25 Agosto 2015
"As metrópoles tornam-se as fábricas de nosso tempo, e a produção exige cada vez mais a ação autônoma dos trabalhadores, a partir de fatores de produção como os circuitos de comunicação e informação, os códigos e as linguagens", escreve Adriano Pilatti, coordenador-Geral do Instituto de Direito da PUC-Rio, em artigo publicado pela Revista Cult, nº. 189.
Eis o artigo.
Se somos solidários aos oprimidos, se condenamos a exploração dos que trabalham e se lutamos por uma nova comunidade, temos tudo a ver com o pensamento do cattivo maestro.
Em nosso tempo, as categorias e instituições políticas características da “modernidade” estão em crise. Democracia, representação, partidos, sistemas de welfare, nada parece escapar à “fadiga dos materiais” que contamina até as propostas de reforma que se apresentam. Mesmo as rebeliões e insurgências metropolitanas dos últimos anos, apesar do potente desejo de liberdade e igualdade que expressam, encontram limites que frustram a construção de instituições e práticas alternativas. A tragédia das revoluções do século XX, entre 1917 e 1968, malgrado os aspectos positivos que legaram, parece se projetar sobre todos os esforços de transformação que temos testemunhado.
Como ultrapassar essa angustiante situação? Como evitar que a potência constituinte dos oprimidos seja aprisionada nas jaulas do constituído? Como impedir que a ação política seja reduzida ao simulacro da representação? Como pensar a constituição de um sujeito político que escape à tentação do Uno e à tutela de vanguardas? O que pode nos ensinar todo um acúmulo de derrotas?
Se temos a sensibilidade marcada pelo amor à vida e por uma irrenunciável solidariedade em relação aos que vivem e padecem as privações e humilhações que nascem da desigualdade e da servidão; se ousamos pensar a política a partir do antagonismo que opõe inconciliavelmente os pequenos que desejam se liberar aos grandes que desejam oprimir; se desejamos construir comunidade a partir do respeito às singularidades e do reconhecimento da multiplicidade dos modos de viver, sentir, pensar e produzir; se tomamos o capital como relação violenta de comando e exploração sobre os que trabalham — então podemos compreender o que há em comum entre Antonio Negri e nós.
Exemplo extraordinário de intelectual e militante em cuja trajetória reflexão e ação não se separam, “Toni” tem dedicado sua vida ao esforço de participar das lutas pela liberação da potência afetiva, criativa e produtiva dos que vivem e trabalham. Iniciou sua militância na juventude, por meio do trabalho pastoral desenvolvido pelos “padres-operários” do Vêneto na década de 50 do século passado. Nos anos 60, participou do esforço de recuperar o legado de liberação do pensamento marxiano, após a tragédia do “socialismo real” e os crimes do stalinismo, integrando-se no campo do chamado “operaísmo” italiano e vivendo intensamente a experiência da construção da rede de movimentos de insurgência conhecida como Autonomia Operária.
Naquele contexto, Negri participou do esforço de compreensão das transformações que o capitalismo começava a experimentar, e da consequente busca de novas alternativas de organização e ação de uma classe trabalhadora que rejeitava o reformismo do então poderoso Partido Comunista Italiano (PCI). É dessa época o conjunto de ensaios reunidos no livro La Forma-Stato, em que se propôs a fazer a “crítica da economia política da Constituição” e recuperar a perspectiva marxiana segundo a qual o Estado é, irremissivelmente, uma forma do poder político que serve à opressão de classe. Daí a dolorosa reflexão sobre a tragédia da Revolução Soviética e o paradoxal “salto mortal” representado pela tentativa leninista de acelerar a extinção do Estado por meio de seu fortalecimento.
Negri viveu intensamente, na teoria e na prática, entre a cátedra da Universidade de Pádua e as mobilizações de porta de fábrica, o chamado “1968 Italiano”, que começou bem antes e só terminou em 1977, com a brutal reação armada que acumpliciou bandos fascistas e forças estatais. Apontado, injusta e absurdamente, como “mentor” e partícipe das equivocadas ações das Brigadas Vermelhas (grupo oriundo de uma dissidência do PCI, cujos centralismo, vanguardismo e voluntarismo sempre criticara), o cattivo maestro foi preso em 1978.
Acusado de implicação no sequestro e na execução de Aldo Moro, ex-chefe de Governo e então presidente do Partido Democrata-Cristão, Negri foi condenado com base exclusivamente em delações premiadas de “brigadistas”, que o incriminaram para obter redução de pena, ao arrepio das mais elementares garantias do “devido processo legal”. Face à injustiça da condenação, o Partido Radical, de orientação social-liberal, inscreveu-o em sua lista de candidatos ao Parlamento para que, eleito, pudesse obter imunidade e ser libertado. Eleito e liberto, Negri partiu para o exílio em Paris antes que o Parlamento cassasse sua imunidade. Retornou em 1997, para cumprir a pena restante e reabrir a discussão sobre os presos políticos condenados com base nas leis de exceção editadas 20 anos antes.
No cárcere, Negri dedicou-se ao estudo da obra de Espinosa, para buscar ali os fundamentos para uma compreensão imanente da política, a fim de “liberar Marx da dialética hegeliana” e suas sínteses autocráticas. O resultado foi o polêmico livro Anomalia selvagem, no qual recupera um “Espinosa subversivo” através da oposição entre a potência da multidão, sujeito político imanente e múltiplo, e o poder soberano do Estado, caracterizado pela transcendência e pela unidade, em busca de uma democracia absoluta por meio da qual o comum pudesse se constituir a partir da multiplicidade.
Já em Paris, Negri estabeleceu fecundo diálogo com Gilles Deleuze e Félix Guattari em torno de categorias já avançadas por Michel Foucault para pensar as novas formas de dominação e resistência na chamada “pós-modernidade”. Desse esforço resultou o excelente Poder constituinte — ensaio sobre as alternativas da modernidade (que tive a grata alegria de traduzir para o português). Nele, Negri passa em revista cinco séculos de revoluções e teorizações, dos tumultos da Renascença maquiaveliana à Revolução de 1917, liderada por “Lênin, o ocidental”. No esforço de refletir sobre as condições de superação do recorrente “Termidor” de que têm padecido as grandes revoluções da era moderna, Negri reconstrói a “linha alternativa e maldita” da modernidade, representada, no plano da reflexão política, pelo eixo Maquiavel-Espinosa-Marx.
Em Maquiavel, Negri recupera o princípio constituinte do antagonismo tumultuário que opõe os “pequenos”, e seu desejo de liberação, aos “grandes”, e seu desejo de opressão e predação. Reflete, assim, sobre a produção das “instituições da liberdade” por meio das quais pode se viabilizar o “devir-príncipe” da multidão e a constituição de uma democracia absoluta, sujeito e forma estes recuperados do pensamento espinosano. Tudo isto no horizonte das transformações do capitalismo contemporâneo, pensadas marxianamente “para além de Marx”, a partir da constatação de que as formas do capital, contemporâneas a Marx e por ele estudadas, transformaram-se, e é preciso estudar sua nova composição com o método marxiano.
A partir desses fundamentos e em parceria com o jovem intelectual norte-americano Michael Hardt, Negri escreveu, na década passada, a trilogia Império, Multidão e Comum. Nela, Negri e Hardt refletem sobre as novas formas de comando e exploração capitalista (bem como as novas e correspondentes formas de subjetivação e resistência) que nos são contemporâneas. Elas se caracterizam pela desterritorialização do poder militar, das comunicações e dos fluxos produtivos e financeiros. Tais processos põem em xeque as soberanias estatais, configurando uma nova e planetária forma de poder, caracterizada como “sociedade global de controle” a partir das pesquisas de Foucault e Deleuze.
Para Negri e Hardt, no capitalismo do nosso tempo, o regime de fábrica perdeu sua centralidade e proeminência, com a consequente corrosão das formas de organização política e social que lhe eram correlatas: o Estado, o partido, o sindicato. Numa economia em que a importância e o valor do software geralmente superam os do hardware, por exemplo, em que os processos de valorização e acumulação dependem cada vez mais de “externalidades” como nível de educação, estruturas de transporte e comunicação e outras condições “ambientais”, a relação de capital se traduz cada vez mais em formas de “biopoder”, que se exerce sobre a própria vida e todos os circuitos de cooperação, inclusive afetiva — e os explora cada vez mais predatoriamente.
As metrópoles tornam-se as fábricas de nosso tempo, e a produção exige cada vez mais a ação autônoma dos trabalhadores, a partir de fatores de produção como os circuitos de comunicação e informação, os códigos e as linguagens. O “trabalho imaterial e afetivo”, que exige sempre mais interação entre os trabalhadores em sua integralidade, valoriza-se comparativamente à produção “material”: atividades terapêuticas e de cuidados físicos, psíquicos e estéticos, do psicanalista à babysitter, do trabalho doméstico ao personal trainer, do médico à “esteticista”, da “malhação” ao entretenimento, do jornalismo à publicidade. Formas de vida e trabalho criados pelos pobres valorizam territórios antes degradados, que em seguida são expropriados pelos ricos nos processos de “gentrificação”, fazendo com que os trabalhadores deles expulsos se desloquem para novas áreas degradadas, valorizando-as.
Com as novas e múltiplas formas de produção cooperativa, a “classe trabalhadora” já não pode ser adequadamente traduzida nos conceitos redutivos de “operariado” e congêneres, caracterizando-se cada vez mais como “multidão de singularidades”. Nelas se expressa, para além do desejo de “emancipação” identitária (o direito de ser aquilo que se é), um desejo de “liberação” (o direito de devir diferente do que se é). Para a organização da cooperação produtiva desses trabalhadores, o comando capitalista é cada vez mais dispensável e, por isso mesmo parasitário, pois incide sobre a própria vida e os fluxos de relações afetivo-cooperativas, na tentativa de se apropriar do substrato comum dessa cooperação afetiva: recursos naturais, linguagens, formas de comunicação e expressão, etc.
Do carnaval de rua ao funk, dos games às formas de vestir, falar, dançar e se divertir, dos “bairros boêmios” valorizados por artistas a formas alternativas de estar junto — sobre tudo que se cria, expressa e valoriza sem o concurso do capital, enfim, incide a avidez predatória dos capitalistas, gerando diversificadas formas de resistência: das ocupações de imóveis abandonados aos “rolezinhos”, das manifestações de rua às “liberações de catraca” dos sistemas de transporte coletivo e de massa.
É nesse horizonte que se coloca o desafio de pensar e criar as novas ações e organizações da liberação, para evitar a corrupção do comum e sua captura pelos processos de privatização, dos quais o setor “público” (estatal) é em geral coadjuvante e garante. Essa é a tarefa fundamental do “intelectual”, segundo Negri e Hardt. Não mais cultivar a pretensão de estar à frente dos movimentos, para “orientá-los”, ou ao seu lado, para criticá-los, mas inserir-se dentro deles, como uma singularidade entre outras tantas, a fim de cooperar com a criação das instituições por meio das quais o desejo de liberação da multiplicidade das singularidades se afirmem e conservem.
Contribuir para “fazer multidão” por meio da “co-pesquisa”: esta seria a contribuição por excelência dos intelectuais. Nos limites do espaço disponível, foi preciso trabalhar “a golpes de martelo” para construir este pequeno resumo introdutório. Que, espero, possa alcançar o único e modesto objetivo a que me propus aqui: instigar, nos que ainda não tiveram a prazerosa e elucidativa oportunidade de fazê-lo, a leitura e a reflexão em torno do brilhante e generoso pensamento do mestre e amigo Toni Negri. Vale mesmo a pena.
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Negri e nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU