14 Outubro 2015
Num texto traduzido por “Outras Palavras”, e que pareceu para alguns espantoso, o sociólogo Immanuel Wallerstein sustentou, há dias: vivemos, em plano global, um giro – ainda que leve – à esquerda. Na entrevista a seguir, este pensamento é complementado por outro sociólogo. O catalão Manuel Castells diz que é cedo demais para chorar a suposta “morte” da série de grandes rebeliões iniciadas em 2011: Primaveras Árabes, Indignados (Espanha), Occupy (EUA), Parque Gezy (Turquia), Jornadas de Junho (Brasil) e outras.
Seria delírio? Occupy e Indignados não acabaram? As Primaveras Árabes e as Jornadas de Junho não degeneraram ou em regimes ultra-autoritários ou num movimento claramente conservador?
Castells pede que observemos: as grandes mudanças sociais têm sua própria dinâmica e tempo. Foi assim, frisa ele, com a série de revoluções democrático-populares na Europa, a partir de 1830. Por que deveríamos, agora, esquecer que ainda podem estar rolando os dados.
Para o catalão, autor de “Redes de indignação e esperança” (agora com nova edição ampliada), há base material por trás da possível rebeldia. A inovação tecnológica tornou possível a democracia em rede; a classe política tradicional não a acolheu; surgiu uma nova crise de representação; esta pode ser resolvida ou pelo triunfo de formações originais, como o Podemos e o Syriza, ou pela direita xenófoba, que cresce em diversos países. Optar pela desesperança, ou agarrar-se à institucionalidade seria, segundo este raciocínio, entregar antecipadamente os pontos.
Em suas respostas ao jornalista Alex Rodriguez, da revista argentina “Ñ”, Castells também recomenda ter cuidado com as análises segundo as quais a internet está perdida, tendo se convertido em ferramenta global de espionagem contra os cidadãos. É apenas parte da verdade, sugere ele: a disputa está se dando agora, diante de nossos olhos. Não nos limitemos a condição de espectadores…
A entrevista é de Alex Rodriguez, publicada por Outras Palavras, 13-10-2015. A tradução é de Inês Castilho.
Eis a entrevista.
Estamos começando uma nova era?
Em termos tecnológicos, econômicos e culturais, começamos faz tempo. Agora iniciamos uma nova era em termos políticos e institucionais.
E como será?
O que sabemos é que não será como antes. As instituições atuais não têm legitimidade, e isso, nas sociedades democráticas, não pode durar muito tempo. De fato, não está durando. As instituições serão, por um lado, cada vez mais supranacionais, como a União Europeia (UE), mas, por outro lado, as identidades, em sua maioria, serão cada vez mais locais, específicas, nacionais ou religiosas, ou étnicas.
E aqui há uma contradição fundamental: há uma sociedade global, uma economia global conectada em rede, mas ao mesmo tempo as pessoas, diante dessa mudança vertiginosa do que eram as coordenadas da vida, refugiam-se em suas identidades e, em meio a isso, as instituições precisam relacionar-se cada vez mais.
Os Estados europeus não podem funcionar por sua conta sem a União Europeia, mas para fazer isso se distanciam de seus cidadãos. Se não se estabelecem mecanismos de participação, controle, representação etc, então a europeização, que é a forma de globalização na Europa, se converterá em uma ameaça para o que as pessoas pensam sobre sua própria vida. Eles veem-se sem controle.
Uma contradição…
Sim, e como não pode durar muito tempo, estamos assistindo à formação de novos atores políticos, de novas redes institucionais e de novas crises, porque ninguém diz que tudo acaba com a consolidação de uma União Europeia mais democrática e participativa. Pode-se romper. Pode-se romper por identidades nacionais fracionadas que não aceitam a soberania compartilhada porque essa cossoberania nunca é igual, porque alguns poderes são maiores que outros.
E tudo ocorre com uma União Europeia fraca e que enfrentará novas crises: Rússia e Ucrânia, a acolhida de imigrantes, a Grécia…
E além disso estão as identidades subnacionais, como ocorre na Catalunha ou na Escócia. Na Escócia o referendo pró-independência não venceu, mas a política escocesa se transformou e há tensões muito fortes com a Inglaterra.
O Reino Unido vai convocar um referendo e pode sair da Europa, e a Escócia do Reino Unido…
Se o referendo fosse hoje, a Europa perderia. Mas se a hegemonia alemã sobre a UE se acentuar, ela não será aceita nem no Reino Unido, nem na França. E Marine Le Pen está empatada em primeiro lugar, na disputa pelas eleições presidenciais. Em seu programa, consta sair da UE ou renegociar tudo, e não aceitar a hegemonia da Alemanha. Além disso, ela faz alianças para criar uma frente anti-europeia dentro da Europa. Estariam nela a França e o Reino Unido, marginalizados ou com muito pouca relação institucional com a UE, onde a Alemanha tem seus súditos. Isso não seria sustentável. Portanto, creio que esse tema da não legitimidade das instituições que foram criadas nas últimas décadas é o que vai marcar a mudança nos próximos anos, mais que a tecnologia, porque o corte tecnológico já se produziu.
Entramos numa época de mudanças…
Uma coisa importante na Europa é que há dois processos de mudança: um deriva dos movimentos sociais e para isso aposta em novos atores, e outro deriva de posições nacionalistas, xenófobas e defensivas contra a globalização, contra o estrangeiro e em defesa da nação. Hoje na Europa essas posições são majoritárias. A Europa do norte é diferente da Europa do sul, a Europa se apartou cultural e politicamente entre o norte e o sul, e a França se encontra no meio por razões de história e cultura política.
Surpreende que, apesar da crise econômica e de legitimidade das instituições e dos políticos, os cidadãos tenham recorrido às urnas, como na Espanha, para expressar sua vontade de mudança, escolhendo opções praticamente recém nascidas. É a revolução nas urnas, não nas ruas…
Sim, mas ao mesmo tempo lembremos que, primeiro, eles saíram das ruas e, segundo, estão nas redes. As urnas são a consequência disso. Saíram às ruas, estão nas redes e constituíram movimentos sociais que criaram pressão sobre a opinião pública. Uma mudança política tornou-se possível como consequência de uma mudança de mentalidade ligada aos movimentos sociais. Essa mudança logo vai se expressar de alguma forma. Como os partidos tradicionais não aparecem, aos olhos de muitos cidadãos, como canais possíveis para essa mudança, buscam-se outras opções. Além disso, também ocorrem mudanças nos próprios partidos tradicionais, porque algo está mudando: primárias, medidas anticorrupção… Note-se bem: a busca de novas opções ocorre, ainda, dentro de marcos que não funcionam legal e constitucionalmente.
Em seu livro Comunicação e poder você fala das mídias como instrumentos para mudar a mente das pessoas. E recordo que Pablo Iglesias, líder do Podemos, disse que o triunfo do partido foi possível graças à combinação do novo – as redes sociais – com o velho, a tevê. Até que ponto as mídias podem criar estados de opinião que gerem revoluções?
Sempre defendi a ideia de que as mídias não são expressão do poder, mas o espaço onde se joga o poder, que não é um espaço neutro. O que mudou é que além dos meios de massa surgiram as redes, onde também se joga o poder. O espaço da comunicação é o espaço onde se joga o poder porque é através do qual se constroem e difundem as ideias. As mídias são essenciais, além das redes, porque atualmente, para uma parte substancial da população a partir dos cinquenta anos, os meios importantes são a televisão e o rádio, um pouco menos os jornais diários.
O exemplo do Podemos foi chave porque a intervenção de uma pessoa — mas uma pessoa que teve um discurso articulado e a capacidade de comunicá-lo — satisfez uma demanda social que se viu refletida naquilo que pensava.
Um discurso baseado no populismo do cientista político argentino Ernesto Lacalu, de bons e maus, do povo e seu inimigo, da casta.
Agora tudo isso está mais moderado. Mas foi uma estratégia muito inteligente com um discurso claro e de ruptura.
A mudança também chegou a países como Tunísia, Islândia, EUA, Brasil… São movimentos que se criam em comunidade, fazem comunidade, ajudam a perder medos e a superar indecisões. Acredita que se perdeu o medo?
Não, mas está se perdendo. O medo nunca se perde, no fundo, mas todos esses movimentos que houve nestes anos indicam uma perda do medo. É quando as pessoas dizem sim, podemos, ainda que seja uma chama e logo se apague. Bem, não desaparece, quase nunca desaparece. Se transforma.
Por exemplo, nas revoluções que mudaram completamente o mundo árabe. O que acontece é que logo há atores geopolíticos, interesses, islamitas que se aproveitaram do vazio criado pelos EUA, todas essas coisas degeneraram em violência e barbárie.
Há quem acredite que as primaveras árabes fracassaram, e você foi questionado sobre isso mais de uma vez. Você defende o contrário.
Estou de acordo. As revoluções de verdade são um logo processo, recordemos as revoluções europeias do século XIX. Este é um processo que começou e continua, que não sabemos aonde vai dar. Não parou. Está na mente e nos corações das pessoas. O mesmo se passou nos EUA. O Occupy não acabou, acabou apenas como forma de ocupação, porque as ocupações físicas do espaço têm um limite. As últimas ocupações pararam em dezembro porque as pessoas estavam congeladas.
Empiricamente, todas as revoltas de 2014 e 2015, de Ferguson a Nova York e Baltimore, contra os abusos da polícia, a campanha “as vidas negras também valem”, são feitas pelos mesmos ativistas que as organizaram e saíram às ruas, em contato com movimentos negros e brancos. Isso é o Occupy Wall Street de outro modo.
Hillary Clinton advogava em 2010 o papel democratizador da internet. Seria a internet o apóstolo da democracia?
Não é o apóstolo, mas um instrumento chave de democracia, no sentido de que se comunicação é poder e a internet é comunicação livre, a internet pode difundir, expressar e organizar projetos fora das instituições. Isso é um papel fundamental. E por outro lado permite a informação, uma participação prática na gestão, sobretudo local, muito importante. Claro que sim, é um instrumento de democracia, mas quem a faz são os atores sociais e políticos.
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Castells: as grandes mudanças apenas começaram - Instituto Humanitas Unisinos - IHU