15 Janeiro 2016
"As afirmações atribuídas a Guzmán nos lembram que o negócio que ele encabeça em escala internacional não seria possível sem a conivência dos sistemas financeiros do mundo – incluindo, em forma destacada, o estadunidense. Sem o fluxo constante e descontrolado de armas que cruzam a fronteira mexicana e sem a cumplicidade das autoridades estadunidenses, que pouco ou nada fazem para combater o grave problemas dos que sofrem de dependência química em seu território, esse mercado não seria tão vigoroso", constata o editorial de La Jornada, reproduzido por Carta Maior, 13-01-2016.
Eis o editorial.
Três dias depois da publicação da entrevista com Joaquín “El Chapo” Guzmán para a revista The Rolling Stone, realizada pelo ator estadunidense Sean Penn, podemos dizer que sua figura adquiriu uma notoriedade equiparável com a de um popstar, assim como a própria entrevista teve tanta ou mais repercussão que a própria captura do narcotraficante, na sexta passada (8/1), em Los Mochis, Estado de Sinaloa.
As versões oficiais afirmam que a entrevista em si foi um dos fatores que levou à captura de El Chapo, mas independente disso, a reação dos dois governos que iniciaram processos penais contra o líder do cartel de Sinaloa – México e Estados Unidos – mostraram a desconformidade que provoca nas esferas de poder a realização e difusão desse tipo de conteúdo. Enquanto o governo mexicano afirma que investigará se a conversa publicada pela revista configuraria possíveis atos ilícitos, a Casa Branca a qualificou de “exasperante”, e afirmou que Barack Obama ficou “horrorizado” ao conhecer o conteúdo da entrevista, na qual El Chapo faz alarde de suas atividades de tráfico de entorpecentes.
Certamente que, num país como o México, onde dezenas de jornalistas morrem violentamente devido ao seu trabalho de informar a respeito do entorno do crime organizado, a publicação de uma conversa entre um dos delinquentes mais perigosos, ou talvez o mais perigoso do mundo, e uma celebridade de Hollywood pode parecer uma frivolidade.
Entretanto, e sem se preocupar tanto com a forma, a entrevista em si revela uma realidade dura: a que a penetração do narcotráfico em várias esferas da vida pública, social e econômica parece ser, infelizmente, algo inquestionável.
Efetivamente, as afirmações atribuídas a Guzmán nos lembram, por exemplo, que o negócio que ele encabeça em escala internacional não seria possível sem a conivência dos sistemas financeiros do mundo – incluindo, em forma destacada, o estadunidense. Sem o fluxo constante e descontrolado de armas que cruzam a fronteira mexicana e sem a cumplicidade das autoridades estadunidenses, que pouco ou nada fazem para combater o grave problemas dos que sofrem de dependência química em seu território, esse mercado não seria tão vigoroso. Essas circunstâncias acabam expondo as críticas de Washington contra a publicação aos comentários de que a reação se trata de um ato de hipocrisia.
Enquanto se formulam duros questionamentos públicos à ética dos entrevistadores e dos editores que publicaram a entrevista com El Chapo, vale a pena lembrar que a moralização, em assuntos relacionados com o narcotráfico, deveria começar pelas próprias instituições de segurança. O relato a respeito dos fatos que levaram à entrevista mencionam de forma significativa que, no caminho para a reunião com o narcotraficante, o comboio que transportava Penn e seus acompanhantes passou sem problema por um posto de controle militar e que os uniformados inclusive reconheceram os supostos filhos de Guzmán entre os que integravam a comitiva.
O fato é que essa passagem, ainda que sem a descrição do ponto exato onde aconteceu, é uma mostra do nível de infiltração que as estruturas criminais têm nas corporações policiais e militares, situação que está documentada de forma muito mais ampla e detalhada que na entrevista de Rolling Stone, em vários outros trabalhos jornalísticos. Um exemplo claro são as próprias fugas de El Chapo dos presídios de segurança máxima de Puente Grande e Almoloya, que não são concebíveis se não graças a uma rede de omissões e cumplicidades por parte das autoridades carcerárias.
A contraparte dessa realidade que assola as instituições mexicanas é o conteúdo dos informes dos membros da Polícia Federal que participaram da captura de Guzmán: de acordo com os documentos, minutos depois do enfrentamento inicial, o narcotraficante, a bordo de um veículo roubado, tentou intimidar e subornar os policiais, mas os mesmos recusaram as ofertas, prenderam El Chapo Guzmán e um cúmplice e os levaram ao motel onde finalmente foi entregue a oficiais da Marinha.
A admirável atitude dos servidores públicos não só foi determinante na detenção de um dos delinquentes mais buscados do mundo como também envia uma mensagem clara: a urgência e a necessidade de que as próprias autoridades adotem, como prioridade, a promoção do civismo em todos os âmbitos da vida pública. A capacitação e moralização dos integrantes das forças de segurança é outra medida de óbvia necessidade, e muito mais eficaz na tentativa de combater o crime organizado.
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Chapo Guzmán: ética e hipocrisia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU