Por: André | 26 Junho 2014
Economia, política, gênero, história, espiritualidade... 30 anos após a morte do filósofo, ocorrida no dia 25 de junho de 1984, nosso século neoliberal carrega seu nome. Explicações.
A reportagem é de Eric Aeschimann e publicada no sítio francês Le Nouvel Observateur, 24-06-2014. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/1ktmvYc |
Em 1979, no âmbito dos seus cursos semanais no Collège de France, Michel Foucault dedicou três sessões à teoria neoliberal. Ali ele analisa autores pouco conhecidos na França: os economistas alemães do pós-guerra, o austríaco Friedrich Hayek ou ainda o ultraliberal americano Gary Becker, futuro Prêmio Nobel de Economia.
Com um incrível senso de antecipação, ele revela o verdadeiro projeto dessa corrente de pensamento: oficialmente, o neoliberalismo pretende “libertar” as pessoas e permitir-lhes agir como bem entenderem; na verdade, explica o filósofo, trata-se de impor um modo de vida inteiramente guiado pelos interesses e pelo cálculo econômico. O mercado não é um mecanismo natural, mas um dispositivo, uma “disciplina”, uma “técnica de governo”, como a prisão ou o hospital psiquiátrico. O neoliberalismo fabrica o homo economicus da mesma forma que a clínica fabrica o louco.
Na época, a questão não interessava a ninguém. Thatcher ainda não está no poder, e ninguém imagina a onda neoliberal que vai se abater sobre o planeta. Foucault passa a outro tema, e, quando ele morre, em 1984, esse aspecto da sua obra cai no esquecimento. Em 2004, o curso de 1979 vira livro, intitulado Nascimento da Biopolítica (Martins Fontes, 2008), o que não facilita a sua disseminação entre os economistas.
Foi preciso esperar até 2009 e a obra de dois filósofos, Christian Dardot e Pierre Laval, para que se impusesse a ideia de que Foucault foi também um brilhante analista da economia liberal. Em A nova razão do mundo, os autores aplicam sua intuição à crise financeira: o que nos é apresentado como um caos descontrolado procede, na realidade, de uma racionalidade deliberada, de um “sistema disciplinar global”. Detalhe significativo: entre os intelectuais marcados pela leitura de Dardot-Laval, encontramos Aquilino Morelle, o conselheiro político do Palácio do Elíseo e redator do famoso discurso do candidato Hollande em Bourget sobre as finanças...
“Eu relia Foucault cada vez que escrevia um livro”
Em 2014, vamos comemorar o trigésimo aniversário da morte de Michel Foucault. Seminários são planejados em todo o mundo, e aquele que será realizado em Paris, em junho, reunirá o que há de melhor no pensamento contemporâneo. Mas, para ser franco, o triunfo já está registrado. Dos grandes teóricos dos anos 1970, Foucault é, atualmente, o mais influente, bem à frente de Lacan, Derrida, Deleuze ou Bourdieu.
E sua influência ultrapassa o âmbito da filosofia. “Biopolítica”, “controle”, “dispositivo”, “normas” ou “cuidado de si”, “governamentalidade”, são conceitos foucaultianos comumente usados em história, sociologia, economia, geografia... “Este século será deleuziano”, escreveu gentilmente Foucault sobre seu amigo (e rival); entretanto, parece que o século é especialmente foucaultiano.
A temporada literária ofereceu três brilhantes exemplos dessa influência. O historiador Patrick Boucheron, figura da nova história global e autor de um ensaio sobre o afresco do “Bom governo” de Lorenzetti, confidencia: “Eu relia Foucault cada vez que começava a escrever um novo livro”.
Achille Mbembe, sociólogo camaronês que leciona nos Estados Unidos e na África do Sul, apóia-se em Foucault na sua Crítica da razão negra para mostrar que o Estado moderno é indissociável da produção de raças. Quanto à Judith Butler, a papisa dos gender studies, sua crítica das normas sexuais inspira-se amplamente em História da Sexualidade (Editora Paz e Terra). Também podemos citar Pierre Zaoui e seu recente elogio da discrição, impregnado da moral foucaultiana, ou ainda Didier Fassin e seu trabalho sobre a moral do Estado, um tema de estudo típico do autor de Vigiar e Punir (Editora Vozes).
Fonte: http://bit.ly/1ktmvYc |
Por que Foucault domina a tal ponto, 30 anos após sua morte? Primeira explicação: do ponto de vista editorial, Foucault é um escritor... vivo. Quase todos os anos, graças à publicação dos cursos no Collège de France, novos textos são disponibilizados para o público. E sem fundos de gaveta, mas de verdadeiros textos inéditos, onde o filósofo aborda temas totalmente novos e muitas vezes inesperados, como o problema da mão de obra no século XVIII, o destino da palavra “economia”, o pensamento cínico ou definição da “vida filosófica”.
Preciso, sem ser dado a jargões, animado por um incrível entusiasmo intelectual, o Foucault do Collège de France é esse samurai de gola alta descrito por seu amigo, o historiador Paul Veyne: cortês, cético, mas enérgico, aventureiro, destemido, sempre pronto para explorar novas áreas. E os leitores acompanham-no, tanto na França (cerca de 15.000 exemplares para cada curso e 1,3 milhão no total para os ensaios) como no exterior (os cursos são traduzidos em 30 idiomas, com uma grande demanda nos Estados Unidos, na América do Sul e na China).
As grandes questões políticas do nosso tempo
A segunda explicação: através desses cursos, Foucault oferece ferramentas únicas para abordar as grandes questões políticas do nosso tempo: o que é o poder? De que ele é capaz? O que eu posso fazer diante dele? A pedra angular do seu pensamento é o conceito de biopolítica. Por este neologismo, o filósofo designa o fato de que, desde o século XVII, o principal poder do Estado soberano sobre seus súditos não é mais de fazê-los morrer (como nos tempos feudais), mas de fazê-los viver.
O Estado higienista representa por excelência o poder biopolítico que afeta as vidas e os corpos: ele fixa as normas sanitárias, desenvolve os cuidados, incentiva os nascimentos, faz o elogio da família, reúne estatísticas. “A biopolítica permite clarear a relação tão confusa hoje entre o individual e o coletivo”, nota Mathieu Potte-Bonneville, um dos representantes da jovem guarda foucaultiana. “O poder biopolítico é exercido sobre as vidas, mas as vidas podem retroagir sobre ele: esse é o caso quando protestamos, quando nos manifestamos”.
O tema da biopolítica é bem exportado. Está na base das duas principais escolas de pensamento que dominam nos Estados Unidos, os gender studies e os estudos pós-coloniais. A teoria do care, que também veio do outro lado do Atlântico, ecoa a noção de “cuidado” que Foucault recuperou dos estóicos (ver, por exemplo, os trabalhos de Guillaume Le Blanc sobre a vulnerabilidade).
De Chakrabarty a... Michel Onfray
Professor de Chicago e responsável pela publicação dos cursos nos Estados Unidos, Arnold Davidson pode testemunhar o interesse suscitado pelo pensador francês entre seus pares. Seu colega Dipesh Chakrabarty, o grande filósofo bengali, telefona-lhe regularmente para esclarecer este ou aquele ponto do pensamento de Foucault. Os departamentos de Teologia e Antropologia pedem-lhe conferências. E, num colóquio recente, um outro colega, o economista Gary Becker, o mesmo que foi longamente analisado nos cursos de 1979, exclamou: “Foucault entendeu perfeitamente o que eu queria dizer!”
Porque se pode apreciar Foucault sem ser hostil ao liberalismo. Este é o caso de seu ex-assistente, François Ewald, e do sociólogo Geoffroy de Lagasnerie, que vê em Nascimento da Biopolítica uma espécie de elogio do pensamento neoliberal. De resto, é a terceira explicação: Foucault critica, mas nunca cai na simples indignação. Ele não demoniza o poder e não o reduz apenas à dominação.
Para ele, governar é uma relação a dois, e se os nossos modos de vida e as nossas condutas são determinados pelo poder, são necessários, porque eles fazem de nós sujeitos ativos. Por exemplo, com o documento de identidade, o Estado me controla, mas também permite que viaje. Portanto, a contestação passa principalmente pelas “micro-resistências”, que não pretendem quebrar as normas, mas torná-las mais vivas.
De onde o amplo espectro de sensibilidades que se inspiram no pensador no campo da filosofia política, dos “reformistas” da revista Esprit (Myriam Revault d’Allonnes, Frédéric Gros, Jean-Claude Monod, Michaël Foessel) aos pensadores do novo radicalismo político (Toni Negri, Giorgio Agamben e mesmo Julien Coupat, a ativista de Tarnac).
Mais fascinante ainda: esse poder sobre os indivíduos (o que ele chama de “governo dos outros”) também pode ser aplicado a si mesmo (é o “governo de si”). É uma filosofia mais pessoal que se revela então: como lembra Judith Revel, outra especialista em Foucault, sua obra é alimentada desde o princípio “por suas experiências pessoais, como sua dupla tentativa de suicídio nos anos 1950, inseparável de seu interesse pela loucura”.
No final da sua vida, Foucault explora novos temas (o “cuidado de si”, a “verdadeira vida”, a “coragem da verdade”), apaixona-se por Tertuliano, Cassiano, São João Crisóstomo, pelo cristianismo primitivo, pelas técnicas da confissão, pelos exercícios espirituais do Concílio de Trento...
E se aproxima do filósofo Pierre Hadot, o grande inspirador da renovação da filosofia como um modo de vida. Ele populariza sua obra. Quando sabemos que Pierre Hadot teve por discípulos, especialmente, Luc Ferry e Michel Onfray, vemos que o impacto de Foucault no campo intelectual francês pode atingir dimensões inimagináveis.
La Societé Punitive. Cours au Collège de France 1972-1973, por Michel Foucault, Seuil-Galilimard, “Hautes Études”, 368 páginas, 26 euros.
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Por que Foucault está em toda parte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU