11 Março 2016
Sociólogo argentino analisa as relações entre política e religião na Argentina e, particularmente, a tensão entre Francisco e o Presidente. Da sua perspectiva, Francisco identifica o atual governo com as políticas neoliberais que ele rejeita.
A entrevista é de Javier Lorca, publicada por Página/12, 09-03-2016. A tradução é de Beatriz Affonso Neves.
“Francisco rejeita a exploração capitalista e o neoliberalismo, e identifica que tudo isso caracteriza o governo de Macri, com sua cultura mercado friendly e seus funcionários que foram CEO de multinacionais”, observa Fortunato Mallimaci. Sociólogo, pesquisador da área religiosa, Mallimaci faz reflexões nesta entrevista dada ao Página/12 sobre os cruzamentos entre política e catolicismo no país, o papel global do Papa Francisco, sua incidência no plano local, todos temas que aborda em El mito de la Argentina laica (Capital Intelectual), seu livro mais recente.
Eis a entrevista.
Por que a laicidade argentina seria “um mito”?
A ideia do livro é fazer uma provocação à nossa sociedade política, para a qual a Igreja católica e o Vaticano continuam estando muito presentes. Todas as pesquisas indicam que a maioria dos argentinos acreditam à sua maneira, não respeitam os dogmas nem a maioria das doutrinas da igreja; estamos diante de uma sociedade onde há uma ruptura do monopólio católico e que se encaminha para uma sociedade muito mais pluralista. E, no entanto, temos uma sociedade política que continua acreditando que essa instituição religiosa tem um poder simbólico que os atores não podem negar, nem muito menos confrontar.
Com a escolha de um Papa argentino, isto sofreu um aumento, mas é um aumento do que já existia, porque tampouco a escolha de Bergoglio no Vaticano provocou um aumento de fiéis nas paróquias nem de sacerdotes nos seminários. Quem está interessado em construir uma sociedade onde exista autonomia entre o político e o religioso, entre o institucional católico e de outras religiões e o Estado? Ninguém! Como é possível que a ditadura seja condenada e investigada, e que toda a legislação que nos deixou sobre a instituição católica continue igual desde 1976 até os dias de hoje?
Houve diversas tentativas de fazer leis que incentivassem a liberdade religiosa, que não contemplassem tantas prebendas para a Igreja católica e, no entanto, até o dia de hoje não foi possível avançar. E agora a possibilidade de avanço será ainda menor, já que temos um Secretário de Culto (Santiago de Estrada) que tem vínculos fortes com a instituição católica e que foi funcionário da ditadura, assim como dos governos Alfonsín, Menem e agora, Macri.
Então, resumindo, a sociedade argentina é laica, mas no âmbito político, no judicial, em geral, em todo o aparato estatal, a Argentina continua funcionando como um país com forte presença católica. O religioso precisa ter um lugar no espaço público, mas é preciso tentar democratizá-lo. Não é possível que um único grupo religioso –como é o grupo católico na Argentina e na América latina– tenha uma série de privilégios acima do restante das crenças.
Houve alguma mudança neste sentido durante o kirchnerismo?
O kirchnerismo tentou ter autonomia em relação à instituição católica e o conseguiu em muitos aspectos. Na Secretaria de Culto não colocou uma pessoa vinculada à Igreja, mas uma pessoa vinculada ao aparato político. A mesma coisa aconteceu com a nomeação dos embaixadores junto ao Vaticano, foram nomeadas pessoas que o próprio governo escolheu como representantes do governo junto ao Vaticano e não representantes do Vaticano junto ao governo, da mesma forma que ocorreu sob a ditadura e sob outros governos democráticos. Neste sentido, o governo de Macri retornou às políticas anteriores, acreditando que assim teria melhores relações, no contexto de uma situação que ainda é uma novidade, a de ter um Papa argentino.
Como você analisa a figura de Francisco?
Quando me perguntam: Francisco é tradicional ou progressista? respondo: ele é católico. Ao mesmo tempo em que é, atualmente, um crítico furioso da globalização excludente, do capitalismo, dos empresários, de problemas como o narcotráfico ou o tráfico de pessoas –porque ele é mais dos movimentos sociais do que do movimento operário organizado–, ao mesmo tempo que critica tudo isso, continua pregando o catecismo, a doutrina, o discurso mais tradicional da Igreja Católica.
Ao falar aos párocos diz: “seja um bom pároco”, “não tenham ideologias”, “sejam sacerdotes em tempo integral, não se deixem levar pela política”. Diz: “estejam próximos das pessoas”, mas se você for ateu, lésbica, homossexual, ideólogo, não haverá um lugar para você. Não há outra coisa no seu horizonte de sentido.
Por outro lado, sua história é uma história ambígua, como a da maioria dos bispos argentinos, uma história que inclui cumplicidades com a ditadura. Conheci vários de seus sacerdotes que, se não aceitassem sua autoridade, ou se ele acreditasse que estavam fazendo ideologia ou atuando em comunidades de base, não hesitava em dizer-lhes “vão embora, não quero saber de nada com vocês”.
Como Cardeal, sua condução foi forte, com poucas discussões, nem suspeitava de que essa condução poderia ser democrática. Nesse sentido, há uma enorme continuidade com a história da Igreja. Francisco continua acreditando numa instituição piramidal, carismática, de reprodução do poder. Sua mensagem, assim como a de Bento XVI ou de João Paulo II, é de um catolicismo que se quer apresentar como “integral”: seu raciocínio é de que não existe solução para os problemas da humanidade se a Igreja católica como tal não estiver presente nessa solução.
Mas no nível global ele aparece com outra imagem.
Grande parte da popularidade de Francisco deve-se às grandes empresas de mídia, que encontraram nele uma pessoa extraordinária, que comove, que pode se apresentar nesta globalização excludente como alguém que fala a partir da periferia. E, no nível geopolítico, o Papa buscar ocupar uma liderança no ético-político, apresenta-se como uma garantia de paz y de encontro. Não se soma à guerra de civilizações, a essa ideia de que no Islã todos são terroristas. Numa Europa em que os governos vão para a direita, Francisco diz “um imigrante é uma pessoa e temos que estar com ele”, e isto, incrivelmente para o século XXI, aparece como de esquerda, subversivo. Nisso, sim, esse Vaticano tem uma mensagem a favor das vítimas.
Mas, isso não necessariamente é transferido para as igrejas locais. De outro ponto de vista, também é verdade que ele chegou no Vaticano com uma exigência muito forte de colocar ordem. É preciso lembrar que Francisco podo ser nomeado porque, pela primeira vez na história da igreja, um Papa decidiu renunciar ao cargo dizendo que estava cercado de escândalos! Se alguém dessacralizou esse lugar de Papa, foi Ratzinger com sua decisão de sair. É nesse marco que Francisco tenta realizar algumas mudanças no Vaticano.
Como são inseridos, nesse contexto, as disputas políticas locais em torno da figura do Papa?
É interessante ver como o vínculo entre o político e o religioso que analisamos na Argentina aparece neste caso em torno de Bergoglio. Aqueles que acreditaram que o novo Papa seria funcional para a oposição no confronto com o kirchnerismo, que ajudaria a antecipar a saída de Cristina, e pela janela, acabaram vendo que havia empatia entre os dois – porque para que exista um Francisco que recebe Cristina tem que existir uma Cristina que quer encontrar Francisco–. E os mesmos dirigentes políticos que, quando ele era Cardeal, iam todos os dias a sua casa pedir ajuda, passaram a questionar o Papa, a pergunta “por que está se metendo em política?”, hoje dizem que não irão mais a Roma...
Depois, diante das eleições do ano passado, começaram a perceber que o Papa não apenas apoiava Cristina, mas também via com bons olhos certa continuidade do peronismo. Macri foi eleito e para sua posse não vem ninguém de primeira ordem do Vaticano, vem o Núncio do Paraguai. Vieram à tona alguns desgostos do Papa com Macri: uma ocasião em que o convidou, quando prefeito, e ele não foi, a rejeição ao candidato para a Suprema Corte que contava com certo apoio do Papa (Roberto Carlés), as denúncias de oficinas clandestinas sobre as quais o governo da cidade fez quase nada, o desprezo pelas tentativas de autoridades eclesiásticas para negociar uma transição organizada no governo nacional, toda uma série de questões que foram acentuando as diferenças.
Somando-se a isso o fato do grande publicitário do macrismo perguntar-se quem é o Papa, para que serve, bem... A partir do envio pelo Papa do rosário para Milagro Sala, os atores políticos e midiáticos hegemônicos deixam de lado todos os seus filtros: o Papa argentino, que seria um líder global, que transformaria o mundo e o catolicismo, passou a ser um Papa peronista, “pragmático”, um Papa incapaz de sair de sua cegueira argentina.
Qual a sua interpretação do encontro entre o Papa e Marcri no Vaticano?
Os gestos, o rosto do Papa, foram os de alguém que recebe uma pessoa que está nas suas antípodas. Francisco rejeita a exploração capitalista e o neoliberalismo, e identifica que tudo isso caracteriza este governo da Argentina, com sua cultura “mercado friendly”, seu marketing e seus funcionários que foram CEO de multinacionais.
Enquanto o Papa apresenta uma memória de longo prazo, que revela o impacto social que tiveram no passado as políticas econômicas que agora estão sendo aplicadas novamente, Macri apresenta uma memória de curto prazo, pretende mostrar-se como alguém novo na política quando, na realidade, mais do que inovar, reproduz o que já foi feito.
O Papa foi o primeiro em colocar Macri diante dessa memória de longo prazo. Por outro lado, a chanceler disse que o Governo quer ter uma relação formal e protocolar com o Vaticano, mas não é isso o que Macri parece desejar. O Presidente viajou para a audiência porque deseja legitimar-se na Argentina através desse vínculo com o Papa.
De alguma maneira, na reunião entre Macri e Francisco houve um encontro de dois modelos de catolicismo. Porque há muitos setores católicos que apoiam o macrismo, principalmente ONGs e grupos burgueses, e também há uma maioria silenciosa de Bispos argentinos apoiando o macrismo.
Isto permite também ver os limites dos poderes no interior da Igreja; se alguém acredita que é uma cadeia de comandos, não entende nada.
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“O Papa coloca Macri diante de uma memória de longo prazo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU