"Esta narrativa, nos Evangelhos Sinóticos, aparece após a entrada em Jerusalém (Mt 21,12-17, Mc 11,15-17 e Lc 19,45-48), mas no Quarto Evangelho está após o primeiro sinal, quando Jesus, vivendo a amizade social, participa de um casamento. Ali acaba o vinho, e seguindo as instruções (intercessão) dadas por sua mãe Maria, permite que a festa seja plena (Jo 2,1-12). No final do texto deste Domingo se afirma: “muitos creram no seu nome ao verem os sinais que fazia” (v. 23b). Esses “sinais” se referem a ambos, isto é, abraçam tanto a amizade quanto a denúncia e a ação de rebeldia, dando-lhes o mesmo sentido revelador."
Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF: Dr. Bruno Glaab, Me. Carlos Rodrigo Dutra, Dr. Humberto Maiztegui, Me. Rita de Cácia Ló. Edição: Vanildo Luiz Zugno.
Primeira Leitura: Ex 20,1-17
Salmo: 18, 8.9.10.11
Segunda Leitura: 1Cor 1,22-25
Evangelho: Jo 2,13-25
Estamos no tempo quaresmal de profunda reflexão sobre o sentido, não apenas da missão que temos como pessoas cristãs batizadas, mas também sobre o sentido da própria existência, da vida, e da humanidade. O Quarto Evangelho, que começa com a apresentação do “logos” (Palavra Encarnada), escrito no meio de tensões dentro das comunidades cristãs em relação à natureza e sentido da presença de Jesus Cristo na história, é sabiamente colocado aqui, no começo da Quaresma, para nos ajudar nesta reflexão. Também devemos ler este Evangelho na perspectiva da Campanha da Fraternidade que este ano nos desafia a viver a “Fraternidade e Amizade Social”. Quando vemos Jesus reagindo violentamente contra pessoas que fizeram da “religião” pura mercadoria, perguntamo-nos: o que isso nos diz sobre fraternidade e amizade social?
Esta narrativa, nos Evangelhos Sinóticos, aparece após a entrada em Jerusalém (Mt 21,12-17, Mc 11,15-17 e Lc 19,45-48), mas no Quarto Evangelho está após o primeiro sinal, quando Jesus, vivendo a amizade social, participa de um casamento. Ali acaba o vinho, e seguindo as instruções (intercessão) dadas por sua mãe Maria, permite que a festa seja plena (Jo 2,1-12). No final do texto deste Domingo se afirma: “muitos creram no seu nome ao verem os sinais que fazia” (v. 23b). Esses “sinais” se referem a ambos, isto é, abraçam tanto a amizade quanto a denúncia e a ação de rebeldia, dando-lhes o mesmo sentido revelador.
Apresenta a revolta de Jesus contra os “vendedores” (v. 14; conforme Bíblia Sagrada da Vozes), em grego “polountas” (que pode significar também ter o monopólio das vendas) e os “cambistas” (em grego kollubiston, isto é, os que trocavam moedas do império por moedas do templo para serem usadas nas ofertas, ganhando um ágio elevado). Já o final serve de conclusão tendo como eixo a menção à Páscoa (2,13.23).
O texto pode ser entendido a partir da seguinte estrutura:
a) 2,13-14 – Apresentação do contexto: festa da Páscoa dos judeus, Jerusalém, Templo, vendedores e cambistas.
b) 2,15-17 – A ação (sinal) profética e reveladora do conflito entre o Projeto de Jesus e o mercado do Templo e a lembrança (memória) provocada por esta ação.
c) 2,18-21 – A pergunta pelo Sinal e resposta da destruição e reconstrução do Templo (isto é, o fim da velha prática e a chegada da nova práxis libertadora de Jesus).
b) 2, 22 – A lembrança (memória) dos discípulos após a ressurreição de Jesus levando a crer no que foi escrito (grafé) e na Palavra dita por Jesus (logos – sentido – verbo encarnado).
a) 2,23-25 – Jesus na festa da Páscoa, as muitas pessoas que creram por causa dos sinais e como ele participava a intimidade de todas as pessoas conhecendo os pensamentos delas.
Nas duas sessões “a”, da mesma forma que na Quaresma, o Quarto Evangelho apresenta estes sinais como início de uma caminhada que parte da festa da Páscoa, em um sistema religioso e político explorador e mercantilista, onde o Templo servia como estrutura de poder e não de revelação da presença de Deus na História.
Nas duas sessões “b” vemos como a ação de Jesus ascende a memória, o que alguns teólogos (baseados no Êxodo) chamam de “memória subversiva”, onde as pessoas que promoviam o sistema corrupto e explorador fazem emergir o clamor do salmista (Sl 69,10) lamentando a destruição do Templo antes do exílio babilônico, por causa das injustiças cometidas por suas lideranças políticas e religiosas.
No Centro (c) se apresenta a necessidade de superar esse sistema religioso que permitia a exploração do povo e encontrar a verdadeira comunhão no corpo do Cristo Ressuscitado que também é a Igreja. Esta passagem, a primeira vista contrária à “amizade social”, nos desafia a perguntar: qual é a amizade verdadeira? Jesus vive sua amizade com o povo que era explorado por este tipo de religiosidade corrupta e nos convida a vivermos uma prática fraternal e sororal que leve à superação de estruturas religiosas e políticas que enganam, manipulam e exploram. Jesus dá um exemplo que permite, como no texto, ativarmos nossas memórias subversivas de libertação e encontrarmos o verdadeiro sentido da Palavra Encarnada, da Palavra Crucificada e da Palavra Ressuscitada.
Nada mais apropriado para a Quaresma que ativar a memória subversiva dos Dez Mandamentos (Ex 20,1-17), que começam com a frase: “Eu sou Javé teu Deus que te libertou do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2), portanto, o sentido de todos os mandamentos é superar todas as formas de escravidão e exploração, construindo uma amizade social que promove a justiça, o amor e a paz. Já o apóstolo Paulo traz a memória deste Evangelho do “Cristo crucificado (…) é escândalo para os judeus e loucura para os gentios”, subvertendo suas lógicas, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Cor 1,23-24). De fato, a “amizade social” do Evangelho traz a memória que compromete a amizade social com as pessoas mais pobres e vulneráveis, às quais a amizade geralmente é negada pelas mais ricas, são excluídas do convívio social, e vistas como pessoas não abençoadas nas igrejas de mercado que seguem a teologia da prosperidade. Isto pode ser loucura para o mundo baseado no dinheiro e no poder econômico, mas para quem segue o projeto libertador de Jesus é sabedoria divina.