10 Fevereiro 2016
"As vitórias administrativas e judiciais alcançadas por empresas como a Monsanto, em matéria onde esteja em causa o meio-ambiente, devem-se muito aos valores financeiros da chamada liberdade de iniciativa econômica, cujos limites têm um poder de reconhecimento legal sabidamente elástico, não raro de dimensões planetárias, hoje identificados na chamada globalização dos mercados", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Vanesa Sartori é uma vereadora na cidade de Malvinas Argentinas, atualmente envolvida em uma luta política extraordinariamente importante para impedir a instalação de uma fábrica processadora de milho transgênico que a multinacional Monsanto está empenhada em criar, desde 2012, na cidade onde ela exerce o seu mandato.
Catequista e psicóloga, denunciou o fato em uma carta enviada para o próprio Papa Francisco, no dia 10 de janeiro passado, conforme noticia a Carta Maior de 24 do mesmo mês, dizendo, entre outras coisas:
“...o motivo principal, mas não o único, pelo qual escrevo é para comentar e compartilhar o estado de preocupação que temos como vizinhos da cidade, devido a uma nova tentativa da Monsanto para instalar a em nossa cidade a maior fábrica processadora de milho transgênico do mundo a 900 metros das nossas casas e escolas”. {...) “Creio que não é necessário recordar quem é a Monsanto, basta dizer que é uma das empresas que mais tem destruído e contaminado o planeta, adoecendo centenas de pessoas, matando milhares. Uma empresa que se caracteriza por corromper governos e ocultar informação sobre os efeitos reais dos seus produtos” {...} “...desde que o presidente Mauricio Macri assumiu o país foi palco de vários atropelos aos direitos sociais, civis, trabalhistas e constitucionais”; “enquanto isso, em Buenos Aires, o atual ministro de agricultura é um ex-gerente da Monsanto”.
No dia 16 do mesmo janeiro, o Papa Francisco, por um simples e-mail, enviou a sua resposta: “Obrigado por sua carta e por todo o bem que você tem feito. A você, à sua família e à comunidade paroquial de Malvinas Argentinas lhes transmito a certeza de que levam minhas orações e as minhas bendições”. {...} “...não se esqueçam de rezar por mim.
Não se pode, sem conhecimento de todos os detalhes processuais de uma ação judicial, com os direitos todos ali em causa, formar-se qualquer juízo sobre sua procedência, ou não. Embora à distância, porém, a notícia em si já enseja antecipar-se o peso que a velha polêmica, presente em todas as ações submetidas ao Poder Judiciário, relacionadas com direitos humanos sociais implicados na defesa do meio ambiente e da saúde pública, vai aparecer na sentença do caso denunciado pela vereadora. Quando esses direitos se encontram em qualquer conflito, a aplicação das leis onde estão previstos frequentemente hesita e as vezes fica até dependente de algumas alternativas praticamente inseparáveis de valores, sejam esses financeiros (prestações em dinheiro, a cargo do Poder Público) ou éticos, axiológicos (urgências de satisfação imediata de uma necessidade ligada à vida ou à dignidade das pessoas, porventura presentes no caso).
Na carta da vereadora Vanesa para o Papa aparece bem acentuada essa segunda hipótese. Para ela, a fábrica está pondo em risco não só o meio-ambiente, sabidamente um bem adscrito a um interesse difuso e, por isso mesmo, não só titulado pelo povo da cidade de Malvinas e da Argentina, como também o da saúde das pessoas afetadas diretamente pela produção do tal milho transgênico, uma questão, por sinal, ainda de muita discussão no Brasil, sobre a obrigatoriedade ou não de a rotulagem dos produtos transgênicos postos a venda advertirem compradoras/es de serem compostos com aquele risco.
As vitórias administrativas e judiciais alcançadas por empresas como a Monsanto, em matéria onde esteja em causa o meio-ambiente, devem-se muito aos valores financeiros da chamada liberdade de iniciativa econômica, cujos limites têm um poder de reconhecimento legal sabidamente elástico, não raro de dimensões planetárias, hoje identificados na chamada globalização dos mercados.
Esse poder, predominantemente privado, é muito superior ao dos direitos sociais, pois a propriedade sobre dinheiro age onde bem deseja, não dependendo do Estado, como acontece com os direitos sociais, embora a possibilidade da validade desses ser imposta, também, entre particulares, possa ser considerada crescente.
A balança que pesa essa diferença de poder, especialmente delicada quando entram em conflito direitos patrimoniais e direitos sociais, muito raramente decide em desfavor dos primeiros, pois, enquanto esses são atribuídos pelo poder do dinheiro que os adquire, os sociais, embora considerados inerentes à vida das pessoas e, portanto, não adquiridos como os patrimoniais, ficam dependentes do reconhecimento, caso a caso, dessa mesma condição, ou seja, a de serem inerentes.
A dignidade humana, como fundamento deles, não aparece em nenhum documento, registro e em nenhuma nota fiscal, como ocorre com os direitos patrimoniais. Por isso mesmo, esse reconhecimento não escapa da escala subjetiva de valores éticos de quem os julga, aí surgindo uma distância abissal entre a sua eficácia (reflexo efetivo de sua existência e validade na concretude dos seus efeitos previstos legalmente) e a dos direitos patrimoniais, sempre retornando a se acender, caso a caso, a discussão sobre se, porque, quando e como podem, ou não, ser reclamados em juízo.
Justamente por não serem exclusivamente individuais, o grau do respeito a eles devido, transcende uma simples questão posta entre autor/es e réu/s, não tendo como fugir da sensibilidade social das/os juízas/es, dos valores humanos, éticos, culturais, inspiradores das suas sentenças, hipótese para a qual nenhuma lei (ressalvada justamente a lei moral) tem capacidade segura de garantir com precisão.
Hans Kelsen, quando escreveu a sua Teoria Pura do Direito, independentemente de toda a polêmica posterior que criou com ela, deixou as mentes e as mãos de juízas/es livres de se preocuparem com isso: “Na medida em que a ciência jurídica em geral tem de dar resposta à questão se saber se uma conduta concreta é conforme ou é contrária ao Direito, a sua resposta apenas pode ser uma afirmação sobre se essa conduta é prescrita ou proibida, cabe ou não na competência de quem a realiza, é ou não permitida, independentemente do fato de o autor da afirmação considerar tal conduta como boa ou má moralmente, independentemente de ela merecer a sua aprovação ou desaprovação” (Coimbra: Armênio Amado Editor, 1974).
Embora a história do direito registre uma torrente de opiniões doutrinárias e muitos julgamentos convincentes, rejeitando essa lição, o dogma do chamado “respeito à lei”, como lá se defende, além de servir para “explicar” muita sentença injusta, tem dispensado o trabalho judicial de questionar a sua legitimidade, coisa que os limites de uma crítica como essa aqui nem permite aprofundar.
A resposta enviada pelo Papa à vereadora de Malvinas Argentinas, entretanto, autoriza imaginar-se que ela já contava previamente com a adesão do Papa à sua luta política. No ano passado, o Papa instituiu um “Ano da Graça da Misericórdia”, a ser encerrado em 20 de novembro deste 2016. É suficiente ler a sua mensagem, disponível na internet, para perceber-se a fidelidade do Pontífice à própria etimologia da palavra misericórdia. A sua é do latim, “miserere”, ou seja, ter compaixão de miseráveis e pobres e “cordis”, de coração. São sete as “obras de misericórdia corporais”, que o Papa convida quem quiser ouvi-lo a praticar neste ano: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar as/os presas/os e enterrar os mortos. Misericórdia, então, é muito mais do que o senso comum generalizado lhe atribui, como um sinônimo limitado de perdão. Esse constitui apenas uma das outras sete obras, mas aí espirituais.
Quais dessas necessidades corporais, essencialmente ligadas à vida, não têm a sua satisfação prevista como conteúdo de direitos humanos, tanto individuais quanto sociais? O ordenamento jurídico que os prevê garante sua “saída” em lei, mas garante a sua “chegada” em todas as pessoas? Não! Mas as obras de misericórdia sim, quando assumidas individual e socialmente, a solidariedade histórica de iniciativas desse tipo o confirmam. A aplicação da lei, então, como prevista exclusivamente no ordenamento jurídico, na medida em que reconhecesse a sua insuficiência, poderia supri-la com o apoio do “Direito achado na rua”, do “pluralismo jurídico”, do tão combatido direito alternativo, todos aqui tantas vezes lembrados, escolas de direito radicalmente democráticas e abertas a valores humanos como aqueles preconizados nessas obras lembradas pelo Papa.
O protagonismo popular, sujeito dessas iniciativas, poderia ser reconhecido pelo Estado, como já está acontecendo em algumas faculdades de Direito, pela ponte que elas fazem com o poder deste, ressalvado melhor juízo, como parte integrante da “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”, na forma defendida por Peter Haberle, por exemplo.
A vereadora Vanesa Sartori, de Malvinas Argentinas, não está só, portanto, como o Papa também não está. Na reunião que manteve com os movimentos populares, em sua visita a Bolívia, no ano passado, deixou claro: “Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 Ts” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais.” “Não se acanhem!" “...a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro.”
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Onde os direitos humanos sociais não chegam, a misericórdia chega? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU