"Tolice é falar de Deus sem conhecê-Lo, sem experimentá-Lo na vida e na fé. Assim como nós, hoje, falamos tolices quando afirmamos que Deus recompensa os bons e castiga os maus. Deus é justo e se ele nos castiga é porque merecemos. Se somos bons, Deus está provando a nossa fidelidade, através da dor", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE/BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de quinze. Canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. Sua mais recente publicação é Os murais do Santuário Santo Antônio, de Divinópolis (MG), no simbolismo do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus: interpretação bíblica, teológica, catequética e franciscana das pinturas de Frei Humberto Randang (Província Santa Cruz, 2024).
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Mc 4,35-41 e sua relação com Jo 38,1.8-11. Em ambos há um discipulado e um conhecimento de Deus, uma experiência de medo e de fé. O imaginário que perpassa os dois textos é o mar e suas forças satânicas, isto é, de divisão e de oposição a Deus. Qual é o significado dessas duas narrativas para Jó, os discípulos e nós?
O livro de Jó relata a experiência de um homem imaginário que tinha tudo e tudo perdera. Três de seus amigos conservadores se aproximam e procuram explicar-lhe, de forma racional, que tudo o que aconteceu com ele foi mandado por Deus para puni-lo de seus pecados. “Aqui se faz, aqui se paga”, ensina a teologia que eles representam, a da Retribuição, na Bíblia e da Prosperidade, em nossos dias. Jó era justo e não merecia o que estava acontecendo com ele. Ou merecia? Até a mulher de Jó lhe disse: “Levanta-te, amaldiçoa teu Deus e morra!” (Jo 2,9).
Jó não ouviu nenhum dos conselhos. Continuou firme, mas questionou Deus, quebrando o seu silêncio. No silêncio ficou a sua mulher. Os amigos falaram sem pensar. O que eles disseram a Jó é justamente o que ele tinha dito à sua mulher: “tolice” (Jo 2,10). Jó também reconhece que falou tolice (42,3).
Tolice é falar de Deus sem conhecê-Lo, sem experimentá-Lo na vida e na fé. Assim como nós, hoje, falamos tolices quando afirmamos que Deus recompensa os bons e castiga os maus. Deus é justo e se ele nos castiga é porque merecemos. Se somos bons, Deus está provando a nossa fidelidade, através da dor. Não devemos erguer a voz contra Deus, mas nos conformar com a vontade de Deus. Tudo isso são “tolices teológicas!”
Pela via do sofrimento é que Jó se encontra com Deus, rompendo, assim, com a Teologia da Retribuição. Ele quer discutir com o próprio Deus. Enquanto Deus não responder a ele, Jó considerará seu sofrimento sempre injusto. Jó tem certeza de sua inocência (21,4; 23,2). Deus responde a Jó falando de seu poder sobre a força do mal, o mar. Deus tem controle sobre o demônio do mar, o Leviatã. É Deus que demarca os limites do mar (Jó 38,8). Jó entende que, para compreender Deus, é preciso passar pela experiência do mal, o qual faz parte da nossa condição humana. É preciso vencer o “mar da vida”, segurando nas mãos de Deus! Ao compreender esse drama do viver, Jó conclui: “Deus, eu te conhecia só de ouvido, mas agora meus olhos te veem” (42,5). Jó passa a conhecer Deus pela experiência.
Já os discípulos de Jesus, os quais estavam há muito tempo com o mestre, não sabiam que ele era Deus. Mc 4,35-41 narra esse difícil caminho dos discípulos de conhecer Jesus pela experiência, assim como Jó. O local desse episódio é o mar da Galileia. Era o cair da tarde, depois que Jesus havia deixado a multidão. Os discípulos levam Jesus consigo. Jesus dorme tranquilo no barco. O vento estava impetuoso e os discípulos amedrontados.
Vento e mar são enfrentados como se enfrenta Satanás. A ação de Jesus é típica de Deus no Primeiro Testamento. Só Deus tem o poder de dominar as águas e o vento, pois é o Criador. Jesus age com o poder de Deus. Jesus é chamado a despertar do sono para dominar o mar, assim como Deus, Senhor do céu, da terra e do mar. Naquela época, o poderoso rei Antíoco Epífanes se julgava senhor do vento e do mar.
Marcos, com o v. 40: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”, desloca a questão para a incompreensão e a falta de fé dos discípulos. Jó tinha fé. Seus amigos, não! Os discípulos não são capazes de reconhecer a ação de Deus em Jesus. Os amigos de Jó, da mesma forma.
Os discípulos perguntam: “Quem é este?” Eles racionalizam a relação com Jesus, assim como os amigos de Jó. Jesus esperava que os seus amigos fossem capazes de compreender a sua missão divina entre eles.
A partir dessa experiência, os discípulos começaram a romper com o mar, mas ainda não foram capazes de compreender o caminho de Jesus. O mar, os opressores, ainda os aterrorizam. Mar e o ambiente caótico da ideologia do sistema ainda estão presentes na vida dos discípulos. Eles ainda não tinham fé suficiente para romper com o sistema de opressão, representado pelo mar que os aterrorizava.
Jesus estava “dormindo”, isto é, morto. A barca dos discípulos das primeiras comunidades estava à deriva. Eles estavam divididos entre as orientações de Pedro e de Paulo, os quais já haviam morrido. Muitos cristãos estavam aderindo ao império romano. Marcos convoca a comunidade a ter fé em Jesus ressuscitado da morte, vivo e atuante na comunidade a partir da força de Deus, capaz de dominar o caos e de vencer as potências infernais satânicas que ameaçam as comunidades.
Com os primeiros discípulos, somos convidados, com Jesus, a passar para a outra margem, a mudar de vida. Havia muitas barcas, mas Jesus estava somente em uma, na dos discípulos que O levaram consigo. Assim como os discípulos, temos medo, pois ele é biológico, instintivo, inconsciente e psicológico. Uma certeza carregamos: Jesus se importa conosco! Ele para o vento que nos amedronta. Não tenhamos medo de ser discípulos e discípulas de Jesus!
No mar da vida, encontramos muitas dificuldades. Sem fé podemos afundar, mas quem crê estará salvo. O barco de nossas vidas é a comunidade de fé. Sem ela os tormentos nos afundam num mar de lamas. Coragem! Espero que eu não tenha sido racional como os amigos de Jó e tampouco medroso como os discípulos. Paz e bem!