06 Setembro 2012
Todas as suas palavras, até o último suspiro, Martini as entregou primeiro a nós.
A opinião é do teólogo e sacerdote italiano Pierangelo Sequeri, reitor da Facoltà Teologica dell'Italia Settentrionale, em artigo publicado no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Depois de uma longa vida gasta em fazer-se eco da Palavra de Deus, ele ficara quase sem palavras. Quando os últimos sons que deviam nos ser entregues – puros respiros, quase – foram entregues, o cardeal Martini entregou também o espírito. Ele o entregou a Deus, certamente. Mas todas as suas palavras, até o último suspiro, ele as entregou primeiro a nós.
O que nos diziam essas palavras? E quem as herda? E como deve florescer a semente, agora que ele cumpriu a sua tarefa até se esconder na terra e morrer?
As suas palavras diziam, no fim, uma coisa só: que há uma só Palavra verdadeiramente digna de escuta. Não havia sido tão simples e tão poderosa, nos tempos da nossa juventude, essa primavera da Palavra de Deus Nos anos do nosso indecifrável descontentamento, do nosso conflito civil, das nossas neuroses eclesiogênicas, esse primado da escuta da Palavra sobre a excitação dos nossos projetos revolucionários nos chegou – em um primeiro momento – como uma pedra lunar. E depois, pouco a pouco, se tornou doméstica. Começou a nos ensinar a diferença entre o medo e a fé. Entre o juízo dos homens e o juízo de Deus. Entre a ira pelo nosso sentimento de abandono aos jogos das potências mundanas e a conquista de uma indomável determinação para proteger a fé que vence o mundo. Amando-o, até.
Diante da persuasiva sugestão dessa confiança inabalável na Palavra de Deus, algumas consciências subvertidas pela convicção de ter que entregar ao ódio e à violência a liderança de uma história diferente, entregaram – literalmente – as armas. E muitos, que haviam arquivado a perda de Deus, aprendendo a conviver com o vazio, se persuadiram de pode falar sobre ele de novo.
O primeiro herdeiro das palavras de Carlo Maria Martini é, de direito, a Igreja. Ninguém melhor do que a Igreja sabe o que fazer dessa herança e com essa herança. A Igreja, guardiã da Palavra de Deus, discerne a sua tradição. E sabe que há um só Mestre. Até mesmo esse respeito e essa obediência eclesial herdamos de Martini. A palavra "discernimento" tornou-se famosa justamente como um dado característico do seu ensinamento. Ela remete, por definição, à necessidade de não criar para nós presunçosas contrafiguras da autoridade da Palavra de Deus, enfrentando a Igreja. Nós fazemos parte, afetuosa e solidária, do discernimento da Igreja. Não o tornamos mais difícil, o facilitamos com os milhares de recursos da inteligência do ágape (1Cor 13, 4-13).
Mas a herança que a Igreja recebe dos seus servidores fiéis não é uma posse ciumenta, uma apreensão orgulhosa. Muitos homens e mulheres aprenderam justamente isso do estilo evangélico e humano de Martini. Ficaram impressionados com a sua surpresa da imagem de uma Igreja que não é mesquinha dos seus bens, começando justamente pela Palavra de Deus. Aprenderam – e nós fomos forçados a recordar – que a Igreja não precisa, nem tem intenção, de proteger a Palavra Deus afogando-a no jargão de uma linguagem esotérica.
Eles descobriram que, de Pentecostes até agora, a autêntica pregação cristã se faz entender na língua de cada um. E, portanto, todos podem se dar conta de que há, para cada ser humano, uma Palavra boa de Deus
Isso nos basta para dizer uma boa palavra – uma bênção – sobre esse bispo da Igreja, e irmão nosso, que se esforçou no "remo da palavra" de Deus (Lc 1, 2), até quando acabaram as palavras para nos ensiná-las. As nossas palavras passam e morrem, como devem. A Palavra de Deus, porém, se aquece com elas e vive. (Caro cardeal Martini, tu sabes que eu fui o teu teólogo agitador popular, em comparação contigo, narrador incomparável da Palavra. Porém, tu nunca me retiraste a palavra. Deus sabe se esse não é um bom exemplo de ágape. Deus te abençoe, inesquecível irmão bispo).
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A lição de Martini: a Palavra de Deus acima de tudo. Artigo de Pierangelo Sequeri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU