Por: André | 08 Março 2016
O cardeal George Pell está com o rosto contrito. Foi uma semana nada fácil para o “ministro da Economia” vaticana. Os fantasmas de um passado distante, as feridas ainda abertas na alma das vítimas dos padres pederastas, as ocultações e coberturas verificadas nas dioceses de Ballarat e Melbourne durante as décadas de 1970 e 1980 tiveram no banco dos réus o cardeal com físico de jogador de rugby durante horas, sobre o qual choveram as perguntas pontuais da Comissão Real do governo australiano que investiga os abusos sexuais contra menores cometidos por religiosos e padres.
Quatro audiências noturnas em videoconferência do Hotel Quirinale de Roma – porque motivos de saúde o impediram de enfrentar a longa viagem até sua terra natal. Uma distância que ampliou o eco midiático de cada uma das suas declarações. Nesta entrevista, o cardeal Pell conta como viveu estes últimos dias.
A entrevista é de Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 04-03-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O que significou, para você, do ponto de vista humano, a experiência desta declaração em videoconferência? Foi difícil?
As audiências foram difíceis e cansativas, mas o procedimento não é sobre mim. A prioridade absoluta é dar assistência, respeitar e ajudar os sobreviventes. A melhor maneira para fazê-lo é dizer a verdade e foi o que fiz. As audiências foram tarde da noite e nas primeiras horas da manhã, e, depois de ficar quatro dias acordado, estou um pouco cansado.
Como definiria sua atitude e seu comportamento na época dos fatos de Ballarat e Melbourne? Você rejeitou as acusações de ter estado envolvido na má gestão dos casos de abuso: mas, arrepende-se de algo ou se recrimina por algo?
É importante compreender que a Igreja na Austrália reconheceu e melhorou radicalmente nos últimos 20 anos a resposta aos abusos sexuais contra crianças. Estou contente por ter tido um papel significativo no estabelecimento de um novo sistema independente em Melbourne, “The Melbourne Response”.
Este programa é composto de três pontos: uma investigação independente e a avaliação de cada uma das acusações por parte de um advogado com experiência; todo o apoio e a escuta possível para todos os sobreviventes, sem distinções; a indenização, com um comitê que avalia os pagamentos necessários para dar assistência às vítimas.
Meu papel e meu comportamento como arcebispo de Sidney e de Melbourne foram examinados pela Comissão Real e por uma investigação especial parlamentar. As conclusões que saíram até o momento refletem o testemunho que dei e estou contente com isso. O que se está discutindo nestas audiências da Comissão Real tem a ver com a maneira como a Igreja tratou os abusos contra menores há 30 ou 40 anos.
Nessa época, a Igreja tinha poucos procedimentos e, infelizmente, muitas vezes os autores dos crimes foram transferidos e suas maldades foram encobertas. Naturalmente, nessa época, falava-se muito menos destes temas e existia uma espécie de véu de silêncio.
Em relação às minhas contribuições, assim como de muitos outros na comunidade católica, teria gostado de ter feito muito mais. Fui um pouco passivo e um pouco cético em relação a algumas das acusações.
Durante a última audiência você indicou ter recebido notícias sobre comportamentos incorretos por parte de um professor dos Irmãos Cristãos: o que fez? Por que não fez algo a mais nessa época?
A resposta a esta pergunta foi dada na sua totalidade durante a última audiência e é importante compreender o contexto. Eu acabava de ser ordenado padre nessa época, e, embora fosse vigário-episcopal, este era um papel de assessoria para o bispo e se relacionava com a educação na diocese: não era um encargo executivo.
A notícia chegou até mim através de um jovem e não comuniquei a circunstância ao capelão da escola. Eu confiava em seu juízo, acreditava nele e inclusive considerava que quando ele o tivesse comunicado aos Christian Brothers eles teriam sido capazes de enfrentar estes casos. De fato, esse ‘irmão’ professor foi demitido. Meu comportamento foi completamente coerente, como jovem padre naquela época.
Agora, com a possibilidade de considerar as coisas com maior clareza e com as informações que agora possuo, claramente acredito que poderia ter feito mais. É uma tragédia terrível e sinto muito tudo o que sofreram todas as pessoas que suportaram estes crimes.
Os casos examinados pela Comissão Real australiana não são diferentes daqueles que aconteceram nos Estados Unidos ou na Europa: bispos que, em vez de proteger as vítimas, protegeram os carniceiros. Por que, na sua opinião, existia esta mentalidade?
Naquela época, pelo menos no mundo anglo-saxão, nós compreendíamos com menor clareza determinados aspectos do abuso contra menores. Não compreendíamos o tremendo mal nas vítimas dos abusos clericais. Os bispos e, talvez, os médicos especialistas e a polícia, não estavam conscientes dos comportamentos ocultos e recorrentes de muitos pederastas.
A Comissão Real, que está avaliando a resposta das instituições australianas, incluindo as instituições religiosas, está demonstrando que estes erros de apreciação estavam amplamente difundidos em toda a sociedade australiana da época. Talvez, seja preciso dizer que muitos bispos confiavam demais na capacidade de correção de seus padres e não se considerava por completo a possibilidade de que incorressem novamente em seus crimes.
A Igreja de hoje é capaz de enfrentar e de controlar este fenômeno? São suficientes as normas (muito duras) e as novas leis? Ou é necessário mudar a cultura e a mentalidade?
Na Austrália, as mudanças que eu e outros bispos introduzimos há 20 anos mudaram radicalmente o enfoque da prevenção do fenômeno e a maneira como a Igreja responde às vítimas. A mudança teve um efeito significativo na redução do número de abusos sexuais dentro da Igreja, garantindo que estes crimes, quando acontecem, sejam enfrentados pelo que são e são tratados com transparência e em colaboração com as autoridades civis. Estas mudanças incluem uma avaliação mais rigorosa na seleção e na formação dos seminaristas.
Nós devemos continuar a fazer tudo o que for possível para que estes terríveis crimes não se repitam. Na Igreja (e em geral poderíamos dizer na cultura), as normas e as práticas mudam de acordo com as culturas e segundo os países. A Pontifícia Comissão já está trabalhando para divulgar um maior conhecimento sobre os procedimentos exigidos e sobre as necessidades das vítimas de todo o mundo. O mais importante é contar com protocolos claros, publicamente reconhecidos e constantemente aplicados. Isto, naturalmente, cria uma mudança no clima de toda a comunidade, e está claro que a capacidade de governo dos bispos e dos superiores religiosos é fundamental.
Como você viveu o sofrimento das vítimas? Você se disse disposto a encontrar-se com elas: o que gostaria de lhes dizer?
Na quinta-feira passada, reuni-me com cerca de 10 vítimas de Ballarat, que estavam acompanhadas por pessoas que as assistiam; escutei suas histórias e seus sofrimentos. Foi muito duro, foi um encontro honesto e em certos momentos comovedor. Eu estou comprometido a trabalhar com as vítimas de Ballarat e das regiões adjacentes. Já conhecia muitas de suas famílias e conheço a bondade de muitas pessoas da comunidade de Ballarat. Esta bondade não pode ser apagada pelo mal cometido.
Todos nós queremos melhorar as coisas, sobretudo para as vítimas e suas famílias, e pretendo continuar ajudando o grupo para trabalhar com maior eficácia com os comitês e com as agências que temos em Roma e, em particular, com a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores. Um único suicídio já é muito, e houve muitos suicídios trágicos. Eu me comprometo a trabalhar com os grupos para tentar impedir isto, para que o suicídio não seja considerado uma escolha possível.
Ao longo dos anos conheci muitas vítimas. Quando me encontro com elas, minha prioridade não é dizer-lhes algo, mas escutar suas histórias e escutar com empatia, explicando-lhes os passos que a Igreja está dando para impedir que estes crimes se repitam. É importante que compreendam que acreditamos nelas. Eu não posso sentir o sofrimento, mas estou bem consciente do que sentem. Li muitos destes relatórios sobre seus sofrimentos, e foi muito angustiante para mim.
A Igreja deve procurar serviços de assistência psicológica para ajudar as vítimas a carregar o peso dos seus sofrimentos, e esta sempre foi uma prioridade para mim. Não posso prometer o impossível. Todos sabemos quão difícil é colocar tudo isso em prática. Mas, assim como o Santo Padre, comprometo-me a fazer tudo o que podemos para ajudar a curar as vítimas da praga dos abusos sexuais contra menores e para garantir que haja procedimentos para prevenir a repetição destes crimes.
Na quinta-feira passada, durante o encontro com as vítimas, comprometi-me a ajudar os sobreviventes de Ballarat para colocar à disposição deles os recursos para ajudar as vítimas e para abrir um centro de investigação para melhorar a escuta e estudar métodos de prevenção. O projeto ainda encontra-se em um estado embrionário e devemos discutir os detalhes com as vítimas, mas justamente ontem [quinta-feira dia 03] a Universidade Católica da Austrália comprometeu-se a contribuir para esta importante iniciativa, e rápido.
Ao retornar do México, o Papa disse que os atos dos padres que abusaram de menores são “sacrifícios diabólicos”, e disse também que um bispo que se limita a transferir um padre pederasta de uma paróquia para outra não é apto para o seu cargo. Qual é a sua opinião? Pode explicar o significado das palavras que você utilizou ao declarar que conta com “o apoio do Papa”? Falou com ele sobre este assunto? O que foi que lhe disse?
O Papa sempre apoiou as vítimas e sabe que esta também é minha firme posição. O Santo Padre sabe que compartilho seu compromisso na proteção dos jovens e na ajuda aos sobreviventes. Na Igreja não há espaço para padres ou religiosos pederastas. Falei sobre isto com o Papa em várias oportunidades e procuro mantê-lo informado. Diariamente, enviei ao Papa e à Secretaria de Estado uma síntese das audiências da Comissão Real.
Quando o Santo Padre disse que conto com o seu apoio, ele se dá conta, naturalmente, de que, ao me apoiar, está apoiando o trabalho que fiz e que continuo fazendo com as vítimas. Quando aconteceram as primeiras sessões sobre o caso de Ballarat, e surgiram novamente as acusações que já tinham recebido resposta ao longo dos anos, o Papa me telefonou enquanto eu estava na Croácia para comunicar-me o seu apoio. Estou profundamente agradecido a ele por este apoio e por sua lealdade.
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Em uma nota publicada durante o dia, o próprio Pe. Lombardi afirmou que as declarações do cardeal Pell e a contemporânea premiação do filme Spotlight como vencedor do Oscar de melhor filme deste ano “foram acompanhadas por uma nova onda de atenção dos meios de comunicação e da opinião pública sobre a questão do clero. A apresentação sensacionalista destes dois eventos fez com que (para grande parte do público, sobretudo quando é menos informado ou tem memória curta) se pense que na Igreja não se fez nada ou muito pouco para responder a estes horríveis dramas, e que é preciso recomeçar do princípio. Uma consideração objetiva demonstra que não é assim”.
Após recordar as iniciativas promovidas por Bento XVI e por Francisco nesta questão, o Pe. Lombardi concluiu dizendo que “se os chamados que seguiram o filme Spotlight e as mobilizações de vítimas e organizações por ocasião das declarações do cardeal Pell contribuírem para apoiar e intensificar a longa caminhada de luta contra os abusos sexuais de menores na Igreja católica universal e no mundo de hoje (onde a dimensão destes dramas é muito grande), são bem-vindos”.
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“Muitos bispos confiaram demais nos padres pederastas”. Entrevista com George Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU