Por: Cesar Sanson | 14 Janeiro 2014
Sérgio Silva teve a visão esquerda mutilada pela PM no centro de São Paulo em 13 de junho. Na inconstância da recuperação, pede a proibição das balas de borracha: 'São armas letais'.
A reportagem é de Tadeu Breda e publicada pela Rede Brasil Atual – RBA, 13-01-2014.
Sérgio avisa, “Gosto de café bem doce”, antes de enterrar a colherzinha no pote açúcar. Carregado, o talher abandona o recipiente metálico, sobe alguns centímetros e se dirige lentamente à xícara fumegante. Por um instante, estaciona no ar. “Bem doce”, repete, e lança o montículo branco em queda livre. Os cristais, porém, não mergulham no alvo: chocam-se contra a madeira e se esparramam pela mesa. O embaraço é inevitável.
“Faço isso o tempo todo”, justifica. “Estou sempre esbarrando e derrubando coisas.”
Alguns minutos antes, Sérgio, num gesto qualquer, havia estapeado o gravador que registrava sua voz. Outro dia, na rua, seu cotovelo acertou em cheio o nariz de uma mulher quando o braço desastrado quis dar sinal para um ônibus que se aproximava. “Agora preciso fazer tudo, tudo mesmo, com muita calma e maestria.”
Há sete meses, a vida de Sérgio se resume a prestar máxima atenção às tarefas mais elementares. Subir escadas distraído é como escalar um tombo. Perambular pelas calçadas da Vila Jaguara, na zona oeste de São Paulo, onde mora, significa cabeça perpetuamente baixa, medindo degraus repentinos, irregulares, que se reproduzem ao sabor das garagens dos vizinhos.
“Atravessar a rua é terrível”, conta. “Usar a faixa já era um hábito meu, mas, agora, não me arrisco fora dela nem quando não há carros por perto.”
Sérgio adquiriu um novo medo, que não costuma figurar no rol das paranoias de quem frequenta a rua desde criança: ser atropelado. Hesita mesmo quando o farol está verde para os pedestres. Pensa, analisa, certifica-se do autoimobilismo antes de deixar uma calçada rumo à outra.
As dificuldades se repetem nas tentativas lentas, seguras e graduais de voltar ao trabalho. Sérgio demora um pouco mais para montar tripé, luzes e demais equipamentos de gravação, ofício que começa a aprender. “E as pessoas ficam esperando...”
Quando está com a câmera na mão, perde o foco e as oportunidades, com receio de pisar no pé alheio ou tropeçar em fios espalhados pelo chão. “São falhas que, antes, eu não cometeria, não faria, nunca fiz.” É nos detalhes do dia a dia, todos os dias, que Sérgio se dá conta da falta que lhe faz o olho esquerdo. “A grande mudança aparece nas coisas mais banais.”
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No dia 13 de junho, muita gente sabia – e outras tantas desconfiavam – que a Polícia Militar agiria com a dureza prometida na véspera pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Sérgio Andrade da Silva, 33 anos, não.
“Saí de casa para cobrir um protesto pacífico”, revela.
Nem as duas inexplicáveis ligações que recebeu à tarde, da sogra e de um amigo, ambas pedindo cuidado, o demoveram da ideia. “Pensei em desistir, parecia um sinal. Só que o lado profissional pesou mais.” Quando chegou à manifestação, Sérgio teve certeza de ter tomado a decisão correta. “O que vi no início da passeata eram pessoas muito empenhadas para que tudo realmente ocorresse na maior tranquilidade.”
Na quinta-feira, a partir das 18h, o centro da capital seria tomado pela quarta vez em menos de uma semana por manifestantes contrários ao reajuste das tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade, vinte centavos, implementado em conjunto pelos governos municipal e estadual onze dias antes. Fotógrafo de paixão e profissão, Sérgio tinha um plano para a noite que começava.
Envolvido numa mudança de residência que nunca aconteceu, ainda não havia presenciado nenhum protesto. “Estava dedicando meu tempo a visitar casas e apartamentos.” Naquele dia, porém, o fotógrafo deixou de lado imobiliárias e ofertas de aluguel pela internet: queria fazer algumas imagens da mobilização social, que crescia, apesar da oposição ferrenha da classe política tradicional e dos meios de comunicação de massa.
“Alguma coisa ficava mexendo dentro de mim. Eu precisava estar ali, registrando aqueles momentos. Algo me dizia que era importante.”
Com sorte, além de testemunhar um episódio que entraria para a história recente do país, Sérgio poderia comercializar seu trabalho pela Agência Futura Press.
Fotojornalismo era um de seus empregos eventuais, um dos muitos ganha-pão temporários a que um freelancer tem de recorrer para pagar as contas.
Porém, não poderia ficar muito tempo na manifestação – não dessa vez. Sua esposa chegaria de Brasília às dez da noite, e ele havia prometido buscá-la em Congonhas. Voltariam para casa, abraçariam as duas filhas e jantariam juntos. O reencontro do casal, porém, se daria duas horas e meia depois do planejado. Não no aeroporto, mas no hospital. E sem as meninas.
“A bala me escolheu”, lamenta Sérgio, relembrando o azarado acaso que preferia jamais ter vivido. “Eu não estava na linha de frente, estava para trás de algumas pessoas. O projétil passou por um corredor de gente antes de me acertar. Poderia ter acontecido com qualquer outro.”
Antes de mutilar-lhe o olho esquerdo, a pequena esfera atravessara as duas pistas da Rua da Consolação e se esgueirara pela estreiteza que separa uma parede e uma banca de jornais na esquina com a Rua Caio Prado. Quase 20 metros distavam o atirador e seu minúsculo alvo.
“Ele foi muito preciso, mas não teria capacidade para ser assim tão certeiro, nem se quisesse”, ressalta Sérgio, lembrando que uma cortina cinzenta de gás lacrimogêneo impedia que o policial fizesse mira especialmente no globo ocular do fotógrafo. Sérgio é apenas uma das pessoas feridas no 13 de junho. Não foi o único a receber tiros de borracha, e sequer detém exclusividade entre os feridos diretamente no olho pelo projétil, usado sem cerimônia pela PM naquela noite.
Vítima do mesmo artefato, Giuliana Vallone, repórter da TV Folha, teria a visão direita salva pelos óculos: a lente de acrílico suportou o impacto e protegeu seu globo ocular. A imagem de suas pálpebras inchadas, imersas na roxidão, ganhariam a internet e comoveriam muita gente – inclusive fora do país. No dia seguinte, contudo, Giuliana estaria enxergando. Sérgio, não. Nunca mais.
De acordo com o Movimento Passe Livre, que encabeçou os protestos pela redução da tarifa do transporte público na cidade, pelo menos 150 cidadãos, entre manifestantes, jornalistas e transeuntes, foram violentados de alguma maneira pela PM na noite de quinta-feira. As agressões foram variadas: de lambadas de cassetete no rosto e nas costas a assédio sexual e ameaças de estupro, passando por estilhaços de bombas, sufocamento por gás e, claro, tiros de borracha. Outros tantos apanharam e preferiram voltar para casa calados.
O fotógrafo, porém, foi o mais prejudicado pelos abusos policiais que ganharam as ruas de São Paulo durante todas as jornadas de junho: apenas Sérgio teve um órgão tão importante sequelado para toda a vida – e apenas ele sentiu sua carreira tomar um rumo indesejado e inesperado devido à ação repressiva do Estado.
Por isso, coloca em xeque os discursos governamentais. Não acredita que sua cegueira tenha sido perpetrada por um mero desvio de conduta, uma excepcionalidade, como querem fazer crer comandantes e secretários de Estado.
“Tenho um metro e oitenta de altura. Para me atingir no olho, ainda que não tenha mirado em mim, o policial estava com a arma apontada para a cabeça das pessoas”, analisa. “Isso é inaceitável. Ele atirou para machucar.”
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As queixas de Sérgio sobre a má utilização do armamento são corroboradas pela Condor Não Letal, uma das maiores fabricantes brasileiras de balas de borracha – ou balas de elastômero, termo pelo qual são tecnicamente conhecidas.
“As balas de borracha devem ser preferencialmente disparadas da cintura para baixo, nunca contra a cabeça e o pescoço. Os manuais de instrução e todos os treinamentos dão essa orientação, que é universal”, afirma a empresa, em nota, ressalvando que os artefatos devem ser utilizados apenas quando os policiais estão em perigo. “As balas de borracha estão posicionadas no último degrau da não letalidade, antes da arma de fogo. São indicadas para situações graves, contra indivíduos portando coquetéis molotov ou armas brancas.”
De acordo com as diretrizes da fabricante, a direção dos disparos e o momento em que os policiais empregaram elastômero contra os manifestantes, em São Paulo, dia 13 de junho, foram impróprios.
Apesar da tensão crescente, fruto do bloqueio que impedia os manifestantes de avançarem rumo à Avenida Paulista, os ânimos estavam sob controle. Tanto que, segundos antes da primeira bomba, o comandante da operação, tenente coronel Ben Hur Junqueira Neto, elogiava a organização da passeata. “Para mim, sem problemas, se continuar dessa maneira”, expressou, diante de várias câmeras, manifestantes e repórteres. “Dessa vez, vocês estão de parabéns.”
A Polícia Militar de São Paulo não parece possuir regras claras para o uso de balas de borracha. Se possui, recusa-se terminantemente a revelá-las. Alega “motivos de segurança”. Uma rápida pesquisa na internet, porém, dará acesso à segunda edição de um documento publicado em 1997, com tiragem de dois mil exemplares, intitulado Manual de Controle de Distúrbios Civis da Polícia Militar.
Pelos mesmos motivos estratégicos, a PM não confirma a veracidade ou a atualidade do texto. No entanto, a introdução que figura no documento é exatamente a mesma que aparece no saite do 2º Batalhão de Polícia de Choque, na seção Controle de Distúrbios Civis. É uma descrição dos tipos de aglomeração popular segundo seus níveis de organização: multidão, turba, manifestação, tumulto etc. E suas causas: sociais, econômicas, políticas...
Há poucas referências às balas de borracha nas mais de cem páginas do manual. Uma delas indica como os policiais devem empregar os projéteis de elastômero na contenção de conflitos rurais. “O uso de pistola, espingarda calibre 12, thru-flight, com as respectivas munições antimotins (projéteis de borracha), deve ser empregado a uma distância segura para evitar o contato físico da tropa com os sem-terra, sendo meio importante por não causar ferimentos de gravidade.”
Em seguida, porém, as instruções autorizam um emprego mais temerário da munição. “A pistola poderá ser usada a uma distância mais aproximada como forma de dispersão dos sem-terra.” O restante do manual se dedica a explicar formações de ataque e defesa, composição hierárquica das tropas de choque e orientações para uso de gás lacrimogêneo e cassetetes, entre outras diretrizes.
“As informações oficiais da polícia são as mais difíceis de obter. A gente já tentou até pela Lei de Acesso à Informação, mas é complicado”, relata Leonardo Blecher, membro da ONG Menos Letais, contrária ao empenho de balas de borracha na repressão às manifestações públicas. “Sem que a população conheça os parâmetros de uso, não temos nem como protestar.”
Blecher reclama a elaboração de legislações claras sobre o emprego dos artefatos antidistúrbio – preocupação que já chegou ao Congresso Nacional. Tramita pelo Senado o Projeto de Lei (PLS) nº 300, de 2013, que pretende proibir balas de borracha durante protestos populares no país. Na justificativa do texto, o autor da proposta, senador Lindbergh Farias (PT-RJ), argumenta que, “sem adequado treinamento e sem uma reforma humanitária das polícias, a autorização de uso de bala de borracha acaba resultando em arbitrariedades”.
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa analisa proposta semelhante, o Projeto de Lei nº 608, também de 2013, elaborado pelo deputado estadual Luiz Cláudio Marcolino (PT). “Algo tem que ser feito, com urgência, para impedir o uso dessas munições, antes que elas venham a produzir efeitos letais em manifestantes”, sustenta. Ambas as iniciativas foram motivadas pela atuação das polícias militares durante as jornadas de junho – e pelos efeitos perniciosos das balas de borracha atiradas irresponsavelmente contra cidadãos no uso de suas liberdades democráticas.
A Resolução Nº 6 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, publicada em 18 de junho, reforça a cautela no uso das balas de elastômero e outros artefatos. Assinado pela ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, o documento afirma que o uso das armas “somente é aceitável quando comprovadamente necessário para resguardar a integridade física do agente do poder público ou de terceiros, ou em situações extremas em que o uso da força é comprovadamente o único meio possível de conter ações violentas”.
O nome da organização a que pertence Blecher reflete a motivação de militantes sociais, governantes e parlamentares que defendem restrições ao emprego desses artefatos durante manifestações públicas. Para eles, balas de borracha, bombas de efeito moral, spray de pimenta e gás lacrimogêneo jamais poderiam ser classificadas como artefatos não letais. “São menos letais, porque podem matar – ainda mais se utilizados indevidamente”, explica o militante.
A PM paulista endossa essa tese: “Não possuímos armas não letais”, explica a corporação, preferindo classificá-las como munições de baixa letalidade. Oficiais também se pronunciam nesse sentido. Deputado estadual desde 2007, Major Olímpio (PDT) já exerceu as funções de comandante da PM na região central de São Paulo, responsável pelo policiamento dos pontos mais procurados pelos manifestantes da cidade: Avenida Paulista, Anhangabaú, Rua da Consolação, Parque Dom Pedro II e Praça da Sé.
“Não existe equipamento não letal, mas equipamento menos letal”, pontua. “Com uma caneta você pode torturar uma pessoa um dia inteiro, ou até matá-la.” Com experiência no controle de distúrbios civis, Major Olímpio é favorável ao emprego de armas com baixo potencial ofensivo em manifestações, com uma ressalva: é preciso utilizá-las com o devido preparo.
“A técnica permite que cem homens contenham dez mil pessoas”, explica, dando maiores detalhes sobre as instruções que costumam ser repassadas aos homens da tropa de choque. “Com bala de borracha, os disparos devem ser efetuados em 45 graus para atingir regiões da cintura para baixo, pernas e abdômen. Se impactar nas superfícies moles do corpo, todo mundo sabe que o elastômero pode matar.”
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No meio do tumulto, Sérgio não viu a pequena esfera vindo em sua direção. Logo após as primeiras investidas do choque, percebeu que a polícia não queria apenas dispersar o protesto. E procurou abrigo. Protegido atrás da banca de jornais, relativamente distante do foco das agressões e tomando todo o cuidado que podia, não esperava ser atingido. Ainda menos no olho.
“Lembro de um policial ter atirado uma bomba contra um grupo de colegas da imprensa, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, que estavam na esquina”, relata, fazendo referência a um episódio que está registrado em vídeo: profissionais acuados, trabalhando, quando um soldado sai da formação e lança uma bomba contra o grupo inofensivo. “Achei aquilo um absurdo, e pensei: eles estão atirando em todo mundo, sem dó, sem pena, sem qualquer distinção.”
Com medo, Sérgio deixou as fotos de lado por um momento. Tossiu e sentiu ânsias de vômito. Usou a camiseta para se proteger do gás. Seus olhos ardiam. Tentou se livrar dos efeitos lacrimogêneos com algumas cusparadas, em vão. Acuado e sem muitas opções, decidiu retomar o trabalho quando percebeu uma momentânea trégua nos estrondos policiais.
“Quis fotografar a tropa de choque em posição de ataque exatamente na esquina oposta, atirando para todos os lados. Fiz três fotos num só disparo. Quando tirei a câmera do olho, senti o impacto.”
Mirar pelo visor, clicar e verificar a imagem na tela atrás da câmera é um gesto quase automático dos fotógrafos desde que equipamentos digitais chegaram ao mercado. Era o movimento que Sérgio fazia, pela última vez naquela e em muitas outras noites.
“Na hora, é quase imperceptível. Talvez por causa da velocidade do projétil, e pelo fato de ser de borracha”, conta, tentando encontrar palavras para descrever a medonha sensação que vem logo em seguida. “Você sabe como é ter um olho esmagado? Sabe me dizer que dor é essa? Pois é, eu senti e nem assim consigo explicar.”
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Apesar da dor indizível, o globo ocular de Sérgio, à primeira vista, não fora prejudicado pela bala de borracha. “A gente observava, por fora, um olho íntegro, sem qualquer ruptura aparente”, lembra Elisabete Nogueira Martins, médica do Hospital de Olhos Paulista. Elisabete foi uma das profissionais que atenderam o fotógrafo na manhã seguinte ao tiro, quando ele chegou à instituição, conhecida como H. Olhos, depois de uma rápida passagem pelo Hospital Nove de Julho. “Os danos foram todos internos.”
A oftalmologista conta que a quantidade de sangue que emanava de seus vasos intraoculares impedia um exame mais preciso das consequências trazidas pelo ferimento. “Só conseguimos examiná-lo com a ajuda de uma ultrassonografia.” O equipamento permitiu aos médicos constatarem que todas as estruturas do olho de Sérgio haviam sido comprometidas. “A parede de trás estava inchada, mais espessa que o normal. Havia hemorragia. A íris estava dilatada”, cita Elisabete, destacando que os ferimentos eram irreversíveis. “O olho se perdeu no momento do impacto.”
O diagnóstico do H. Olhos é compatível com o comunicado que o “anjo da guarda” de Sérgio, Severino Honorato, recebeu dos profissionais que primeiro atenderam o fotógrafo no Hospital Nove de Julho. “Assim que souberam o grau de dano que ele tinha no olho, um médico veio e me falou: Muito difícil”, recorda o professor que acudiu o fotógrafo logo após o tiro. “Demorou menos de uma hora e meia para que eu recebesse essa notícia.”
Basta imaginar que o olho esquerdo de Sérgio é uma bexiga, segurá-la com uma das mãos e apertá-la com a outra. A esfera se deforma. Ao retirar a pressão, volta ao formato original. O globo ocular do fotógrafo sofreu processo semelhante: a bala de borracha comprimiu seu olho. O movimento foi fatal.
“Cada parte do órgão tem um nível de resistência e elasticidade, e suportam o impacto de maneira diferente”, explica Elisabete. No caso de Sérgio, a parte branca do olho, chamada esclera, resistiu à agressão e não se rompeu. “Por isso, o globo ocular estava íntegro”, continua a médica. “Mas as outras partes... Houve um comprometimento bem importante mesmo.”
Além dos prejuízos imediatos e irreversíveis à visão esquerda, o projétil fraturou os ossos da face de Sérgio em dois lugares ao redor do olho: abaixo do globo, na estrutura que serve de apoio para o órgão, e ao lado do aparelho ocular, quase no nariz. “O impacto não foi pequeno”, conclui a oftalmologista. “Não é qualquer acidente que provoca, ao mesmo tempo, danos oculares e fraturas – e foram duas.”
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Mesmo em pânico, Sérgio foi tomado pela dúvida ao perceber que seu olho havia sido atingido. “Com dor, sangramento, bomba, gás, tudo acontecendo, aquela loucura toda, ainda consegui pensar: o que será que me acertou?” As incertezas não tardariam em se desfazer. “Não foi nada pontiagudo”, raciocinou. “E, na manhã seguinte, a pessoa que me socorreu retornou à mesma esquina, ao lado da banca, e encheu a mão com balas de borracha. Havia várias, várias.”
Mais de seis meses depois, a PM responderia parcialmente aos questionamentos enviados por um professor da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado, quem se valeu da Lei de Acesso à Informação para saber quanta munição de baixa letalidade os policiais haviam empregado em 13 de junho. Na resposta, a corporação admite o uso de 506 balas de elastômero e 938 bombas de gás lacrimogêneo.
Minutos após o disparo, Sérgio, desnorteado, recebeu a ajuda de Severino Honorato, 41 anos, professor de uma escola pública na zona sul da capital. Severino estava na manifestação junto com companheiros do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), de quem se perdeu rapidamente após a repressão. “Sou sindicalista há 24 anos, já participei de muitos movimentos, já estive em greves em que a polícia usou de muita violência, já vimos de tudo”, explica. “Mas aquela noite me surpreendeu.”
Considerado um verdadeiro herói pelos familiares de Sérgio, o professor nega qualquer gesto de valentia. Em seu lugar, diz, qualquer um teria ajudado. “É reflexo dos manifestantes se solidarizarem.” Assustado como todo mundo após as primeiras agressões da PM, Severino caminhava meio sem rumo quando trombou com o fotógrafo, mãos no rosto, em frente a um bar.
“Ele gritava muito, Meu olho! Meu olho!”, lembra. “Meu olho tá furado! Me ajuda!” Após o encontrão, Sérgio, que já vinha desequilibrado, estatelou no chão. Severino levantou o rapaz ferido e colocou seu braço em volta do pescoço. “A gente tinha que sair dali o mais rápido possível, porque a situação dele estava feia.”
Então começou o “trajeto mais longo e doloroso” da vida do fotógrafo. E um desafio inédito para Severino. “Foi difícil carregar esse cara.”
A primeira ideia foi caminhar até o posto de saúde improvisado pelo coletivo Matilha Cultural na Rua Rego Freitas, a apenas 200 metros da banca. Mas era impossível: para chegar até lá, seria necessário atravessar a linha policial. A barreira, intransponível, também impedia o acesso da dupla à Santa Casa, na Rua Veridiana. Dez minutos de caminhada, se tanto, bastariam para que Sérgio recebesse os primeiros socorros no hospital, que atende pelo SUS.
“Pensamos, pensamos, e foi Sérgio quem falou: vamos para o Nove de Julho.” Severino abraçou seu novo amigo e juntos se afastaram da truculência policial. Caminharam até o final da Rua Caio Prado, desceram um escadão e subiram a avenida que dá nome ao hospital. O trânsito estava parado, era inviável pegar um táxi. O jeito era ir a pé. Sob o eco de bombas cada mais mais distantes, a maratona se estendeu por intermináveis 40 minutos.
Sérgio havia tirado a camiseta, que utilizava para conter o sangue do olho ferido. Foram instantes de completa cegueira. A vista esquerda, destruída, obviamente não podia ver nada. E a direita, ele mal conseguia abrir, lancinante era a dor.
Apoiado em Severino, o fotógrafo teve que parar várias vezes para vomitar. O gás havia ressecado sua garganta. A garrafinha d'água que compraram num posto de gasolina, logo no início da via crucis, não fora páreo para as reações químicas da fumaça. Sérgio tinha dificuldades para respirar.
“Em alguns momentos, ele queria parar”, recorda o professor. “Eu dizia: Força, você precisa continuar caminhando. Pensa nas pessoas que você gosta, na sua esposa, nas suas filhas, e vamos tocando o barco.”
Sérgio guarda poucas lembranças da caminhada: conversas monossilábicas com Severino sobre qual seria a hora mais propícia para avisar a esposa que chegaria de Brasília, uma sede insaciável, cansaço, desespero, agonia. “A vontade que eu tinha era de me jogar no chão para ver se toda aquela dor diminuía.”
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Não são apenas representantes de movimentos sociais, partidos de esquerda, defensores dos direitos humanos, imprensa e manifestantes que classificam a operação policial de 13 de junho como violenta e desastrosa. “Aquilo se transformou numa briga de rua”, define Major Olímpio, “o que demonstra fragilidade e falta de planejamento da Polícia Militar no episódio.”
O deputado está longe de ser um “inimigo da PM”, e tampouco tem interesse em “denegrir a imagem da corporação”. Major Olímpio trabalhou 35 anos na polícia. Utiliza sua patente e o logotipo da instituição em suas campanhas eleitorais. Está sempre tomando parte em iniciativas parlamentares para melhorar a vida e as condições de trabalho dos colegas. Entre os souvenires que decoram seu gabinete, destacam-se um capacete da tropa de choque e seu quepe de oficial.
No entanto, como integrante da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa, o deputado estava no centro de São Paulo no dia 13 de junho, acompanhando as manifestações. “Aquilo estava uma zona generalizada. Você não conseguia identificar técnica policial nenhuma”, analisa. “Poderíamos ter tido – e estou falando no plural – cadáveres nas ruas.”
Major Olímpio debita os abusos que conferiu naquela quinta-feira à perda de controle da PM sobre seus homens. “Depois daquele momento inicial, ninguém mais tinha o comando de ninguém”, continua. “Quando o componente estratégico falha, a possibilidade de ações individuais excessivas é muito maior.”
Um dos exemplos mais graves desses excessos foi o encurralamento de manifestantes, do qual o próprio parlamentar fora vítima. Em alguns momentos, Olímpio ficou entre as linhas policiais, sem ter por onde fugir, sob fogo cruzado da PM. “Disponibilizaram efetivo para confrontar e conduzir e confinar os manifestantes, não para dispersá-los.”
As violações perpetradas pela polícia motivaram a ONG Conectas Direitos Humanos a enviar denúncias aos relatores especiais das Nações Unidas para o Direito de Assembleia e de Associação Pacífica, Maina Kiai; Promoção e Proteção do Direito de Opinião e Expressão, Frank La Rue; Situação dos Defensores de Direitos Humanos, Margaret Sekaggya; Tortura e Outros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanas e Degradantes, Juan Mendez; e Detenção Arbitrária, El Hadji Malick Sow. Tais comunicados foram posteriormente reforçados com testemunhos sistematizados de dez vítimas, entre eles Sérgio Silva, comprovando os abusos.
“Uma das linhas que une todos os depoimentos é o encurralamento. Algumas pessoas usaram inclusive a expressão gato-e-rato para descrever o que viveram nas ruas”, explica Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. “Todos disseram que os policiais estavam muito nervosos, contrastando com a ideia de que a corporação está preparada para lidar com manifestações. Estavam exaltados, xingando e batendo em todo mundo.”
O Centro de Comunicação Social da Polícia Militar se recusa a responder perguntas sobre os operativos do 13 de junho. E bloqueia qualquer tentativa de entrevista com o corregedor-geral da PM, coronel Rui Conegundes de Souza, ou com o comandante da tropa de choque naquela noite, o tenente-coronel Ben Hur Junqueira Neto. Com seu nome épico, cútis morena e bigode grisalho, Ben Hur é por enquanto o único rosto visível entre os oficiais à frente de tantos abusos.
A ONG recorreu à Lei de Acesso à Informação para saber qual foi a cadeia de comando da repressão na quinta-feira. Também pediu acesso aos relatórios de atividade da polícia. Sete meses depois, ainda não obteve resposta – e Rafael Custódio não acredita que vá obtê-las. Com todas as vias administrativas já esgotadas pela renúncia do governo estadual em cumprir a legislação, restará apenas recorrer à justiça.
Quando questionada diretamente sobre quem ordenou a repressão, a PM responde que Ben Hur era o único encarregado. No mesmo vídeo em que parabeniza os manifestantes, porém, o tenente-coronel alerta ao jovem Maurício Costa, militante do Coletivo Juntos, uma das lideranças do movimento com quem o coronel negociava o trajeto da passeata. “Viu, as decisões não são minhas. Eu sou um intermediador, tá?”
A PM também se recusa a reconhecer a ocorrência de qualquer violação de direitos no episódio. Não admite sequer as caricatas detenções por porte de vinagre e as conduções para averiguação, procedimento ilegal em democracia. “Os eventuais abusos cometidos nos protestos de junho estão sendo apurados por meio de inquéritos policiais militares, em trâmite no comando de policiamento de área regional.” Conhecidas como IPMs, as investigação são sigilosas.
No dia seguinte, em entrevista à TV Folha, o coronel Reynaldo Simões Rossi (que seria agredido por mascarados em 25 de outubro, em manifestação pelo passe livre) sustenta a ideia de que a conduta dos policiais é sempre pautada pela correção disciplinar – e que desvios são punidos com rigor. “A PM não admite excesso de conduta e está acostumada a cortar na própria carne. Excluímos entre 200 e 300 policiais por ano, por desvio de conduta perpetrados.”
No entanto, nota da PM declara que desde 2000 – ou seja, nos últimos 13 anos – nenhum de seus homens recebeu punições por excessos praticados durante manifestações públicas. Nem por desvio de conduta, nem por abuso de autoridade, nem por perpetração de violência, nem por violação dos direitos humanos, nem por quaisquer outras irregularidades.
“Não tivemos tais registros”, diz a assessoria de imprensa da corporação, destacando que o emprego indevido de armas de baixa letalidade em protestos tampouco resultou em sanções disciplinares no período. A polícia minimiza os efeitos perniciosos de bombas e balas de elastômero sobre a integridade física dos cidadãos. E tem uma só palavra a dizer sobre ferimentos, cegueiras e afins. “São indesejáveis.”
No dia 13 de dezembro, exatamente seis meses depois do tiro, Sérgio subiria à tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, em sessão solene, para receber o 17º Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos em nome de todos os jornalistas feridos em junho. Vestido com uma camiseta estampada com a frase “Chega de bala de borracha”, o fotógrafo denunciaria mais uma vez o descaso das autoridades sobre o tema.
“O governo do estado de São Paulo ainda não deu respostas à sociedade”, criticou, lamentando a existência de políticos que, ainda hoje, quase 30 anos após o fim da ditadura, coíbem violentamente o direito à livre manifestação. “O governo se finge de surdo, mudo e cego para o problema das armas menos letais, mas quem acabou saindo cego dos protestos fui eu.”
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Sérgio usava uma bandagem bege no olho esquerdo quando nos vimos pela primeira vez. Ainda não nos conhecíamos pessoalmente. Enquanto eu descrevia a cor da minha camiseta e lhe falava de minha calça jeans, óculos e bigode, ao telefone, tentando marcar nosso encontro, ele saiu-se com uma descrição rápida e precisa de si mesmo. “Você vai me reconhecer”, garantiu, “tenho um tampão enorme no rosto.”
Fazia quase três meses que perdera a visão e o adesivo ainda era necessário para proteger o ferimento das sujeiras da rua. Mas não se tratava apenas de recomendação médica: a marca que a bala de borracha imprimira em seu semblante incomodava demais. “Meu olho está bem feio”, contou. “Minha imagem, ainda hoje, é o retrato da violência.”
Durante nossa conversa, quase duas horas, Sérgio não se deixou ver sem o tampão. Mas contou que sua pálpebra rebaixada, e o olho injetado, fundo, desencadearam um processo traumático na filha pequena. Em sua presença, mesmo no sossego de um domingo à tarde, a menina passara a emitir pequenos ruídos, qual soluços assustados. O mesmo som saía da boca de Sérgio nos dias que se seguiram ao tiro. Na psicóloga, soube que os resmungos repentinos da filha eram consequência óbvia da agressão sofrida pelo pai.
Embora estivesse tentando tocar a vida, indo ao médico, aprendendo edição de vídeos e saindo para fotografar descompromissadamente vez em quando, as lembranças de tudo que poderia ter sido mas não foi nem nunca seria por causa do 13 de junho continuavam lhe perturbando sobremaneira. “Dentro de mim, é terrível ainda. É terrível pensar nesse assunto.”
Os piores momentos, dizia Sérgio, era quando se pegava sozinho. Vãs foram as tentativas de se distrair com um livro: em poucos minutos, o cérebro passava a ignorar a leitura, e o olho que lhe sobrou surfava sobre as palavras sem registrar nada. Toda concentração se dirigia aos momentos de dor e desespero da quinta-feira. “Minha cabeça vai sempre parar nesse assunto.”
Marcamos de tomar um café a apenas dois quarteirões da esquina onde Sérgio recebeu o tiro de borracha. Para chegar até lá, o fotógrafo desviou bastante seu caminho com o único objetivo de não colocar os pés naquele lugar de novo. Ainda não era hora. Havia retornado apenas duas vezes ao cruzamento da Rua da Consolação com a Rua Caio Prado, sem querer. A primeira, numa ida ao médico, de táxi. A segunda, quando estava num ônibus. Chorou em ambas.
“Eu evito”, revelou, explicando o misto de sensações, todas ruins, que o lugar passou a lhe causar. “Dá raiva, mas também tristeza pelo fato de eu ter sofrido uma violência gratuita, sem qualquer justificativa.” Tempos depois, Sérgio me falaria sobre o inconformismo que prejudicou seu sono por meses a fio: “Cada pensamento era uma tentativa de encontrar respostas sobre por qual motivo logo eu, um cara que nunca usou a violência para nada, me tornei vítima dela.”
Mais que se indignar com o próprio destino, Sérgio está revoltado com a postura das autoridades. Não quer aparecer como mártir, mas lamenta que o sacrifício de seu olho esquerdo no auge da repressão não tenha sido suficiente para que a polícia deixasse de usar arsenais de baixa letalidade – ou para que, ao menos, os empregasse com maior cautela.
Nos protestos de 7 de setembro, Dia da Independência, outro jovem teria a visão para sempre escurecida pela corporação. Vitor Araújo, de 17 anos, fora atingido no olho direito por estilhaços de uma das inúmeras bombas de efeito moral lançadas pela PM contra manifestantes no centro de São Paulo. Nove minutos da agonia do jovem estão registrados em vídeo e disponíveis na internet.
Nas imagens, ele aparece com uma camiseta branca no rosto, tentando estancar o sangramento. Um manancial vermelho escorre pela bochecha quando alguém tenta lavar a ferida. Não parece, mas Vitor está desesperado. “Eu só quero saber: estou cego ou não?”, pergunta aos manifestantes que lhe prestam socorro, em impulsos de nervosismo que rompem a calma aparente. “Eu quero saber se eu ainda tenho olho! Me fala a verdade! Mano, tá doendo demais!”
“Vi no sofrimento do Vitor toda minha angústia”, lamenta Sérgio, cujo calvário está registrado apenas em sua memória – e na de quem o socorreu. “Algo que não foi fotografado, não foi filmado, eu pude ver nele.”
Ao ver que a história se repetia, Sérgio reforçou a certeza de que seu infortúnio não se tratava de um mero acaso. “São as mesmas armas, a mesma polícia, o mesmo governador e o mesmo secretário de Segurança Pública”, enumera. “A injustiça que cometeram comigo fica ainda maior, porque continua ocorrendo. Eles podem fazer isso parar, mas não tomam providências. Começa a virar uma questão política.”
A partir de agosto, Sérgio havia intensificado sua militância pela proibição das armas menos letais. Concedeu uma série de entrevistas e participou de debates, insistindo no tema da violência policial. Conheceu militantes das Mães de Maio, que acusam PMs pelo assassinato de seus filhos em bairros de periferia. Passou a fazer campanha pela assinatura de uma petição online, exigindo o fim das balas de borracha, que hoje possui mais de 45 mil assinaturas.
Em suas intervenções públicas, pedia ainda a desmilitarização da PM, causando certo incômodo em alguns membros da corporação. A expressão “Bala de borracha cega, mas não cala” tornou-se seu grande lema.
O fotógrafo também ensaiou algumas articulações institucionais. Na Câmara Municipal, participou de reuniões com vereadores em busca de uma sessão solene em homenagem às pessoas feridas nas jornadas de junho. Não conseguiu. Ignorado, Sérgio ainda teve de assistir aos parlamentares saudando PMs machucados em serviço durante a contenção dos protestos.
“Nada contra, mas e a gente?”, pergunta. Nesse meio tempo, por iniciativa do vereador Coronel Telhada (PSDB), a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa de elite da Polícia Militar, recebeu a Salva de Prata, maior honraria do legislativo paulistano.
Sérgio também tentou sensibilizar sozinho o governo do estado. Evitando fazer alarde, contatou assessores do secretário de Segurança Pública, Fernando Grella, pedindo uma audiência com o homem que, em teoria, tem a palavra final sobre as ações da PM. Na época, ainda vigia uma efêmera proibição às balas de borracha. A ideia era entregar pessoalmente ao secretário uma cópia do abaixo-assinado, e lhe explicar cara a cara quantos prejuízos um pequeno projétil de elastômero pode trazer à vida de um cidadão.
Em outubro, porém, a cidade assistiria ao crescimento da tática black bloc. Em meio a bancos vandalizados, um carro da Polícia Civil seria virado de ponta-cabeça. Como resposta, o governo voltou a patrocinar o retorno das balas de borracha às espingardas da PM. Ao mesmo tempo, os assessores de Grella, antes solícitos e atenciosos, passaram a ignorar os e-mails de Sérgio. O quadro havia se invertido.
Percebendo o tamanho do muro que estava tentando escalar, e com pendências médicas que só se acumularam no tempo em que se dedicara à militância, o fotógrafo foi reduzindo suas atividades políticas. “Estava precisando cuidar um pouco de mim”, explica. “E também do processo. Levei até bronca do meu advogado.”
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Talvez o Judiciário surpreenda, mas nenhuma das partes envolvidas na ação que Sérgio está movendo contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo duvida de sua vitória. Também é consenso, porém, que vai demorar, e muito, para que os tribunais deem um veredicto definitivo sobre seu caso. Por mais que o fotógrafo tenha razão em suas alegações, o contexto político e o funcionamento da justiça parecem ser-lhes desfavoráveis.
“A responsabilidade do poder público é objetiva”, explica o advogado do fotógrafo, Paulo Sérgio Leite Fernandes. “Nós provamos o fato, provamos a profissão do Sérgio, provamos a origem do ferimento e provamos os prejuízos. O Estado pode até se defender, mas será uma defesa apenas protelatória.”
Aos 78 anos, Leite Fernandes é dono de um escritório muito bem localizado na zona oeste de São Paulo. Em sua sala, toda amadeirada, as quatro paredes estão completamente tomadas por livros. Além dos óbvios volumes sobre Direito, há publicações sobre avarias marítimas, psicologia e LSD. Fotos do advogado com políticos influentes, como o governador Geraldo Alckmin e o vice-presidente da República, Michel Temer, completam a decoração.
Sérgio não teria condições financeiras de bancar a assessoria do decano bacharel, mas chegou até ele por uma coincidência: um de seus assistentes trabalha eventualmente para a Apeoesp, onde conheceu Severino, quem socorreu o fotógrafo. Numa entrevista com o advogado, contou sua história e conseguiu atendimento gratuito. “Faço isso até para expiar algumas culpas”, explica Leite Fernandes. “A gente sempre faz uma coisa boa porque fez uma coisa ruim lá atrás.”
Seu antagonista nos tribunais será um antigo estagiário, Elival da Silva Ramos, que hoje chefia a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. “É o guardião do trono do governador”, provoca Leite Fernandes. Ramos, porém, prefere intitular-se simplesmente como advogado da administração. E, como defensor do Estado na querela, concorda com seu antigo professor sobre o resultado do processo.
“Sim, o governo vai ter que pagar. Só não pagaria se ficasse demonstrado que esse tiro partiu de outra arma que não a da polícia”, pondera, descartando imediatamente essa hipótese. “Não é o caso, ainda mais com bala de borracha, que é de uso privativo das forças de segurança.”
Esse consenso, explica Elival, está na raiz da vida em sociedade. Em teoria, diz, as ações do Estado se destinam ao benefício da coletividade. Uma ambulância, por exemplo. Sua função é socorrer a quem precisa. Na pressa de levar um ferido ao hospital, porém, o motorista pode bater no carro de um cidadão. Não é justo que o dono do veículo pague sozinho pelo sinistro. O Estado, então, indenizará o prejuízo com dinheiro público, dividindo os custos entre todos nós – porque, no fim das contas, todos nos beneficiamos da ambulância. Isso se repete em praticamente todas as esferas da atuação estatal, inclusive e sobretudo com a PM.
“A ação do Estado supõe riscos, especialmente a ação policial”, analisa o procurador. “Se o Estado, em sua atividade, provoca algum dano, esse dano deve ser repartido entre todos. Todos nós pagamos. É uma ideia correta.”
De acordo com o procurador-geral, sequer é necessário comprovar quem foi o policial responsável pelo “desvio de conduta” para que a vítima receba indenização. Basta saber que o Estado é responsável. No caso de Sérgio, isso significa que seus advogados não precisarão apontar quem disparou. Mesmo que tenha sido um acidente, mesmo que o soldado não tenha tido a menor intenção de cegá-lo, mesmo que tivesse tomado todas as precauções técnicas no manuseio do armamento, mesmo assim, o fotógrafo teria direito à indenização.
“Para efeitos de indenização, não importa a culpa do policial. Se foi um agente público que disparou, com certeza, então o Estado indeniza. A questão é que, se o PM agiu sem cautela, ele responderá por isso depois, para indenizar o Estado. Mas uma coisa não depende da outra”, continua Elival. “A PM fará suas apurações. Se o policial não for culpado, o Estado paga e pronto. Se for, entra com uma ação contra o policial. O Estado indeniza a vítima nos dois casos.”
Sérgio está pedindo uma série de compensações ao poder público estadual. “Sérgio é fotógrafo”, argumenta o advogado na peça remetida aos tribunais. “Olho e câmera são seus instrumentos de trabalho. Ou eram. Frente às sequelas, não poderá mais tirar retratos, atividade que, de resto, é, ao lado da mulher e filha, motivo maior de sua paixão. Perdeu a possibilidade de enxergar em profundidade.”
Leite Fernandes recorda princípios constitucionais, artigos do Código Civil, doutrinas jurídicas e decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) para sustentar o pedido. Ao final, com base na jurisprudência, sugere uma indenização de R$ 800 mil – apenas pelos danos morais causados pela bala de borracha.
Mas o tiro deixou outras sequelas, que também estão sendo cobradas na justiça. Sob a rubrica de “danos materiais”, Sérgio pede R$ 400 mil, referentes aos evidentes prejuízos estéticos impostos a seu rosto pelo impacto do elastômero. Leite Fernandes procura desfazer controvérsias citando que decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) preveem distinção entre danos morais e estéticos.
“O dano estético é marca indelével a carregar no olho eternamente, mesmo que seja possível ocultá-la de outrem. O dano moral é o sofrimento decorrente da perda da visão, da possibilidade de trabalhar como fotógrafo, da tranquilidade, enfim.”
Os danos materiais propriamente ditos – ou seja, os prejuízos financeiros oriundos do ferimento – se referem aos gastos com que Sérgio terá que arcar pelo atendimento que recebeu no Hospital Nove de Julho. O fotógrafo pensou que seu convênio médico cobriria os primeiros socorros na instituição. Não cobriu. Hospitais privados não podem negar atendimento, mas não estão obrigados a fazer caridade.
“Ele tem que pagar o hospital, senão podem negativá-lo”, lembra Leite Fernandes. Os primeiros procedimentos oftalmológicos no Nove de Julho lhe custaram R$ 3.894,67. É um débito que pode criar ainda maiores complicações financeiras à vida do fotógrafo. Por isso, seu advogado entrou com um instrumento emergencial conhecido como antecipação de tutela, que nada mais é do que uma liminar para que Sérgio receba esse valor imediatamente, e possa assim saldar a dívida no hospital.
“Essa ação toda vai demorar, no mínimo, dez anos”, adverte Leite Fernandes. “Quando Sérgio veio me procurar, eu sentei meu assistente mais novo aqui do lado. Porque ele vai continuar o trabalho que eu comecei. A Fazenda Pública vai resistir durante anos. Anos e anos. Eu provavelmente vou morrer no meio do caminho. Ações desse tipo costumam sobreviver aos advogados.”
O procurador-geral do Estado explica que essa demora não se deve tanto à resistência do poder público em arcar com as consequências desastrosas de seus representantes, mas aos procedimentos comuns e correntes da justiça.
“Se a vítima ganha a ação em primeira instância, vai haver recurso necessariamente, porque é obrigatório: mesmo que o Estado não queira recorrer, o juiz manda ele mesmo para segunda instância”, conta. “Então, haverá novo julgamento. Se a decisão não for unânime, a Fazenda Pública entra com novo recurso: os embargos infringentes. Às vezes, a ação passa por três níveis. Sem contar que é preciso fazer perícias.”
Daí o pedido de tutela antecipada. Os tribunais paulistas, porém, discordam dessa interpretação. E não veem necessidade de que o Estado pague imediatamente esses quase quatro mil reais. Se é verdade que o fotógrafo vencerá o processo, os fatos demonstram que, em apenas três meses de tramitação, ele já perdeu três batalhas.
No dia 8 de outubro, o juiz Henrique Rodriguero Clavisio, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, indeferiu o pagamento dos R$ 3.894,67. Apesar de todos os indícios, e da alegada bala de borracha, o magistrado não conseguiu ver um claro “nexo de causalidade” entre a cegueira do fotógrafo e a ação da polícia.
Remetida à segunda instância, a liminar foi novamente derrubada. “Não verifico a existência da prova inequívoca do direito invocado pelo autor, dependendo a matéria de melhores elementos de convicção a serem trazidos no curso da instrução, mormente no que se refere ao nexo de causalidade entre o evento danoso e a alegada responsabilidade do Estado”, decidiu o desembargador Rebouças de Carvalho no último 14 de outubro.
A antecipação de tutela foi enviada, então, à câmara do Tribunal de Justiça, para votação colegiada. A interpretação de Rebouças prevaleceu.
Em 30 de outubro, após sua petição ter sido rechaçada pela terceira vez, Sérgio postou no Facebook o vídeo em que policiais agridem um grupo de jornalistas que cobriam as manifestações de 13 de junho, uma das provas de que a PM atacou os repórteres naquela quinta-feira. “É lamentável ter que assistir a uma coisa dessas, ficar cego de um olho e ouvir de um juiz que não tenho prova nenhuma de ter sido atingido por bala de borracha.”
Já o advogado não se surpreende com a decisão. Nesses casos, diz, o Judiciário tem um papel político muito claro. “O juiz tem independência para negar, não para conceder. Se concede, vai ser enrabado de todos os lados. Terá a carreira prejudicada”, aponta, explicando por quê a balança pende para o lado do Estado. “Sérgio não é a única vitima da polícia nos protestos. Há muitas outras. Juízes podem ter uma pilha de reivindicações assemelhadas, e uma tutela micrométrica como essa pode abrir margem a uma catadupa de outras reivindicações.”
Para Leite Fernandes, o contexto de agitação social, com a expectativa de novos protestos em 2014, devido à Copa do Mundo, não ajuda a causa do fotógrafo. O advogado aposta que mais manifestações ocorrerão no país e que mais gente será prejudicada pela repressão policial. Consequentemente, haverá mais pedidos de indenização. “Os juízes fazendários estão com medo. Estão com medo de administrar tudo isso.”
Há ainda problemas orçamentários. Elival da Silva Ramos lembra que uma decisão favorável à vítima pode comprometer a receita estadual. “Claro, quatro mil reais não é nada, mas se você multiplicar esse valor por todo mundo que tem direito à reparação de danos, e que pedir pagamento imediato, se você tiver centenas de juízes concedendo as antecipações, haverá impacto tremendo sobre as finanças públicas”, explica. “O Estado vai receber uma conta que não está preparado para pagar.”
De acordo com o procurador-geral, o poder público cumpre com suas obrigações indenizatórias não com base no que é justo, mas dentro das possibilidades do Orçamento. Atualmente, afirma, o governo paulista empenha cerca de 1,5% de sua receita líquida para honrar as compensações ordenadas pela justiça. Essa porcentagem corresponde a aproximadamente R$ 1,5 bilhão. Outros R$ 200 milhões são gastos com ações menores. “O Estado tem que se programar.”
Derrotas e burocracias à parte, somando todas as indenizações, o fotógrafo pretende ser receber do estado de São Paulo uma quantia de R$ 1.203.894,67. Além das compensações, espera uma pensão mensal no valor de R$ 2.034,00, tomando por base os rendimentos que obtinha como freelancer quando ainda possuía uma visão perfeita. Deseja ainda que o poder público arque com a mensalidade de seu plano de saúde, que hoje custa R$ 316,05.
“Ainda não recebi um centavo de ninguém”, adianta. “Abriria mão de tudo isso se pudesse ter meu olho de volta.”
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Comemorado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra também serviu para que Sérgio começasse a encarar seus fantasmas. Em São Paulo, movimentos sociais lembraram a luta de Zumbi dos Palmares com uma passeata pela Avenida Paulista e Rua da Consolação, terminando no centro da cidade. Com os inseparáveis óculos escuros, adotados depois que parou de usar o tampão bege, Sérgio engrossou o protesto munido de sua antiga companheira de trabalho.
Desde a repressão do dia 13 de junho, do tiro e da cegueira, era a primeira vez que o fotógrafo saía de casa exclusivamente para registrar uma manifestação pública. Um mês antes, sequer cogitava essa possibilidade. “Não, cara, a situação ainda está muito violenta, muito brutal”, diria. “Ainda não é o momento.”
Quando chegou a hora, sustentando nos dedos o peso do trauma, Sérgio tremeu em alguns cliques. Um deles, em especial, traria à tona toda a memória da dor. Queria enquadrar os policiais que acompanhavam o protesto, deixando em primeiro plano um estêncil com os dizeres “Por que o senhor atirou em mim?”, impresso numa lixeira da Avenida Paulista. A frase, dita pelo adolescente Douglas Rodrigues após ser alvejado por um PM, antes de morrer, virou símbolo da luta contra o genocídio da juventude negra na periferia.
A foto tinha tudo a ver com o dia e o protesto. Era inofensiva. A manifestação se desenrolava na tranquilidade de um feriado ensolarado. Mas havia viaturas circulando, gente fardada, rostos para fora do camburão monitorando os movimentos do fotógrafo.
“Pela primeira vez na minha vida, senti medo de apertar o botão da câmera”, escreveu no Facebook. “Apesar de não dever nada, absolutamente nada, fiquei tenso e falhei no enquadramento.”
Muitos amigos comentariam o post, parabenizando Sérgio e manifestando apreço pela mensagem contida na foto. Não demoraria para que a imagem se transformasse num divisor de águas pessoal. “Tive coragem de encará-los e fazer a foto. Embora ela não tenha saído do jeito que eu queria, valeu pelo momento.”
Naquele dia, Sérgio fotografaria bastante – e bastante gente. Foi sentindo novamente a sensação de caminhar pelo asfalto sem o receio de ser atropelado. Reencontrou colegas de trabalho. Recebeu solidariedade de muita gente. Sentiu-se à vontade.
Enquanto seguia os manifestantes, porém, lembrou que a passeata passaria pelo lugar onde menos quisera estar nos últimos cinco meses: a esquina da Consolação com a Caio Prado, cruzamento que evitou com todas as forças de suas pernas, nos longos caminhos alternativos que preferiu trilhar quando passou pela região.
“Eu estava com amigos, e pensei que poderia encarar”, lembrou Sérgio, já fortalecido, durante uma rápida conversa que tivemos dias depois, no exato pedacinho de calçada onde levou o tiro. “Durante a passeata, parei na frente da banca e falei: tirem uma foto de mim. E tiraram. Se eu não tivesse vindo aqui na quarta-feira, não estaria conversando com você aqui agora.”
Sérgio ainda sofre quando coloca os pés naquela encruzilhada de más recordações. Apesar dos óculos escuros não deixarem entrever o olho cheio d'água, seus lábios e bochechas, ligeiramente tremendo, e a voz embargada denunciam a emoção.
O sentimento se dissiparia com o tempo, e ele voltaria propositalmente à esquina em pelo menos outras duas oportunidades. Numa delas, tarde da noite, afixou na banca uma foto sua, um autorretrato que tirou após o ferimento, com os dizeres: “Pense duas vezes antes de atirar: bala de borracha pode cegar.”
À noite, passou para conferir se a imagem ainda estava lá. Não estava. Apenas quem perambulou pela esquina nas primeiras horas da manhã de 13 de dezembro teve a chance de ver o cartaz: seu modo de comemorar os seis meses da violência.
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Quando pedi para Sérgio definir essa temporada, ele não demorou muito para responder. “Foi inconstante”, cravou. “Ora me pego com bastante ânimo de superação, ora ainda fico muito triste. Agora, almoçando com você, estou bem. Vinte dias atrás, logo depois da cirurgia, fiquei mal pra caramba, bem deprê mesmo.”
No começo de novembro, Sérgio daria entrada no hospital novamente. Desta vez, para retirar o olho que outrora tentara salvar. No lugar, colocou uma prótese: uma esfera de polímero sintético que só não se parece tragicamente com uma bala de borracha porque cheia de orifícios.
“O aspecto lembra mais uma pedra-pomes”, compara Elisabete Nogueira Martins, médica do H. Olhos. “Com o tempo, esse material é incorporado pelos tecidos da cavidade ocular. Vasos, mucosa e músculos vão crescendo e aderindo à esfera.”
A substituição do órgão imprestável pela bolinha porosa é um procedimento puramente estético. Sérgio poderia conviver com o olho ferido sem que sua presença trouxesse complicações clínicas. “Mas, quando deixa de ter sua principal função, que é enxergar, ele começa a atrofiar. Vai murchando mesmo”, explica a oftalmologista, argumentando que os olhos fundos acabam afetando a autoestima do paciente. “Com a cirurgia, diminuímos o estigma.”
O passo seguinte seria cobrir o globo postiço com outra prótese, essa sim imitando as partes visíveis do olho: íris, pupila e esclera. Sérgio pode tirá-la e colocá-la sozinho, como uma lente de contato. Com as duas próteses, Elisabete garante que será bem difícil para algum desavisado saber que o fotógrafo perdeu o olho esquerdo. “Terá uma movimentação quase normal.”
As previsões otimistas motivaram Sérgio a encarar a nova temporada hospitalar. Contudo, o pós-operatório buliu com suas piores recordações.
“Olhei no espelho e me vi de novo com a cara inchada. Fiquei pensando: tanto tempo já passou e continuo sentido dor”, relata, dizendo que seu ânimo melhora ao sabor da reabilitação. “Agora é só uma questão estética, mas posso dizer que essa história começou em junho e ainda não terminou.”
Sérgio há tempos vem se perguntando qual será o desfecho da novela. Voltar a fotografar? Sair de casa sem que ninguém perceba a falta de seu olho esquerdo? Receber as indenizações que lhe cabem?, pergunto. Diz que sim, mas não só.
Gostaria que ninguém mais perdesse a visão por causa de balas de borracha, bombas de efeito moral ou quaisquer outros artefatos menos letais. Também deseja conviver com uma polícia desmilitarizada, uma corporação que apoie o cidadão, que não agrida nem mate ninguém.
“Essas seriam boas perspectivas sociais para meu filme final”, revela. “Mas, pessoalmente, para mim, Sérgio, isso nunca vai ter fim.”
Sérgio tenta se convencer de que sua deficiência visual pode se transformar em vantagem. Não porque conseguirá uma pensão do Estado, mas porque, seguindo o exemplo de alguns artistas, tem percebido que enxergar menos lhe permitirá ver o mundo de uma maneira exclusiva, pessoal, que jamais conseguiria se ainda pudesse contar com ambos os olhos.
“Você já assistiu àquele filme, Janela da Alma?”, pergunta, fazendo referência ao documentário lançado em 2001 pelos cineastas João Jardim e Walter Carvalho. “Já ouviu falar de um filósofo chamado Evgen Bavcar?” Ao ouvir minha negativa, explica: “É um fotógrafo cego.”
Hoje com 66 anos, Bavcar perdeu completamente a visão ainda na infância. Começou a manusear a câmera depois disso. No filme, o pensador esloveno explica que seu trabalho é fotografar as paisagens que enxerga com os olhos da imaginação. Faz o mesmo com pessoas. Ao criticar o mundo atual, excessivamente pictórico, atesta: “Não temos mais a imagem interior, vivemos uma cegueira generalizada.”
Sérgio até comprou um livro de Bavcar, Memória do Brasil, com fotos feitas por seu mais novo ídolo durante viagem ao país. “Ele consegue fotografar cheiros, sons, temperaturas, coisas aparentemente invisíveis, mas que ele vê. É incrível”, comenta. “Acho que, a partir de agora, conseguirei olhar para o mundo prestando mais atenção nos detalhes. Talvez comece a desenvolver um sentido mais aguçado para certas situações.”
No futuro, Sérgio pretende retomar a fotografia com um trabalho mais autoral, artístico, pautado pela denúncia das desigualdades sociais: não consegue entender como nossa sociedade consegue suportar a miséria. Fotojornalismo, eventos, shows, dificilmente voltará a ganhar a vida assim. Sabe que a ausência do olho esquerdo o coloca em desvantagem no competitivo e precarizado mercado dos freelancers. “Na hora de contratar um fotógrafo, vão optar por um profissional com os dois olhos ou com um olho só?”, questiona, antevendo a resposta.
Assim como acontece quando esbarra em transeuntes pela rua, tropeça em degraus ou derruba açúcar na mesa, seu otimismo esmaece nos momentos em que tromba com fragmentos da realidade. Por isso, no sobe e desce da perseverança, Sérgio prefere manter os pés no chão.
“É possível continuar, mas não vai ser normal. Nem vai ser como era antigamente. Por mais que eu tenha uma readaptação fantástica, eu sei que nunca voltarei a enxergar com o olho esquerdo”, admite. “Sempre terei uma lembrancinha.”
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Cego de um olho, fotógrafo vive ‘história sem fim’ enquanto espera justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU