Por: André | 23 Fevereiro 2016
Nesta entrevista realizada no México, Jeffrey Weeks, formado no radical movimento de libertação homossexual inglês, assinala que é impossível separar o biológico do mental e do social, mas que a identidade é uma construção social.
A entrevista é de Alejandro Brito e publicada por Página/12, 15-02-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Falando de sexualidade, onde termina a biologia e começa a cultura?
É muito difícil marcar uma linha demarcatória. Obviamente, em certo nível, a sexualidade é biológica, mas também é mental. E como defendi durante muito tempo, é também social. Estes três aspectos estão inextricavelmente vinculados entre si. Não podem ser dissociados. O biológico só se torna algo operacional na sociedade a partir da interpretação social. Não há uma interação imediata, automática, entre o biológico e o social.
Dou um exemplo: o da homossexualidade. Trata-se de algo congênito, herdado ou genético? Eu creio que é um pouco as três coisas, mas também é algo social. O que importa não é saber o que origina certas emoções, sentimentos ou desejos, mas que significados esses desejos têm na sociedade. E o que assinalei há muito tempo é que a identidade é uma construção social. Isso não quer dizer que a sociedade inventa esses sentimentos; o interessante é ver como os interpretamos e como nós os posicionamos na nossa relação com os outros. Isso é um fenômeno social.
É isso que quero dizer com a construção da homossexualidade. Não é que esta seja inventada, mas são as ideias que temos sobre ela que, na realidade, são inventadas.
Você afirma que vivemos em um mundo de incertezas. Como se vive a sexualidade nessa era de incertezas?
Vivemos em um mundo incerto onde as coisas mudam com tanta velocidade que seria inaudito que não sentíssemos essa incerteza. E neste mundo tão cambiante algumas das velhas certezas, como a fé religiosa, o papel da Igreja ou o papel da família tradicional se debilitam continuamente. Alguns vivem isso com maior rapidez que outros, mas trata-se de um processo global. A incerteza parecer ser o conceito dominante em nosso tempo. Todos temos que negociar essa incerteza de mil maneiras. E muitos o fazem com a ajuda de ideias e conceitos novos. Mas quando se é uma pessoa jovem já não tem um esquema, um roteiro pré-estabelecido, que possa guiá-la, que possa seguir. Esses roteiros parecem já não existir.
Quando eu era muito jovem, há cerca de 50 anos, havia um roteiro: os rapazes deviam crescer, praticar esporte, ser masculinos, casar-se, ter filhos. Havia, naquela época, tabus sobre o sexo fora do casamento. Hoje desapareceram. Como procedemos, então, com as novas incertezas? Algumas pessoas escolhem, por exemplo, a fé e se tornam mais religiosas, inclusive fundamentalistas. Todos temos que negociar e administrar esses dilemas, e muitos podem fazê-lo, mas há também pessoas que não podem negociar, que são as vítimas dessa incerteza por não ter as capacidades para lidar com ela ou que temem pelas consequências de ter que fazê-lo.
Há também outros fatores de incerteza social que preocupam os governos: o número de gravidezes na adolescência, de casos de infecções sexualmente transmissíveis, ou crises como a da Aids, que provocam ansiedade, temores como os dos anos oitenta de que seríamos mortos pela praga. E há momentos em que o pânico se apodera de tudo, e nesses momentos tudo pode dar errado, os governos podem agir de um modo que, em princípio, parece sensato, mas que depois têm consequências não previstas. Os governos devem então agir com cuidado sobre os riscos que existem em nossa cultura.
Um exemplo clássico na Grã-Bretanha é o da ansiedade relacionada com o abuso infantil. Há 20 ou 30 anos era um tema totalmente ignorado. Havia gente famosa que não era castigada por esse tipo de abuso. Mas hoje a suspeita está em todos os lados e é mais difícil agir de modo racional. Algo característico de um período de incerteza é que entramos em pânico e nos tornamos temerosos, e chegamos a um estado anímico em que já é difícil ter políticas racionais.
De que maneira estão influenciando em nossa vida sexual a internet e as redes sociais?
Creio que estamos apenas no início de mudanças extraordinárias no que se refere à internet. Estamos nisso apenas 20 anos, o que não é nada no arco da História. Mas os efeitos já são notáveis: a relação pela internet, por exemplo, já é algo massivo. Está mudando a forma como nos conhecemos, alenta-se, além disso, a proliferação de identidades.
É mais fácil sair do closet como gay quando o fazes de maneira anônima e expressas melhor tuas fantasias quando o fazes no anonimato on-line. Muda-se a natureza da interação social. Há lados positivos nisso, e também negativos. Sabemos que há uma exploração fácil e abuso sexual na internet. Sua verdadeira identidade, o que na realidade é, não está necessariamente aí. A internet também tem enormes possibilidades comerciais.
O que não se muda é a natureza da interação sexual. Estimula a masturbação, podes ter fantasias sexuais on-line, mas se quiser namorar, relacionar-te com alguém, tem que necessariamente encontrar-te com essa pessoa. O que oferece são maneiras novas de encontrar alguém. Não muda a essência da intimidade. Deve então estabelecer a distinção entre o que pode e o que não pode fazer.
Você afirma que vivemos uma grande transição em termos de sexualidade. O que a caracteriza?
Procuro juntar todos os elementos dessa ideia em um único conceito, que não é o da revolução sexual. Procuro distanciar-me dessa ideia. As pessoas falam dessa revolução dos anos setenta, mas olhando para trás, para essa década, como sociólogo e historiador, essa grande revolução não mudou na realidade a vida de muitas pessoas. Mudou a vida de uma elite. Pode ter mudado os termos de um discurso, mas a vida da maioria das pessoas transcorreu como antes.
Mais que ver na revolução sexual um grande big-bang dos anos setenta com diversas repercussões no mundo inteiro, o que eu vejo é um processo contínuo, uma longa revolução inconclusa. Chamo-a de uma grande transição histórica, uma tentativa para colocar as coisas em um marco histórico mais amplo. Fala-se da transição demográfica nos séculos XVIII e XIX na Europa, onde, com a industrialização, passamos gradualmente de um casamento precoce, com um modelo de família numerosa, com o aumento da população, a outro modelo, no século XX, onde, com a diminuição do índice de nascimentos, as famílias ficam menores. E assim chegamos até a situação atual europeia onde nos encaminhamos para um declive populacional. E isso é a transição demográfica.
Eu queria um conceito similar para falar das mudanças nas atitudes sexuais e nas atitudes com respeito à intimidade desde os anos 1950. E das principais características, como a implosão dos valores tradicionais, a afirmação do individualismo, uma confiança cada vez maior na moralidade pessoal, e as séries de separações, como as chamo, entre a heterossexualidade e o casamento.
O exemplo clássico é o surgimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Há 30 anos, isso teria sido inconcebível. Há muitas coisas em conjunto: o surgimento de uma atitude mais aberta em relação à homossexualidade, o questionamento do gênero tradicional com a emergência de vozes transgênero. E, talvez, o mais importante de tudo, a mudança na situação das mulheres, o que não quer dizer que seja o fim da opressão feminina, mas as mulheres já não a toleram. Agora a desafiam. Há, assim, toda uma série de mudanças que tento reunir no conceito de grande transição.
E isso significa transitar de uma cultura baseada na tradição para outra na qual há maior individualismo, maiores opções. Para dizê-lo de maneira mais rasa, já não assumimos que todo o mundo é heterossexual e vai se casar e ter filhos em um ciclo muito claro. Falamos agora mais em termos da complexidade na vida das pessoas. As pessoas, com efeito, formam casais e se casam e têm filhos, mas depois se separam e voltam a se casar novamente, e há agora duas famílias, e casam ainda outra vez, e poderiam ser já três ou quatro famílias.
Tudo agora é negociável. E todos os seus filhos não terão que se tornar necessariamente heterossexuais, mas poderiam alguns ser gays ou lésbicas, inclusive transgêneros. E tudo isso aconteceu de maneira incrivelmente rápida em termos históricos. Encaminhamo-nos para a aceitação dessa complexidade e dessa variedade da vida íntima.
É por isso que falamos hoje de diversidade sexual em vez de homossexualidade?
Com efeito, são duas coisas diferentes. O que o discurso da diversidade procurar fazer é reconhecer que temos que transcender a divisão binária entre homossexualidade e heterossexualidade. Muita gente não é nem um nem outro. Podem mover-se entre vários modos de vida; um homem pode relacionar-se com outro homem, com um adolescente ou com uma mulher.
Pode redescobrir na idade madura sua própria homossexualidade, ou pode fazer todas estas coisas de modo intercambiável. Algumas pessoas não conseguem acomodar-se à divisão binária entre homens e mulheres, e temos assim a emergência das categorias transgênero. Isto sempre foi assim. A história está cheia de semelhantes exemplos.
No passado – nos últimos 200 anos – tratamos de aglutinar tudo com esta ideia de que existe essa divisão binária, onde uma forma é natural e a outra é antinatural. É como uma relação hierárquica. Agora existem milhares de vozes novas que dizem: o que há de mau com a minha sexualidade, com as minhas opções de gênero? E por isso já não se pode dar como certo a naturalidade dessas categorias.
Você participou do movimento de libertação gay nos anos setenta, quando a ideia do casamento estava contraposta às reivindicações libertárias do momento.
O movimento de libertação homossexual foi algo que nos anos 1970 abriu, para mim, enormes possibilidades que desafiavam o sistema de crenças e preconceitos no qual cresci. Como muitas outras pessoas da minha geração, acreditei ser necessário desafiar as instituições tradicionais, entre elas a mais importante, o casamento, que era a que nos excluía, a que nos negava, e que de fato nos transformava em cidadãos de segunda classe. Por isso, muitas feministas e muitos liberacionistas gays éramos, a este respeito, muito críticos. As coisas mudaram muito.
Continuo respeitando as pessoas que não desejam seguir as regras institucionais, mas há muita gente que teve problemas para validar sua própria sexualidade, suas relações. A crise da Aids teve um papel muito importante. Houve dezenas de milhares de casos de pessoas que morriam de Aids e a cujos amantes se negava todo reconhecimento, quer fosse no hospital ou depois do enterro. Isso dramatizou a ausência de legitimação social.
E também há o caso da falta de reconhecimento de direitos parentais, não apenas no caso de mães lésbicas que viam seus direitos negados, mas também no de muitos gays que desejavam ser pais. Tudo isso acrescentou a necessidade de legitimar as relações e confluiu na primeira campanha pelo casamento igualitário. Devo confessar que fui pego de surpresa pela rapidez do movimento a favor deste casamento. Eu era muito cético sobre sua pertinência, e também sobre sua possibilidade.
No projeto sobre intimidades entre pessoas do mesmo sexo que fiz há 20 anos entrevistei muitas pessoas, entre as quais alguns defendiam o direito a casar-se como algo que contribuía para a igualdade, enquanto que a maioria o criticava como algo que copiava as instituições heterossexuais. A mudança foi muito grande nestes últimos 20 anos. Muita gente pode decidir não casar-se ou estar em uniões civis, mas aceita a necessidade de ter um reconhecimento total desse direito.
Por isso, é importante para a gente, proporciona-lhes reconhecimento social. Não cria, mas valida, o que muitos casais vieram conquistando com o tempo, o direito de formar relações sólidas, longas e estáveis. Isso é muito importante para quem quer fazê-lo. Não diria, no entanto, que todo o mundo deve fazê-lo, ou que se trata da nova normatividade. É apenas uma opção entre outras em um universo pluralista.
É a crise da instituição matrimonial que está possibilitando o casamento entre pessoas do mesmo sexo?
Na medida em que o casamento tradicional heterossexual está se tornando menos normativo e inevitável, o reconhecimento do casamento igualitário é cada vez menos um problema para os governos e a sociedade em geral. O casamento heterossexual já não é a entrada necessária à vida adulta, como tradicionalmente acontecia. Agora é uma opção entre outras no mundo heterossexual. Acrescentar, então, o casamento homossexual não é um salto conceitual muito grande.
O casamento tem a ver hoje mais com o reconhecimento social e a validação do que com situações institucionais. É interessante ver que os países mais católicos foram os mais lentos em adotar esta situação. A tendência era mais favorável em países protestantes, onde durante séculos se promoveram noções de tolerância e convivialidade. Mas a mudança recente mais significativa deu-se quando a Irlanda católica votou majoritariamente a favor do casamento igualitário. Ou quando a Suprema Corte dos Estados Unidos reconhece esse casamento.
Isso destaca o fato de que as forças tradicionais da ordem social e da moralidade tradicional, como as igrejas, debilitaram-se sob o impacto da mudança social. E no contexto dos escândalos da Igreja católica, dá-se o caso de que a Irlanda, considerado o país mais católico da Europa, desobedece, em um referendo, à hierarquia e vota pelo casamento igualitário.
Quero acrescentar que ao mesmo tempo vemos o surgimento de novos movimentos religiosos fundamentalistas, de certo absolutismo. A religião não está morrendo, mas, pelo contrário, em muitas partes do mundo está se expandindo aceleradamente. Vemos uma mudança da velha tradição, altamente hierarquizada, da Igreja católica, para algo mais pessoal e mais evangélico, com um acesso direto a Deus, o que, de uma maneira estranha, é uma imagem espelho deste novo individualismo de que falo, que no fundo é o desejo das pessoas seculares de buscar sua própria salvação ao tratar de se criar uma nova vida.
Perante uma crise da Aids que está longe de ser resolvida, como se explica a renúncia de alguns a praticar o sexo seguro e abandonar-se a práticas de risco?
Parece-me algo desconcertante. Creio que no caso do bareback (sexo sem camisinha) há vários aspectos que devem ser considerados. Em uma primeira geração há, evidentemente, um certo cansaço com o dever da cautela, a negativa de passar a vida inteira sendo cauteloso. É algo que pessoalmente não aprovo, mas que posso compreender. Também há o fato de que o sexo seguro não significa necessariamente não correr nenhum risco, mas controlar o risco. Trata-se de calcular o que é verdadeiramente arriscado e o que não é. E isso faz com que algumas pessoas façam coisas arriscadas.
Mas algo importante é a transgressão, o desejo dos liberacionistas gays de serem transgressores. Há um elemento forte na comunidade queer que acredita na importância de continuar sendo transgressor. Trata-se de uma forma de transgressão que coloca vidas em risco. Algumas pessoas acreditam que o risco é importante e faz com que a vida valha a pena. Mas o que importa entender é que não se trata apenas que as pessoas possam ser estúpidas (embora haja casos), mas que é algo que faz parte de uma complexa rede de emoções e de identidades que mudam e do desejo de seguir desafiando a ordem tradicional.
E diante dessa situação, quão efetivas são as estratégias profiláticas em curso, como fazer tratamento para evitar infectar-se em relações de risco?
Existem, evidentemente, e o notável é o auge de um repertório de auxílios sexuais, como o Viagra. A medicina intervém na sexualidade não apenas para prevenir, mas também para procurar mais prazer. Neste contexto cultural, não basta dizer às pessoas que não deve haver certas coisas, mas oferecer-lhes uma maior flexibilidade em suas práticas. Essas medidas profiláticas não devem ser vistas como salvações, pois embora haja agora tratamentos que podem prevenir a reprodução do HIV, não quer dizer que previnam a reprodução de outras infecções de transmissão sexual. Ou seja, pode diminuir-se um conjunto de riscos aumentando outros ao mesmo tempo.
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“A incerteza parece ser o conceito dominante em nosso tempo”. Entrevista com Jeffrey Weeks - Instituto Humanitas Unisinos - IHU