07 Setembro 2015
"À medida que avança a exploração petroleira, e, em menor grau, também outros setores, sobretudo madeireiros, os territórios desses povos ficam mais e mais ameaçados; também se intensificam ou aumentam velhos conflitos, bem como as mortes entre os Huaorani com opiniões divergentes", alerta Xavier Albó. A tradução é de João Gabriel R. M. Padilha.
Xavier Albó, jesuíta, doutor em Lingüística e Antropologia pela Universidade de Cornell e em filosofia pela Universidad Católica del Ecuador, de Quito; licenciado em Teologia pela Facultad Borja, de Barcelona e pela Loyola University, de Chicago. Atualmente é membro do conselho acadêmico do mestrado em Antropologia da Universidad La Cordillera e do doutorado em Desarrollo del CIDES (Universidad Mayor de San Andrés). É coordenador latino-americano de jesuítas em áreas indígenas e membro da Academia Boliviana de História Eclesiástica. Desde 1994, é membro do Comitê Diretivo do Programa de Investigação Estratégica na Bolívia (PIEB).
O professor Albó esteve na Unisinos, em 27 de agosto passado, onde proferiu as conferências Bem-Viver. Impactos na América Latina e O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre recursos naturais, em evento promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
O atual Parque Yasuní, localizado no extremo oeste do Equador e ao norte do território que hoje pertence ao Peru, é um pouco menor do que o TIPNIS [Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure], mas sua riqueza em biodiversidade é ainda maior, e, além disso, há outros dois elementos: a imensa riqueza já comprovada do subsolo em hidrocarbonetos, e o fato de ter até agora em seu seio também povos indígenas que se mantêm ocultos ou isolados e de outros com contatos relativamente recentes e, às vezes, violentos.
Como veremos em seguida, esse Parque e o território adjacente Huaorani têm algo parecido com o TIPNIS, também pela ressonância que a evolução das propostas sobre esse parque tem tido na consciência nacional e internacional. Mas, antes de entrar nisso, me animei a esboçar, de maneira muito preliminar, em que consiste o “Bem Viver” dos povos do Parque Yasuní, que estão isolados.
Sondando o bem-viver do povo Huaorani
Durante séculos os indígenas em seu entorno chamavam esses povos locais isolados de Awkas, que na língua Quíchua significa “inimigos”, pela atitude guerreira que adotavam diante de quem tentava se infiltrar em seu território. Todos eles chamam-se a si mesmos de Huaorani ou Waorani. Um caso muito divulgado foi a morte, em janeiro de 1956, dos primeiros cinco jovens missionários, associados ao Instituto Linguístico de Verão (ILV), que se aventuraram a entrar no território Huaorani sem as devidas precauções e foram assassinados. Dois anos depois, o mesmo ILV, e sobretudo algumas mulheres apoiadas pela jovem Dayuma [1], que havia fugido de seu grupo, conseguiram estabelecer contato permanente com parte dos Huaoranis e formar o povoado-redução de Tihuaeno, e outros depois. A partir desse período, produziram-se os primeiros estudos linguísticos sobre sua língua, que forma uma família isolada. Mais adiante se propôs a criação de uma reserva ou do território indígena Huaorani, que foi oficializado somente em 1983, com uma área total de 612 mil hectares.
Finalmente, em 1990, por influência de empresas petroleiras, criou-se a ONAHE (Organização da Nacionalidade Huaorani da Amazônia Equatoriana), hoje denominada NAWE (Nacionalidades Waorani do Equador). “Um acordo de amizade, respeito e apoio mútuos” assinado entre a petroleira Maxus e a ONAHE, que determinou que os “Huaorani não se opõem à exploração dos hidrocarbonetos em seu território, portanto não será cobrada a moratória de exploração e extração mineral, e colaborarão diretamente com a empresa petroleira”. O acordo também previa que o subsolo seria administrado pelo Estado: “os vencedores não poderão impedir ou dificultar os trabalhos de exploração e/ou extração mineral hidrocarbonífera realizados pelo governo federal, por pessoas jurídicas ou juridicamente autorizadas”. Hoje a NAWE reúne 48 comunidades em Pastaza, Orellana e Napo, segundo eles, com cerca de 2 a 3 mil membros.
Mas tudo isso inclui apenas os Huaorani já contatados. Dentro e fora do território formalmente reconhecido, por onde perambulam de acordo com suas necessidades de caça e sobrevivência, alguns grupos Huaorani seguem se opondo militantemente a esses acordos e outros mantêm atitudes oscilantes. Segundo a NAWE, nesses grupos isolados restariam apenas 300 Huaoranis e os grupos mais mencionados são os Tagaeri, os Taromenane e os Oñamenane.
À medida que avança a exploração petroleira, e, em menor grau, também outros setores, sobretudo madeireiros, os territórios desses povos ficam mais e mais ameaçados; também se intensificam ou aumentam velhos conflitos, bem como as mortes entre os Huaorani com opiniões divergentes.
A Crônica Huaorani do bispo Labaka
Para poder explorar o que poderia ser o “Bem-Viver” em um povo não contatado ou recém-contatado, célebre por sua resistência, nesse contexto de entrada da indústria petroleira, recorri ao diário [2] de um missionário capuchinho basco, Alejandro Labaka [3], entre julho de 1976 e abril de 1980, antes da criação da CONFENIAE [Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana], em agosto do mesmo ano [4], complementado com dados posteriores da internet, em particular de Cabodevilla (2012, 2013). As petroleiras já estavam na região desde o fim dos anos 1960.
Desde que chegou ao Equador, Labaka tinha um grande interesse – quase uma paixão – por entrar em contato com indígenas em isolamento voluntário ou ainda com grupos pouco contatados, como aqueles Huaorani com quem se relacionou. Ainda que fosse missionário, era notável o respeito com que, sem ocultar sua identidade, evitou toda a catequese religiosa e tratou de compreender melhor as pessoas e sua cultura, como mostra seu diário/Crônica Huaorani, escrito inicialmente apenas para si e seus colaboradores, e que tem se difundido, sobretudo, depois de sua morte. Nunca teve uma estadia longa e contínua com o povo Huaorani, conseguiu um excelente nível de comunicação e aceitação apenas pela língua (que talvez não chegou a dominar plenamente, apesar de seus esforços), mas também através de seus gestos e atitudes: a linguagem do carinho, do respeito e dos presentes. Em seguida descobriu os tipos de serviços que podia fazer com as famílias com as quais se encontrava, como coletor de lenha, de água, além de outros serviços domésticos.
Por essa proximidade humana, aos cinco meses de seus primeiros contatos desde as instalações da CEPE/Texaco [5], em sua primeira passagem pelo povoado Huaorani, em Ducaron, em 23 de dezembro de 1976, por iniciativa sua, realizou-se um ritual através do qual uma das famílias o adotou como seu filho:
Tal como estava, em roupas menores, andei até o chefe da família, Inigiua, e Pahua, sua esposa, junto a mim se encontrava já o filho maior [...] Com as palavras pai, mãe, irmãos, irmãs, família me esforcei para explicar que eles, desde agora, eram meus pais, irmãos; que todos éramos uma só família. Ajoelhei-me diante de Inigiua e ele colocou suas mãos sobre minha cabeça, esfregando fortemente meus cabelos, indicando-me que havia compreendido o significado do ato. Fiz o mesmo diante de Pahua, chamando-lhe “buto bara” (“minha mãe”) e ela, imbuída de seu papel materno, fez-me uma grande “camachina” (“aconselhar”, em quíchua), dando-me conselhos. Logo pôs suas mãos sobre minha cabeça e esfregou com força meus cabelos. Desnudei-me completamente e beijei as mãos de meu pai e de minha mãe Huaorani, e de meus irmãos, reafirmando que somos uma verdadeira família [...]. Tudo se desenvolveu em um ambiente de naturalidade e emoção profundas, tanto para eles, quanto para mim.
Foram eles que me fizeram perceber a semelhança entre os nomes de meus pais com os seus: Ignácio/Iniguae, Paula/Pawa. Quando chegavam outras famílias, Inigiua lhes descrevia o ocorrido e voltavam a me perguntar os nomes dos meus pais e irmãos (CH 52-53).
Os trabalhadores petroleiros apresentaram Labaka inicialmente aos “Aucas” como “ladrão” que aparecia a qualquer momento em seus acampamentos (por acaso, dentro de seu território ancestral e sem haver lhes pedido previamente sua autorização) e “roubava” o que bem quisesse, revirando até seus pertences pessoais. A raiz Huao/wao, em sua autodefinição, significa “pessoas”, como acontece com tantas etnias. Os não indígenas são, por outro lado, “cohuore”, aos quais descrevem como selvagens ou canibais. Um mundo ao contrário, onde cada lado enxerga o outro com receio.
Um tema chave é o sentimento de propriedade comum ou individual dos Huaorani. Pouco a pouco Labaka aprendeu a distinguir o que era considerado zelosamente próprio de cada indivíduo e o que era comum a todos; em relação ao primeiro, havia sempre truques. As dádivas dos de fora eram, em certa medida, seu “direito de pisar o solo”, o que os forçava a se desprender de relógios, barracas, redes, qualquer coisa que criava uma crescente dependência. Em outra viagem, Labaka chegou com os dois primeiros cachorros; ao ir embora, notou que os animais seriam devolvidos a ele em jaulas, mas quando lhes disse que eram um presente para eles, agradecidos, procuraram algo para retribuir ao missionário: uma zarabatana. Ao fim de 1977, Labaka voltou de férias do País Basco com uma linda camisa de algodão azul que havia ganho de um parente, que logo foi trocado por um tapa-sexo Huaorani. Peigomo ou Peigo, um de seus primeiros amigos Huaorani, disse a ele em certa ocasião:
Estavam prestes a me matar porque, em uma das vezes, não havia levado os colares que me tinham solicitado [...]. Então os levei e ficaram felizes de novo. Mais tarde alguém do grupo morreu em decorrência de alguma doença e disseram que tinham de me matar. (CH 131)
Aprendeu a ética e a mística da nudez em que a roupa não serve para cobrir, mas para conferir certa elegância. Certa vez estava tomando banho sozinho quando, de repente, apareceram duas famílias guiadas por Peigo. Ao ir embora, este reclama: “lhe falta o gumi!” (cinturão de algodão usado para esconder o pênis). Labaka procurou um, colocou-o, e disse: “agora sim, vamos para casa”. Os adolescentes brincam ou excitam com frequência o membro viril entre eles. Um deles, uma vez, quando estavam tomando banho, quis exercitar seu pênis diante do missionário, mas ele o impediu “com sorridente energia”. O jovem propôs então que o exercitasse ele mesmo, mas Labaka respondeu “no, no. Wi waimo imba” (“Não, não. Isso não é bom!”). O incidente foi depois motivo de comentário entre todos, que repetiam essa frase.
Em 1978, quando sua família chegou pelo rio já com outros de sua equipe:
Pendurados no mesmo prego, estavam na cabeceira de minha cama o Crucifixo e o cinturão Huao, para que eu os vestisse no último momento. Esqueci-me. Fui interrogado sobre ambas as peças. A família Cai me entregou um cacho de fios de lã de seiva [6], trabalhados pelas mulheres, para que fizéssemos cinturões Huao. (CH 149)
Da perspectiva feminina há outras experiências: uma vez, Labaka, ao cruzar pela porta com Baganey, que ia passando com seu filhinho, colocou espontaneamente sua mão em seu ombro para deixá-la passar, mas “ela rechaçou meu gesto com energia”.
Ele generaliza que a mulher, mesmo em sua vida cotidiana, tem um papel muito mais produtivo do que aquele que havia entendido através do Huaorani “civilizado”, por meio do membro do Instituto Linguístico de Verão Samuel Padilla, antes do seu primeiro contato direto (11-VIII-76, CH 35). No início de 1977, escreveu:
“Eu vi a situação moral da mulher [...] revestida da dignidade e da proteção social de sua própria cultura. É realmente a rainha do lar, respeitada e amada, adornada de uma segurança interna pessoal que aparece a todo o momento, de que ela tem seu posto junto ao esposo, de que ninguém a pode desejar ou ofender de fato ou em palavra [...] ela se dedica aos seus trabalhos com admirável segurança, acompanhada de suas filhas, a quem não abandona em nenhum momento[...] nas longas noites iluminadas em que se contam histórias, contos ou piadas, tomam parte ativa e muito inteligente, tanto meu pai Pahua, quanto Buganey e Teka [...] da rede, colocada em seus respectivos círculos familiares [...] e os rapazes escutam atentos, celebrando, satisfeitos, suas graças [...]
Seria possível a uma missionária se integrar lavando roupas, costurando, curando? Não seria melhor um casal missionário que viva entre eles e como eles?”. (CH 78-80)
Os Huaorani lhe perguntaram várias vezes quando iria trazer as mulheres:
“- Querem que as traga? – Sim, Sim!
-Elas têm medo de vocês. – Diga a elas que não tenham medo.
- Não vão atacá-las com lanças? – Não, não vamos fazer isso – disse Kai muito sério e convencido.
-Serão bons com elas? – Seremos bons.
Intervêm, com especial interesse, Deta e sua mãe, Huiyacamo:
-Traga-as! Quando as trouxer, leve-as para nossa casa e seremos bons com elas.” (CH 146)
Uns meses depois, em outra viagem pelo rio, lhe acompanharam duas freiras Lauritas, enfermeiras, em um momento em que havia uma crise de malária, e se alojaram definitivamente na casa de Kai. Uma delas, a quem logo batizaram de Tijantáy (mariposa), seguiu os visitando várias vezes acompanhada de algumas outras, fazendo diversos tipos de serviços.
Um tema que obviamente interessou mais a Labaka foi a religião. Eram frequentes as rezas semicantadas espontâneas, tanto de homens quando de mulheres, às vezes, interrompendo seu sono. Ele tentava repeti-las, mas o que ia dizer, como as pronunciaria? Quase sempre lhe arrancavam risos. Três anos depois, em 1979, compreendeu que Huinuni era o criador da selva, dos rios, dos animais, do povo Huaorani e de outros povos (CH 173-4). Uma abordagem fundamental que levava consigo desde que, em 1965, havia assistido em Roma a última sessão de clausura do Concílio Vaticano II, onde o foco central não era atribuir a esses povos nossas crenças, mas descobrir neles mesmos as “sementes do verbo” para, a partir delas, fazer crescer neles e em nós mesmos formas inéditas de chegar a Deus e aos demais.
Interesses petroleiros, Labaka e o povo Huaorani
O assunto mais complicado era a relação com os de fora, desde os Huaorani não contatados até as empresas petroleiras.
Um dia abriu um grande mapa do Equador e lhes mostrou como, no período em que as petroleiras se foram, podiam seguir se comunicando pelo rio Dicaron até Nueva Rocaforte, onde estava sua residência atual. Mas Buganey lhe comentou: “tome cuidado, pois os Tagaeri vivem aí e podem te matar com lanças”; era 1977.
Dez anos depois, o missionário Labaka e a religiosa Inés Arango foram, de fato, mortos dessa forma pelos Tagaeri. E, em 2013, ocorreu outro incidente que ainda levanta boatos sobre outro grupo “isolado”, os Taromenare, nada menos que o primeiro vilarejo Huaorani, em Dicaron, onde viveu e foi adotado o bispo Labaka. Por razões que desconheço, eles primeiro assassinaram Buganey (citada no parágrafo anterior) e seu esposo Ompura, já de 70 anos, que tanto aparecem na Crônica Huaorani, por exemplo, nas páginas 64-66 e 192-194. Em represália, o filho de um dos assassinados organizou uma marcha de guerra no território Taromenare, onde mataram um número não esclarecido e sequestraram dois menores. Meses depois, a polícia localizou e deteve seis dos autores dessa incursão e os enviou a uma prisão em Sucumbíos, para serem julgados segundo as leis equatorianas, com o agravante de não ter respeitado os direitos humanos de um povo em isolamento voluntário (quantas mudanças na história!). Em vários jornais equatorianos recentes têm saído reportagens com fotos de Carlos Cabodevilla com Milagros Aguirre (diretora da fundação Labaka), que já publicaram um livro sobre o assunto, enfatizando a aberração de usar os códigos da justiça comum para tratar desse caso. Milagros Aguirre disse: “Se para nós é difícil entender sua forma de ver o mundo, imaginemos para eles (huaos) entenderem a nossa, e nossos complexos processos judiciais” [7].
A relação com as empresas petroleiras está na raiz de todos esses problemas. Em uma missão quase impossível, desde o início, Labaka tentou servir de ponte entre essas empresas, seus trabalhadores e os povos Huaorani, contatados ou não. Em uma carta de 10/10/1966, anos antes da avalanche de empresas petroleiras, um ano depois de ter assistido em Roma ao encerramento do Concílio Vaticano II, e dez anos antes de entrar em contato ele mesmo com os Huaorani, já havia escrito ao presidente Otto Arosemena, solicitando um helicóptero para o Vicariato Apostólico de Aguarico - que facilitaria detecção desses povos pelo ar - para apoiar sua inserção no país. E lhe sugeriu:
Estabelecer e entregar os títulos de reservas para as diferentes comunidades indígenas para que não sejam injustamente desalojadas de suas terras e obrigadas a serem eternas nômades em sua própria região.
Nos anos seguintes, aprimora essas e outras questões complementares, mais particularmente no documento que enviou tanto à petroleira equatoriana CEPE, quanto ao governo, imediatamente depois de sua visita ao grupo Huaorani Dicaron:
Ponto 4 – reserva nacional de petróleo e reserva Huaorani. Em atenção à situação desse grupo étnico da Amazônia equatoriana, o CEPE deveria declarar como patrimônio nacional as possíveis jazidas de petróleo, dando prioridade de exploração e extração a outras jazidas mais distantes. Ao mesmo tempo, poderia declarar como Parque Florestal Nacional o território ocupado atualmente pelos diferentes grupos Huaorani, com extensão suficiente para sua sobrevivência por meio da caça e da pesca. (1976)
São os primeiros precedentes do que depois será o atual e controverso Parque Yasuní, somado ao território da reserva Huaorani. Labaka não questiona o interesse estatal de ampliar sua presença nessas regiões e segue sonhando com a possibilidade de estabelecer pontos de consulta entre as petroleiras e esses povos, ainda que, ao mesmo tempo, rechace explicitamente a ideia de que as empresas petroleiras avancem com suas explorações nesse território, sem entrar em um acordo prévio com as populações que se “ocultam” nele. Podemos complementar e afirmar que Labaka sempre pretendeu estabelecer laços com e entre as partes, mas foi aprendendo com os anos as graves consequências das assimetrias do poder (político, econômico, informativo etc.) e isso precipitará sua morte, em 1987, quando, ignorando as recomendações de Labaka, as empresas decidiram arremeter sobre quem quer que fosse, inclusive com o apoio militar, para levar adiante seus objetivos econômicos.
Outro exemplo pertinente é a relação de Labaka com o ILV, que em 1981 foi expulso do Equador (e de outros países). Em seus primeiros anos, ele os identificava como a concorrência aberta, por ser ele católico e o ILV, evangélico fundamentalista, mas no período de sua CH (1976-1980), já há várias aproximações diretas. Foi bem recebido e colheu logo o material linguístico que buscava, mas não chegou a concretizar o estudo mais intenso da língua com eles. Comentando, já em 1979, que um Huao do ILV não cumpriu a promessa de dar um curso intensivo de línguas, Deta, sua irmã Huao, “complementou com certa seriedade: ‘ele não é seu amigo’” (CH 217). Em seus respectivos pontos de vista, continuava havendo claras diferenças e certo secretismo, que levaram à expulsão do ILV em 1981 (Cabodevilla, 2012).
Da perspectiva dos Huaorani, essas relações com os não indígenas deixavam também uma marca crescente: começava com os serviços, apropriações e favorecimentos mais ou menos funcionais e continuava com a atração mais ou menos forte de quem recebia bem essas outras formas de vida, ainda, quem sabe, sem chegar aos extremos a que chegaram alguns dos que se “civilizaram” com o ILV – como Samuel Padilla (anos depois chamado de Sam Caento), filho da célebre Dayuma – que, afinal, eram os que melhor atendiam as empresas petroleiras.
A CH relata toda a evolução de Araba, seu “irmão” mais próximo, que saiu pela primeira vez de seu habitat natural em 1977 para se tratar de malária, na cidade de Coca, e que depois mudou seu modo de viver, adotando o estilo de fora. E, finalmente, suplicou algumas vezes para poder sair de seu meio para capacitar-se. Não sabemos o que aconteceu depois.
O diário acaba no início de 1980, em meio a um forte avanço das exportações petroleiras em toda a região, aceitas por alguns grupos, mas rechaçadas por outros. Por isso, em alguns lugares surgiram lanças cruzadas como sinal de rechaço, inclusive no grupo mais próximo a Labaka, onde muitos trabalhadores perfuravam um poço. Alguns jovens se pintaram com as cores de guerra para ver a reação daqueles intrusos, que eram relativamente aceitos porque traziam presentes.
Os escritos também sinalizaram alguns hiatos nos anos seguintes: de 1979 a 1982 Labaka é o superior da missão capuchinha no Equador; em 4/11/1982 foi nomeado Prefeito Apostólico do Vicariato de Aguarico, com sede em Coca, e bispo do mesmo Vicariato em 9/12/1984. Provavelmente, com essas maiores responsabilidades nesses anos teve menos possibilidades de conviver com sua família Huaorani, mas sua nova posição lhe facilitava deixar mais clara sua opinião sobre o que chamava de “nacionalidade Huaorani”, que, para ele, deveria incluir tanto os já contatados como os “isolados”. Cabodevilla (2012) resume toda essa atividade até as vésperas de sua incursão aos Tagaeri, em julho de 1987, mais precisamente como um esforço desesperado, com plena consciência do grande risco que corriam, para evitar que as petroleiras, junto com os militares, os aniquilassem.
Colocando-me na perspectiva daqueles Tagaeri “isolados”, com os quais não haviam contatos físicos prévios, os voos de helicópteros deviam ser muito suspeitos, por mais presentes que lhes fossem dados. E, depois, o grande deslocamento de três helicópteros para o resgate de dois cadáveres deve ter lhes convencido ainda mais da forte ligação entre suas vítimas e as ameaças já muito visíveis de outros cohuore (não indígenas), como aqueles vindos das petroleiras e do Estado, que haviam assassinado alguns índios do grupo. É preciso ressaltar também a dimensão ritual coletiva de se lancear [8]. Os missionários sempre evitaram se referir a esse feito como “assassinato”.
Alguns detalhes que foram retirados do blog que leva o nome do missionário capuchinho: Os helicópteros menores eram da CGG, e o maior, do exército, com 18 soldados armados, que, felizmente, não desceram nem intervieram. O cadáver nu do bispo tinha marcas de 18 lanças de guerra, e o da madre Inés, vestida, exceto pelo véu preso ao bolso, três lanças, uma delas na vagina. Mas, além disso, ambos os corpos continham marcas de lanças menores: 134 no corpo do bispo e 65 no da irmã. Em janeiro de 2012, integrantes do Vicariato me contaram que, anos depois, se soube por uma jovem Tagaeri saída desse grupo, que a madre Inés havia sido escondida pelas mulheres da tribo, mas que se juntou ao bispo Labaka quando ele foi atingido pelas lanças e sofreu o mesmo destino.
Como conclui um artigo de José Luis Caravias, escrito pouco depois, Labaka: “Morre como Huaorani, em defesa dos Huaorani, morto pelos Huaorani, tido como inimigo, confundido com seus inimigos”.
Mudanças no estado equatoriano
Entretanto, também no Estado e na sociedade civil equatoriana ocorreram mudanças significativas. Em 1979, a democracia foi restabelecida com a presidência de Jaime Roldós (1979-81), concluída por seu vice, Oswaldo Hurtado (1981-84), depois que o presidente morreu em um acidente aéreo no sul do país. Em 1981 expulsaram o ILV e, em 1983, demarcaram o território/Reserva Huaorani. Em 1980 criou-se a COFENIAE para todas as etnias e as organizações já existentes na Amazônia, e, por etapas, essa foi se vinculando a outras organizações andinas, até culminar na CONAIE, em 1986. Em 1993, essa entidade fomentou o surgimento do partido Pachakutik; era a maioridade dos povos indígenas como atores políticos no país. Ainda que depois não tivessem muito sucesso em suas alianças para ser copartícipes no poder, em particular quando seu aliado militar amazônico Lucio Gutiérrez (2003–2005) lhes virou as costas, quando consolidado no poder. Assim chegamos aos três mandatos de Rafael Correa (de 2007 até hoje), incluindo sua nova Constituição Política, de 2008. Essa constituição nos interessa aqui, principalmente, pela prioridade que deu aos direitos da natureza, e por seu artigo 57, que incluiu os direitos territoriais dos povos em isolamento voluntário.
Dessa forma, aquelas demandas de Labaka, surgidas três décadas antes, passaram a fazer parte da nova Constituição.
A audaz iniciativa Parque Yasuní–ITT
A iniciativa do Parque Yasuní–ITT, em todo o território dos Aucas/Huaorani, foi uma inovação em nível mundial.
De fato, depois de sua primeira ascensão à presidência, no início de 2007, Correa, encorajado por seu ministro de energia à época, Alberto Acosta, apoiou uma audaciosa proposta para não se extrair petróleo bruto do Parque Nacional Yasuní–ITT (através dos campos petroleiros Ishpingo-Tiputini-Tambococha) na Amazônia Equatoriana. Essa proposta foi oficializada em 10/12/2007:
“Deixar o petróleo bruto represado na terra, a fim de não afetar uma área de extraordinária biodiversidade e não pôr em risco a existência de vários povos não contatados. Essa medida será considerada sempre, e quando a comunidade internacional proporcionar ao menos metade dos recursos que seriam gerados se se optasse pela retirada do petróleo. Recursos que a economia equatoriana requer para seu desenvolvimento.”
O valor foi estimado em 350 milhões de dólares por ano. A não retirada do petróleo evita a emissão de 410 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), emissão que contribui para o aquecimento global.
Entre outras tentativas, estabeleceu-se, em agosto de 2010, um fundo fiduciário entre o PNUD e o Estado para angariar fundos. Mas até agosto de 2013, dos 3,6 bilhões de dólares que se esperava juntar durante 12 anos, só se havia conseguido 336 milhões. Mais da metade ficou como oferta e apenas 13,3 milhões haviam sido depositados. Se as explorasse completamente, as reservas dessas jazidas virgens (20% do total no Equador) poderiam captar, segundo o Estado, 18,292 bilhões de dólares. Por isso, em 15/7/2013, Correa anunciou o abandono da iniciativa Yasuní–ITT:
“Com profunda tristeza, mas com profunda responsabilidade, tive de tomar uma das decisões mais difíceis de todo o meu governo [...] precisamos dos recursos naturais para superar a pobreza e o desenvolvimento soberano; o maior atentado aos direitos humanos é a miséria [...] essa decisão desilude a todos nós, mas a História nos julgará.”
Afirmou que o fator fundamental para o fracasso da iniciativa foi atribuído à ideia de que o mundo é uma “hipocrisia global”, pois a “lógica que prevalece não é a da justiça, mas a do poder”.
Há boa parte de verdade nisso e quem sabe esse passo para trás seja apenas uma batalha perdida. No Equador persiste o movimento dos “yasunidos”, e, em outras partes do planeta tem surgido a proposta “Yasunizar o mundo”, a partir de outras várias novas iniciativas em lugares tão distantes como Guatemala, Nova Zelândia, Noruega e Nigéria. Nesse último país, falam em “ogonizar”, porque os Ogoni, depois de 1995, conseguiram expulsar por muitos anos a Shell; eles dizem por lá "leave the oil in the soil" [Deixe o petróleo embaixo da terra, em traduçao livre]. Como disse Martínez Alier (La Jornada, México, 22/5/2013), há razões locais e razões globais – de motivação climática – para “yasunizar” o mundo.
Mas, quem sabe, tampouco seja toda a verdade. Os “yasunidos” do Equador acabam de sofrer uma nova derrota em seus planos de forçar um referendo para que seja a população quem decida se deve-se abrir ou não o Parque Yasuní-ITT à exploração petroleira. Necessitavam de assinaturas equivalentes a 5% dos eleitores, isto é, cerca de 583 mil assinaturas. O próprio presidente Correa os ironizou, dizendo que não fossem preguiçosos e que buscassem as assinaturas necessárias. Assim o fizeram, com uma inovadora campanha, e conseguiram mais de 730 mil assinaturas, número bem mais elevado do que o necessário. É confirmado que houve casos de votos irregulares etc., mas o processo de verificação e apuração por parte do Conselho Eleitoral do Equador tampouco foi menos transparente. Comenta Eduardo Gudynas (2014):
“O controle e a verificação das assinaturas passaram por raros e curiosos requisitos, e com cada um deles se perdiam adesões. Como resultado, a autoridade estatal invalidou cerca de 400 mil assinaturas (mais de 60% do total de assinaturas apresentado originalmente). Consumou-se, assim, um novo caso em que a defesa governamental do extrativismo prevaleceu sobre os mecanismos democráticos e participativos.”
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Notas:
[1] Primeira índia Huaorani convertida ao cristianismo no Equador, e figura chave na “Operação Auca”, pois, através dela, os missionários tiveram acesso à língua desse povo, até então desconhecida. (N. do T.)
[2] Referido ao longo do texto como CH – Crônica Huaorani. (N. do T.)
[3] Alejandro Labaka: bispo capuchinho, missionário na Amazônia Equatoriana, considerado mártir. Foi morto em 21 de julho de 1987 pelas lanças e flechas do povo Huaorani. (Nota da IHU On-Line)
[4] Formou-se a partir das primeiras organizações preexistentes: a Federação Shuar (desde 1964), a Federação de Organizações Indígenas do Napo (FOIN, criada em 1959, em Tena, capital da província de Napo, subindo o rio Napo, com comunidades quichuas); e outras duas criadas apenas no fim dos anos 70.
[5] CEPE - Corporação Estatal Petroleira Equatoriana. (Nota da IHU On-Line)
[6] Ou kapok, árvore sagrada dos Maias. (N. do T.)
[7] Ver, entre outros, El Universo, domingo, 9 de março de 2014, e Cabodevila Aguirre (2013).
[8] Ferir com lança. (N. do T.)
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Bibliografia:
Albó, Xavier. 2012. “Contextualización: una mirada profunda al TIPNIS”. Em: Alex Contreras B. Coraje. Memorias de la Octava Marcha por la defensa del TIPNIS. Cochabamba: s/e, pp. 12-48.
¬____. 2015. “El gran desafío de los indígenas en los países andinos: sus derechos sobre recursos naturales”. En De raíz diversa. Revista especializada en Estudios Latinoamericanos, UNAM Pós-graduação. Vol. 2, número 3, México, pp. 39-62.
Cabodevilla, Miguel Angel. 2012. “Un precursor en la defensa de los pueblos ocultos” Em:http://www.alejandroeines.org/index.php?option=com_content&view=article&id=221:un-precursor-en-la-defensa-de-los-pueblos-ocultos-miguel-angel-cabodevilla&catid=45:simposio-2012&Itemid=60.
Cabodevilla, Miguel Ángel y Milagros Aguirre. 2013. Una tragedia ocultada. Quito: CICAME
Gudynas, Eduardo. 2014. “No se podrá votar por el Yasuní” Reproduzido em Ideas, Página 7, 11/5/2014.
IWGIA. 2013. El mundo indígena, 2012. Copenhague: IWGIA.
Labaka, Alejandro. 2011. Crónica huaroani. (5ª ed.). Quito: CICAME. (É a que aqui citamos como CH mais página. Mas deve ser completada com a 4ª edição (de 2003), por suas abundantes fotos e seus apêndices (pp. 169-212), incluindo as gestões anteriores de Labaka perante o governo, que também citamos aqui).
Parque Yasuní ITT (por los campos petroleros Ishpingo-Tiputini-Tambococha). Na Internet.
Mais citações da imprensa e da Internet inseridas no texto.
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Equador: Dos Aucas/Huaorani ao Parque Yasuní 1956-2015 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU