O texto do Papa Francisco, de fato, exerce a autoridade, com plena consciência e com grande equilíbrio, intervindo na interpretação da tradição e – a fortiori – do cânone 915. Lê-se, de fato, na AL 301:
"Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas 'irregulares', há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão em uma situação chamada 'irregular' vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente de um eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender 'os valores inerentes à norma' ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais, 'pode haver fatores que limitam a capacidade de decisão."
Essa formulação faz explodir o automatismo objetivo e normativo, que identifica "situação irregular" e "pecado mortal". De algum modo, não identifica mais – em geral e necessariamente – o "divorciado recasado" com o "adúltero". Mas isso, mais ainda, corresponde a um "princípio geral" que é expressado assim: "É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isso não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano" (AL 304).
- Que consequências "canônicas"?
Se a Amoris laetitia supera no plano formal a autoridade de pronunciamentos anteriores – e seria contraditório pensar que é a Amoris laetitia que deve ser corrigida pela Familiaris consortio, e não vice-versa –, também é preciso hoje adequar os princípios de uma "hermenêutica jurídica" que poderia, a partir de hoje, obstaculizar a tradução pastoral do novo princípio. Refiro-me, de modo particular, à citada "interpretação de autoridade" que o Pontifício Conselho para a Interpretação dos Textos Legislativos tinha dado do cânone 915.
A partir do dia 19 de março, o critério de interpretação do cânone 915 mudou, ao menos no que diz respeito à sua aplicabilidade ao caso de "segundas bodas". Tal caso deve ser avaliado com uma forma nova de discernimento. Enquanto antes o discernimento era entendido apenas "ad excludendum", agora, ao invés, o discernimento está no horizonte de uma escolha abrangente inspirada na luz da misericórdia e na via caritatis: "Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração" (AL 296).
Daí decorre uma tarefa urgente: é preciso, o quanto antes, oferecer uma interpretação atualizada e iluminada do cânone 915 e da sua aplicabilidade ao caso dos "divorciados novamente casados". A aplicabilidade subsiste, obviamente, também hoje, como também reitera a Amoris laetitia, mas sob condições profundamente renovadas e com um estilo e uma linguagem a serem adequadas à nova visão, que não pode mais autorizar as expressões inadequadas, rudes e desrespeitosas do texto interpretativo do ano 2000.
d) A profecia do bispo-advogado Jean-Paul Vesco, pupilo de São Tomás
São Tomás se perguntava se era certo que a lei civil devesse perseguir todos os vícios. E respondia que não. Uma certa "diferença" entre direito e moral era percebida, na Igreja medieval, como uma feliz necessidade.
A Igreja moderna, por diversas razões, pôde transformar a sua própria visão, inclinando-se, não raramente, a um certo maximalismo; que assumiu, especialmente no último século, um rosto oficial, especialmente a partir do Codex de 1917.
Se não existe alguma "distinção possível" entre contrato e sacramento, essa sobreposição imediata mata todo discernimento possível, impede o próprio raciocínio tanto sobre o "mal menor", quanto sobre o "bem possível".
A extensão do conceito de "intrinsece malum" – que assumiu um papel bastante forte a partir da Veritatis splendor (1993) – permite reduzir o poder da Igreja e, portanto, excluir todas as mediações possíveis. Transforma toda mediação concreta em "desobediência à lei universal e abstrata", mas, desse modo, obtém o efeito de absolutizar as mediações clássicas, pretendendo, assim, torná-las imutáveis. E confunde a fidelidade com a rigidez.
Agora, Francisco – não sozinho, mas em comunhão com o Sínodo dos bispos – nos leva de volta a uma lógica mais complexa e mais rica: não aceita mais que a lógica maximalista – para a qual só vale o bem máximo garantido pela norma geral e abstrata – seja a única via coerente com a fé e com a comunhão eclesial. Em vez disso, ele mostra quão arriscada é essa convicção.
O caminho tomado tinha sido apontado, embora com linguagem diferente, pelo bispo de Oran, Jean-Paul Vesco. Ele solicitara que a Igreja "revisse a categoria do crime de adultério". Ele defendia que, de crime continuado, o adultério devia ser considerado como crime instantâneo.
De fato, com a Amoris laetitia, podemos dizer que a "virada pastoral" realizou, indiretamente, essa nova hermenêutica do conceito jurídico. No seu belo texto – Todo amor verdadeiro é inquebrável – Vesco defendia que um sério debate entre a tradição cristã e as formas de vida contemporâneas impunha um repensamento da relação entre "segundas núpcias" e "adultério".
Mas nem em Vesco isso se baseava em uma nova descrição das patologias necessitadas de cuidados, mas sim em uma renovada compreensão da fisiologia do amor, como experiência original de um "vínculo para sempre": também para Vesco, assim como para Francisco, é uma nova hermenêutica não jurídica da fisiologia do matrimônio que permite pensar, com fiel liberdade, os melhores remédios para as suas velhas e novas patologias.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": como mudam a pastoral e o direito canônico. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU