04 Fevereiro 2015
No rastro dos 30 milhões de toneladas de soja em grão que o Brasil exportou para a China entre janeiro e agosto de 2014, no valor total de US$ 15 bilhões, foram “transferidos” 69 trilhões de litros de água virtualmente embutidos no produto, como decorrência do cultivo. Tendo como base o consumo hídrico da soja brasileira, calculada pela Water Footprint Network (WFN), o volume representa mais de três vezes a capacidade do reservatório da Hidrelétrica de Itaipu. O número é grandioso, como é, aliás, tudo o que se relaciona aos padrões chineses e sua influência sobre o meio ambiente global. E também reflete o tamanho do desafio enfrentado internamente por aquele país para manter a atual taxa de crescimento econômico com menor dependência do comércio exterior, inclusão social e menos degradação de recursos naturais.
A reportagem é de Sérgio Adeodato, publicada por Página 22, 03-02-2015.
Ao abrigar quase 20% da população do mundo, a China é o país que mais contribui com a pegada de água [1] global, responsável por 16% do total, à frente de Índia, Estados Unidos e Brasil, respectivamente, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, o apetite chinês suga quase um terço dos recursos vitais que a Terra tem a oferecer. Resultado: se todos os países consumissem e gerassem resíduos em igual nível, seria necessário 1,2 planeta para dar suporte às atividades humanas.
[1] Indicador do volume de água utilizado na produção e consumo de bens e serviços.
Com o acelerado crescimento econômico, aumento da renda e intenso processo de urbanização e industrialização, o Gigante Asiático passou a ter o maior déficit ecológico do mundo. Dessa forma, como a multiplicação do nível médio de consumo pelo número de habitantes superou os limites da biocapacidade [2] do país, foi preciso buscar recursos no resto do mundo – assim como ocorreu com os EUA, no passado – para sustentar a população com seus novos estilos de vida.
[2] Área disponível para o país produzir recursos renováveis e absorver emissões de CO2.
Para analistas, o futuro socioambiental do planeta dependerá muito do caminho a ser trilhado pela China. Internamente, os atuais planos de governo pretendem reverter a lógica perversa de que quanto mais rico fica o país, mais pobre torna-se o meio ambiente. No caso da água, o iminente risco de escassez disparou o alerta. A necessidade de captar volume cada vez maior para abastecer população, cultivos agrícolas e indústrias exigiu a execução de um dos mais caros e ambiciosos projetos de engenharia em curso no mundo: a transposição dos rios Yang-tsé, Han bAmarelo, ao custo de US$ 79 bilhões, para levar água do Sul para o Norte do país, onde se localiza a grande metrópole, Pequim.
Lá se concentra grande parte da população e dos cultivos agrícolas, mas tem apenas um quinto da água disponível na China. A primeira etapa dos três grandes eixos de canais, com cerca de mil quilômetros na parte Sul, está em fase final para fornecer 1,2 bilhão de metros cúbicos adicionais à capital, com 20 milhões de habitantes. Atualmente, para contornar a escassez, parte expressiva do suprimento provém da exploração de água subterrânea, com drástico esgotamento do lençol freático nos últimos dez anos.
“A disponibilidade hídrica já é considerada nas decisões políticas sobre o crescimento econômico”, afirma Aurélio Padovezi, especialista em restauração florestal que em recente viagem à China pela The Nature Conservancy (TNC) conheceu a realidade do principal manancial de água potável de Pequim: o reservatório Miyun, com área total de 15 mil quilômetros quadrados, já insuficiente para suprir as residências e as atividades econômicas. “Considerando o tamanho da população que precisa matar a sede e comer, o reservatório e as suas bacias hidrográficas são vistos como os mais importantes recursos hídricos a serem protegidos do mundo”, enfatiza Padovezi. Ele lembra as semelhanças entre a capital chinesa e a Região Metropolitana de São Paulo: “A diferença é que lá existe planejamento e não há barreiras políticas, porque as decisões são centralizadas”.
Capacidade de realizar
Entre as medidas de proteção está o aumento da cobertura florestal de 9% para 55% nas bacias hidrográficas que abastecem a capital, com meta de atingir 70% no entorno do reservatório Miyun, segundo o especialista. O esforço se integra a uma estratégia mais ampla, definida há mais de duas décadas, para plantio de árvores em larga escala, principalmente na região central do país. “Chama atenção a incrível capacidade da China de realizar, difícil de ver nos demais países emergentes”, conta Beto Mesquita, diretor de estratégia terrestre da Conservação Internacional.
Como integrante de uma expedição de especialistas brasileiros para intercâmbio de experiências sobre florestas com a China, em 2014, Mesquita verificou em campo os resultados do projeto de restaurar 45 milhões de hectares, dos quais 20 milhões já foram plantados com espécies nativas.
O reflorestamento em massa tem o propósito de conter a erosão, sobretudo em áreas montanhosas com alta incidência de chuvas de monções [3], e melhorar as condições ambientais para a agricultura. “As ações são práticas, simples e rápidas, com uso de poucas espécies de árvores, mas bastante efetivas, fazendo crescer florestas até mesmo onde nunca existiram”, diz Mesquita. Após o impulso inicial de grande escala, a atual etapa, na qual entraria a contribuição brasileira, deverá olhar para a melhora da diversidade de espécies, de modo a obter florestas mais robustas e com maior quantidade de biomassa, importante para a gestão de carbono no cenário de possíveis compromissos globais sobre mudanças climáticas.
[3] São torrenciais e estão associadas a ventos sazonais, gerados pela alternância entre as estações úmidas e secas, no Sul e Sudeste da Ásia.
O advogado José Ricardo dos Santos Luz, que por cinco anos representou na China o escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, compara: “O país é como um gigante que desce uma ladeira de bicicleta; não pode frear, senão perde o controle e cai”. O dilema é traçar um caminho para continuar pedalando sem impactos ambientais que colocam em risco o bem-estar e a própria sustentabilidade das conquistas econômicas. Apesar da expansão menos veloz do crescimento, verificada nos dois últimos anos, obras de infraestrutura nas cidades continuam em ritmo frenético. A vida urbana sofre com a poluição atmosférica, que em alguns locais chegou a atingir nível 25 vezes superior ao limite de tolerância da Organização Mundial da Saúde. Mas, de uns anos para cá, a governança em relação ao problema foi priorizada para reduzir a ocorrência de doenças respiratórias, a incapacidade para o trabalho e os custos previdenciários para governo e empresas.
Para influenciar positivamente as questões ambientais no resto do mundo, a China precisará adotar normas de sustentabilidade no comércio exterior, sem a visão de que vale apenas o menor preço.
A segurança alimentar tornou-se prioridade, após escândalos como o que envolveu leite adulterado, obrigando importação em massa. “Um problema pequeno em outros países pode ganhar grandes proporções na China, por conta da enorme população”, explica o advogado.
O êxodo do campo para as cidades tem mudado o quadro social, fruto de políticas voltadas para a elevação de renda e o aumento do mercado doméstico. Com menos gente na zona rural, é menor a concorrência e o ganho dos camponeses aumenta. Ao mesmo tempo, a geração de maior quantidade de empregos no meio urbano estimula o consumo e a demanda por investimentos em infraestrutura, acelerando o desenvolvimento econômico.
A estratégia populacional compõe um plano de urbanização [4] lançado pelo Comitê Central do Partido Comunista e pelo Conselho de Estado para o período 2014-2020, com ênfase no bem-estar e sustentabilidade ambiental. Um dos objetivos é corrigir discrepâncias envolvendo benefícios sociais, como os incluídos no Hukou – uma espécie de cartão de identidade com o qual a população usufrui de auxílios, como assistência à educação e saúde. Hoje cada chinês que vive no campo recebe do Estado um pedaço de terra para subsistência, mas muitos sublocam a área para terceiros, inclusive empresas, e migram em busca de trabalho e da sorte grande nas cidades, deixando os filhos na zona rural, sob os cuidados dos avós. A artimanha é necessária, porque, se o governo for informado sobre a transferência, a família perde o benefício.
[4] Hoje 53,7% da população chinesa é urbana. A previsão é atingir 60% em 2020, segundo a agência de notícias Xinhuanet. Nos países ricos, a média de habitantes que vivem nas cidades é de 80%.
De vento em popa
O desenvolvimento da China é amplamente moldado por planos de cinco anos, com metas sociais e econômicas. Um dos destaques do último planejamento (2011-2015) é o quesito sustentabilidade, com ênfase nos investimentos em tecnologias limpas. Na estratégia chamada “Going Global”, na qual as empresas são incentivadas a investir no exterior, a expectativa é a formulação de políticas de crédito verde pelos bancos chineses, considerando efeitos sociais e ambientais de suas operações.
A tendência chega a organismos internacionais de fomento, como o Banco de Desenvolvimento dos Brics. “Haverá o compromisso de complementar a oferta de recursos para projetos de infraestrutura, com base em critérios de desempenho socioambiental”, diz o embaixador Flavio Damico, representante do Departamento de Mecanismos Inter-Regionais do Itamaraty.
Ambientalistas lutam para salvar da extinção o tigre-de-amur, ameaçado pelo sumiço de presas, como veados e javalis, e pela redução do território de vida, no Nordeste da China, fronteira com a Rússia. Hoje há 500 tigres na natureza.
Nesse cenário, a China começa a dar atenção a princípios de melhores práticas internacionais, com adoção de normas mais rigorosas para aperfeiçoar a qualidade e reduzir impactos ao meio ambiente em setores como infraestrutura, mineração, silvicultura e agricultura. A escala da demanda chinesa reflete no planeta como um todo. Como grande importadora de soja [5], por exemplo, qualquer nova exigência de padrão ambiental vai implicar adaptação dos países exportadores – o que significa uma vantagem competitiva para o Brasil, tendo em vista os acordos e mesas-redondas adotados já faz algum tempo para a produção com controle sobre o desmatamento.
[5] A China é o maior comprador da soja brasileira em grão (71% do total exportado).
A adoção de critérios ambientais no intenso comércio exterior chinês mobiliza ONGs internacionais, como o WWF, organização que tem como símbolo global o panda-gigante [6] – espécie só existente na China, hoje protegida por uma rede de 62 reservas naturais, totalizando 3 milhões de hectares, com apoio do governo. As obras de infraestrutura são ameaças constantes. Apesar das ações ambientalistas, a perda de biodiversidade é um dos mais graves impactos de uma história milenar que o país precisa corrigir.
[6] Só restaram 1,6 mil indivíduos da espécie nas regiões Sudeste e central da China.
O governo chinês reconheceu os problemas ambientais ligados ao desenvolvimento econômico e os colocou no topo da agenda política. Para ambientalistas, é uma chance que o mundo não pode se dar ao luxo de perder, principalmente no tema “mudança climática”. Como país líder em emissões de carbono, à frente dos Estados Unidos e da Índia, o plano para inverter a curva da liberação de carbono na atmosfera a partir de 2030, conforme comunicado em 2014, tem potencial de influenciar um futuro acordo climático e acirrar a competição pelas oportunidades de mercado da economia verde. “O Brasil ficou para trás no jogo e deixar as soluções para depois pode ficar muito caro”, adverte José Goldemberg, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).
“Apesar do regime político fechado, a classe média que ascendeu na China já considera a poluição [7] como algo insuportável, pressionando por mudanças”, analisa Goldemberg, ao lamentar que no Brasil, onde na última década a população mais pobre também conquistou acesso ao consumo, “a ficha ainda não caiu”.
[7] É um dos principais temas tratados nas redes sociais chinesas, como a Sina Weibo (similar ao Twitter).
Menos calorias
Para Gilmar Masiero, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, a dianteira dos chineses tem uma explicação histórica: “Eles desenvolveram a indústria e a economia a partir da lição dos coreanos e japoneses, só que de uma maneira muito mais veloz, e é natural que a busca por soluções para reverter impactos ambientais seja também mais rápida em relação ao que fazem os demais emergentes”. Na análise de Masiero, “em 30 anos, cerca de 400 milhões de habitantes foram incorporados ao mercado de consumo na China e o mundo deve se adaptar a isso sem catastrofismo”.
A expansão produtiva para outras regiões do planeta, com ocupação de novas fronteiras, é uma saída. “Descentralizar a produção para torná-la mais eficiente e menos impactante é uma reflexão da atualidade na China”, afirma Carlos Rossin, líder de sustentabilidade da PwC Brasil. Outro aspecto em debate é até que ponto a falta de espaço para plantar e as restrições a cultivos agrícolas, devido a riscos ambientais, poderão influenciar a alimentação chinesa, que se torna mais calórica, ao estilo europeu e americano. “Se o padrão de consumo naquele país chegar ao nível atual das nações ricas, o planeta entrará em colapso”, prevê Rossin. Ele conclui: “Algum lado terá que abrir mão e reduzir o apetite”.
Para Rossin, falta maior abertura e engajamento da China para o debate sobre o valor das cadeias de insumos, principalmente no que se refere à origem socioambiental da matéria-prima embutida nos produtos que vende mundo afora. Internamente, o lixo gerado pela expansão do consumo não ganhou até o momento uma solução à altura. Não há cooperativas de catadores e a coleta seletiva de resíduos é desorganizada, apesar de haver uma vasta rede de fábricas recicladoras, abastecidas por sucateiros chineses e por resíduos comprados no exterior – até mesmo grande quantidade de lixo eletrônico [8], com risco de contaminação de trabalhadores e do ambiente por metais pesados.
[8] 70% do lixo eletrônico gerado no mundo se destina à China.
“Com a expansão da demanda interna, o governo está querendo mudar a atual realidade, inclusive investindo em grandes incineradores para geração de energia a partir do lixo nas cidades de maior porte”, diz Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak.
Como o poder é centralizado e tudo depende das regras do governo, há pouco espaço para as empresas se organizarem e promoverem a reciclagem como ocorre no Brasil. “Mas um dia a barreira será superada, assim como ocorreu com as emissões de carbono”, prevê o diretor. Para ele, apesar de tantas diferenças culturais, o modelo brasileiro de reciclagem poderia ser adaptado à realidade chinesa. Passo importante seria dado em abril, quando uma delegação daquele país visitaria o Brasil, Estados Unidos e Espanha para conhecer como funciona a coleta seletiva de resíduos, mas a viagem foi adiada. “Tudo na China tem seu tempo”, ressalta Von Zuben.
Com o maior acesso a bens materiais, a questão ideológica passou a ser secundária no país. “O sonho chinês, uma paródia ao velho conhecido ‘sonho americano’, é melhorar cada vez mais as condições de vida, mantendo a economia equilibrada na atual faixa de crescimento de 7% ao ano”, analisa José Augusto Guilhon, integrante do Grupo de Estudos Brasil-China, do Fórum Pensamento Estratégico, da Universidade de Campinas. Mas não é uma tarefa fácil, pois há vozes discordantes no alto escalão do poder. “Manter a economia galopando como antes, sem restrições ambientais, significa mais obras e verbas que podem ser manipuladas, com margem à corrupção”, explica o especialista.
Ele reforça: “O desejo por qualidade de vida está muito presente entre os chineses, puxado por questões socioambientais, com destaque para o clima”. De fato, a China indica que mudou de direção nesse campo, mas, na opinião de Guilhon, “ainda está longe do ideal e nenhum efeito prático deverá ser sentido nos próximos dez ou quinze anos”. Pressões sobre o governo são limitadas, porque os movimentos sociais independentes são poucos e inexpressivos. A força está nos novos conceitos de bem estar e felicidade que povoam o imaginário chinês após a febre do crescimento econômico com índices de dois dígitos, verificado na última década. É a principal motivação para o gigante acordar de vez e os planos saírem do discurso.
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