26 Fevereiro 2016
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar prisões após condenações em segunda instância é uma “esquizofrenia” que vai contra a literalidade do texto da Constituição de 1988. Da mesma forma, muitas das propostas apresentadas pela campanha "10 Medidas Contra a Corrupção", do Ministério Público Federal, representam um "retrocesso punitivista" para o País. Essa é a opinião de Andre Kehdi, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
A entrevista é de Débora Melo, publicada por CartaCapital, 26-02-2016.
No último dia 17, os ministros Teori Zavascki, Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lucia e Gilmar Mendes contrariaram entendimento fixado pelo próprio STF em 2009 e decidiram que o condenado pode ser preso mesmo que ainda tenha direito a recurso. Os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, mantiveram o entendimento de 2009, mas foram vencidos.
O voto que sugeriu a alteração da jurisprudência foi proferido pelo ministro Zavascki, que também é relator de processos da Operação Lava Jato. Em entrevista a CartaCapital, o presidente do IBCCRIM disse que os ministros podem ter se “curvado” à pressão da opinião pública.
De acordo com Kehdi, o argumento de que a presunção da inocência é quebrada após condenações de segunda instância, usado pelos ministros, é um argumento de cunho fascista. “A escola italiana já afirmava que o discurso da presunção de inocência era vazio, era absurdo. Ver que esse argumento agora foi vencedor no Supremo causa grande receio. É o retorno, ainda que parcial, de ideias próprias de regimes totalitários”, afirmou.
Eis a entrevista.
O senhor vê algum paralelo entre a decisão do Supremo e a campanha contra corrupção do Ministério Público?
Evidente que sim. A decisão do Supremo, assim como as “dez medidas”, vem no sentido de reduzir os direitos individuais, de atacar direitos que estão previstos na Constituição. É um retrocesso medonho. Em seu artigo 5º, inciso LVII, a Constituição diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O trânsito em julgado é o momento em que a decisão se torna definitiva, imutável, do ponto de vista processual. A literalidade do texto é gritante.
Entre as medidas propostas pelo Ministério Público está uma emenda constitucional que permitiria que os acusados fossem presos antes do trânsito em julgado, após a decisão de segundo grau. Ou seja, o próprio MP entende que a configuração atual da Constituição Federal não permite o que o Supremo acabou de fazer, o que revela o nível de absurdo que foi essa decisão.
Na minha opinião, a mudança também não poderia ser feita por emenda constitucional. Os direitos individuais são cláusulas pétreas e não podem ser alterados. Se amanhã houver uma revolução e o pessoal resolver rasgar a Constituição, poderão fazer outra. Mas, gostemos ou não, foi essa a opção constitucional de 1988.
A decisão do Supremo pode ter sido influenciada pelo impacto da Operação Lava Jato?
É importante dizer o seguinte: o Supremo sempre se marcou por ter coragem de tomar decisões que eram vistas com maus olhos pela “opinião publicada” – não pela opinião pública, que é muito difícil saber qual é. O STF sempre tomou decisões que não necessariamente agradavam a maioria da população, e é natural que uma Corte que cuida da Constituição faça isso. Então, se 99% da população decidir que todas as mulheres têm que usar burca na rua, a Constituição impede que isso aconteça.
O Supremo Tribunal Federal não é porta-voz da população, ele é guardião da Constituição. Mas ideias fascistas estão vindo à tona. Vamos eleger um inimigo e fazer um tipo de processo diferente para ele, um processo menos garantista, sem tantas barreiras. Estamos jogando no lixo diversos dos nossos direitos em nome de uma caça às bruxas que está sendo tocada.
Luiz Fux disse que “a sociedade não aceita mais a presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer”. Já Luís Roberto Barroso disse que a presunção de inocência se desfaz após condenações em primeira e segunda instância. O que o senhor acha desses argumentos?
O discurso do ministro Fux apequena a instituição do Supremo Tribunal Federal e, ao mesmo tempo, ignora seu papel de guardião do pacto civilizatório, que é a nossa Constituição. É muito grave que se condicione o exercício de direitos fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas da Constituição, à aceitação da sociedade.
O argumento do ministro Barroso não é novo. É uma repetição daquele que ganhou destaque na Itália da década de 20 do século passado, na Itália fascista do Mussolini. A escola técnico-jurídica italiana já afirmava que o discurso da presunção de inocência era vazio, era absurdo. O código italiano de processo penal, de 1930, foi a base para o nosso código de processo penal, de 1941. E foi uma base sabidamente fascista, que vem aos poucos sendo reformada, seja por decisões anteriores do STF, seja por leis pontuais. Ver que esse argumento agora foi vencedor no Supremo causa grande receio. É, de certa forma, o retorno, ainda que parcial, de ideias próprias de regimes totalitários, totalmente avessas ao espírito da nossa Constituição Federal.
Os ministros podem ter se sentido pressionados de alguma forma?
Os ministros, aparentemente, decidiram curvados à "opinião publicada". Fiquei com a impressão de que eles decidiram acuados, para sentir que teriam sua decisão acolhida. Agora a gente vê o Supremo e o STJ tão conservadores quanto muitos dos nossos tribunais inferiores.
Em outros tempos, quando eles exerciam efetivamente o papel de guardiões da Constituição e das leis, eram achincalhados por fazê-lo, porque muitas vezes a população não entendia que um acusado tinha que responder ao processo em liberdade. Mas antes os ministros tinham a coragem de defender a Constituição acima de tudo. Com essa decisão, o receio é de uma derrocada dos direitos que levamos séculos para conquistar.
Também houve o argumento de que, em outros países, há apenas dois graus de jurisdição. A comparação é válida?
Nos Estados Unidos, por exemplo, quando há condenação em primeiro grau, a pessoa, em geral, sai presa. É isso o que a gente quer? Os Estados Unidos são o país que mais encarcera no mundo, estão com mais de 2,4 milhões de presos. A imensa maioria dos presos deles, assim com a nossa, é de pessoas negras. E eles sabem da falha do sistema deles, os erros judiciários são muitos. Aqui no Brasil, mesmo existindo a presunção de inocência, é possível responder ao processo preso, por medida cautelar. Isso não só é normal como é praticamente regra no País, onde mais de 40% dos presos não foram sequer condenados.
Comparar é interessante, mas a nossa opção está feita. Temos que respeitar a nossa Constituição. Se o próprio ministro da Justiça reconheceu que nós temos prisões medievais, porque vamos continuar insistindo nisso? Se o próprio CNJ está sustentando o projeto das audiências de custódia para tentar prender menos gente, por que vamos decidir que as pessoas devem ser presas antes do trânsito em julgado da condenação, contra o texto literal da Constituição? É uma coisa esquizofrênica.
Quais são as outras consequências da decisão, fora o aumento da população carcerária?
Em primeiro lugar, o recado de descrédito da Constituição: se o Supremo decide contra a literalidade do seu texto, se ele pode retroceder em sua interpretação, o recado para o resto do Judiciário é grave e pode gerar um maior desrespeito ao devido processo legal do que aquele que, estarrecidos, já verificamos com grande frequência nas instâncias inferiores, especialmente contra os pobres.
Em segundo lugar, os erros judiciários, que não são poucos, podem aumentar. Estatísticas mostram que alguns tribunais estaduais desrespeitam sistematicamente as posições das Cortes superiores. Deixar que a pena seja cumprida antes que a questão seja decidida no STJ ou no STF é aumentar o número de erros irreparáveis praticados pelo Estado contra nós, os cidadãos.
Sobre as dez medidas contra a corrupção, o que mais preocupa?
Existe uma campanha de marketing por trás das dez medidas, uma campanha de marketing pesada. Preocupa que elas sejam vendidas como medidas contra a corrupção. A corrupção foi eleita o inimigo da vez, então é fácil vender medidas de alteração legislativa como medidas contra a corrupção. Quem não é contra a corrupção, afinal? A pegadinha é que 99% das propostas alteram diversas garantias processuais que serão incidentes em todos os processos penais.
Então, a pretexto de recrudescer o combate à corrupção, uma parte do Ministério Público Federal - é importante dizer que essa não é uma campanha de todos os promotores do Brasil - propõe medidas que recrudescem o sistema legal inteiro, num País que tem superlotação, que tem violação de direitos humanos de toda ordem. De forma temerária, propõem-se medidas que têm por consequência evidente, se forem levadas à frente, o aumento da taxa de encarceramento do País. Consciente ou inconscientemente, é isso que elas vão alcançar.
O que de fato poderia combater o desvio de dinheiro público?
As nossas instâncias de controle administrativo não dão conta de fiscalizar tudo o que a gente faz. O TCU é um órgão que faz apurações profundíssimas, geralmente melhores do que as da Polícia Federal, mas não tem perna para acompanhar tudo e, muitas vezes, só vê a coisa quando ela já aconteceu. Depois que a corrupção aconteceu a gente corre atrás do prejuízo: pega o dinheiro de volta, quando é possível, e, na nossa lógica punitiva, prende as pessoas.
O Brasil adotou a lei dos crimes hediondos em 1990. Isso reduziu a criminalidade no País, evitou a prática de homicídios? Não evitou. Uma punição maior não necessariamente leva a uma redução da criminalidade. Então, quando se propõe o aumento da pena de corrupção para patamares astronômicos, não haverá diminuição da corrupção. Sistemas de controle mais eficientes das verbas públicas, isso sim reduziria a corrupção. Mas isso a gente não faz, ou faz em pequena medida. E acha que o direito penal vai resolver. Mas não vai resolver.
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"Ideias fascistas estão vindo à tona" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU