14 Janeiro 2016
O arquiteto Guilherme Wisnik fala sobre urbanismo e comenta a administração de Haddad, em SP
Uma conversa sobre urbanismo com o arquiteto Guilherme Wisnik pode parecer muitas vezes com uma conversa sobre filosofia, política, sociedade ou história. Bem, a impressão é causada um pouco por causa da formação e atuação do interlocutor e muito pelo fato de que essas coisas estão mais interligadas do que se possa imaginar. Nas ruas e praças de uma cidade, estão em jogo, de fato, aspirações filosóficas, políticas, sociais e históricas. Prova disso é que em São Paulo e outras cidades brasileiras, o espaço público está passando por disputas novas e constantes. Para Wisnik, nada poderia ser mais saudável que isso.
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e mestre em História Social, Wisnik passeia por diferentes campos do conhecimento e atua como crítico de arquitetura, tendo sido curador da X Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013. Na entrevista abaixo, ele comenta a busca de parte da sociedade civil por uma maior participação na esfera pública – o que tem se refletido no uso mais intenso de espaços públicos – e faz uma breve análise da gestão e dos desafios de Fernando Haddad, prefeito de São Paulo.
A entrevista é de André de Oliveira, publicada por El País, 13-01-2016.
Eis a entrevista.
Quem anda por alguns bairros de São Paulo percebe que há algo de novo nas ruas. Mais gente, mais vida. Você concorda?
O Brasil é um país no qual a esfera pública não é muito clara, não é muito forte. A expressão mais conhecida para isso é o conceito de patrimonialismo. É o costume de tratar o que é público como se fosse privado e isso se reflete também no modo como usamos a cidade. O que já foi parque ou praça, por exemplo, às vezes aparece gradeado, privatizado. Isso é muito comum no Brasil. Agora, o que é realmente surpreendente é esse movimento recente de reivindicação das ruas e da cidade como forma de cidadania. Isso ainda é muito novo e em São Paulo eu identifico a Praça Roosevelt como um lugar pioneiro desse movimento. Depois de uma reforma com pontos arquitetônicos problemáticos, mas com a virtude de ter aberto a praça para seu entorno, ela virou de fato um espaço público.
A praça passou a ser usada, mas também é fonte constante de desavenças.
Sim. Só que, na verdade, isso é fundamental. O espaço público, é importante dizer, é um lugar de conflitos. Lá, como em qualquer outro espaço público saudável, há disputa entre skatistas, famílias e moradores. Esse conflito é um sinal positivo. O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica, uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele não está cumprindo sua função. Por isso, eu coloco a Praça Roosevelt como um marco de São Paulo. Na esteira dela, surgem movimentos civis espontâneos que buscam transformar outras regiões, como o Largo da Batata, o Parque Augusta e o Minhocão.
Mas esses movimentos não estão concentrados apenas em São Paulo, não é?
Verdade. O Ocupe Estelita, no Recife, é o movimento mais simbólico do Brasil nesse ponto. Também tem a Praia da Estação, em Belo Horizonte. Todos seguem uma lógica parecida. O que me parece, é que a sociedade civil está querendo participar da gestão também. É a ideia do common (comum), defendida por Antonio Negri e Michael Hardt. O common é diferente do público. Ele abrange uma participação dos cidadãos em um espaço, numa forma de gestão compartilhada. São formas híbridas que hoje ganham grande relevância. O novo Largo da Batata, em São Paulo, um projeto problemático que entregou uma praça desértica para a população, foi revertido em um espaço vivo rapidamente com o movimento A Batata Precisa de Você.
E porque esses movimentos estão aparecendo agora?
São várias explicações, uma delas é que isso parece ser uma espécie de zeitgeist, um espírito do mundo contemporâneo, identificado, guardadas as diferenças, em outros lugares do mundo, como na Espanha com os Indignados da Porta do Sol, em Madri. No Brasil, é simbólico que em 2013 (ano das grandes manifestações de junho) quando eu fui curador da Bienal de Arquitetura, cujo título era A cidade: modos de fazer, modos de usar, a dimensão que tenha ganhado mais destaque na exposição tenha sido a dos “modos de usar”. Em um momento em que as pessoas demonstravam um interesse grande pelos modos de usar da cidade e das ruas, elas também saíram a elas para reivindicar mais participação. Acho que depois da redemocratização e do crescimento proporcionado pelos anos Lula, as pessoas acharam que a reforma urbana seria feita, que a cidade seria democratizada, mas não foi. Elas cansaram de esperar e estão começando a fazer por conta própria.
E o que significa quando a Prefeitura de São Paulo abre aos domingos a Avenida Paulista apenas para a circulação de pedestres?
É curioso, porque esses movimentos costumam se estruturar e funcionar em uma relação de antagonismo ao Estado. É a sociedade contra o Estado. O que acontece quando o Estado incorpora os anseios desses movimentos? A Paulista Aberta é um exemplo disso e essa é a parte interessante da atual gestão de São Paulo. Tem gente que discorda, claro, mas eu acredito nisso. As ciclovias e o projeto de Braços Abertos, que trabalha com dependentes químicos e, ao mesmo tempo, tenta retomar uma região abandonada, também são bem simbólicos disso. São formas que repensem o modo tradicional de lidar com questões antigas, dando novos usos ao espaço público. Outra coisa curiosa é o fato de que o Fernando Haddad não é um caso isolado, há alguns outros prefeitos no mundo que estão assumindo essa posição de protagonismo urbano e eles não são necessariamente de esquerda. O caso mais simbólico por aqui é o do Enrique Peñalosa, prefeito de Bogotá, na Colômbia.
Apesar da boa avaliação de uma parte dos urbanistas, o prefeito Fernando Haddad tem sido muito mal avaliado pela população.
Eu fico bastante desiludido ao ver essa má avaliação. Acho que por um lado ele está pagando o pecado pelo péssimo momento que o partido dele vive e, por outro, ele mexeu em privilégios individuais muito arraigados em São Paulo. Por exemplo, a ciclovia atrapalha os valets, as pessoas ficam sem lugar para parar o carro delas, mas essa lógica do carro é muito errada. A política dele está indo contra isso, está dando privilégio para equipamentos públicos. Isso tudo é muito simbólico, porque lá atrás, nos anos 60 e 70, o espaço público foi preterido em lugar das rodovias urbanas, das avenidas, das ruas, hoje há uma retomada por esses espaços. Fazer o caminho inverso agora é muito importante: matar o rodoviarismo em prol do pedestre, das pessoas.
E qual será o principal desafio dele nas eleições municipais de 2016?
Transformar em capital político as coisas, nem sempre fáceis de enxergar, que ele tem feito na cidade. O novo Plano Diretor, por exemplo, que não é uma garantia de que as coisas vão melhorar por si só, é um avanço e tanto para São Paulo. Se os mecanismos e diretrizes que estão sendo criados para que o plano se efetive funcionem, a cidade sofrerá mudanças muito positivas nos próximos anos. O imposto progressivo sobre propriedade é um dos pontos mais interessantes, pois altera a lógica da especulação imobiliária. Quem deixar imóvel vazio para especular, será sobretaxado. É o que se chama de fazer vale a função social da propriedade. Estimular a construção de prédios sem garagem, com fachadas ativas, em que no lugar de guaritas e grades, um térreo comercial se abre para as calçadas, é outro ponto que fará da rua um lugar vivo. Enfim, eu tenho a impressão de que se o Haddad não se reeleger, daqui algum tempo sua administração será vista como um ponto de virada fundamental para a história da cidade.
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“Na era Lula achávamos que a cidade seria democratizada, mas não foi” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU