A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 3º Domingo do Tempo de Advento, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 1,6-8.19-28.
“Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz” (Jo 1,8)
É curioso como o quarto Evangelho apresenta a figura de João Batista: “surgiu um homem”, sem revelar outros dados pessoais. Não diz nada a respeito de sua origem ou condição social. O próprio Batista sabe que isto não é importante, pois ele mesmo afirma que não é o Messias, não é Elias, nem sequer o Profeta que todos estão esperando. Ele só se vê a si mesmo como a “voz que grita no deserto: aplainai o caminho do Senhor”.
Certamente a figura dos sacerdotes que falavam no Tempo não despertavam curiosidade e nem eram escutados por ninguém; as pessoas se deslocavam ao Tempo não por causa deles, mas por causa do próprio Templo. No entanto, a simples figura de João no deserto, longe do Templo e do poder religioso, arrastava multidões, despertava em todos o desejo de uma profunda conversão.
A voz de João nas periferias provocava inquietações e preocupações nos responsáveis do Templo. É possível que ninguém tenha perguntado aos sacerdotes: “E vocês quem são e que dizem de si mesmos?”
A estrutura religiosa do Templo se sentia questionada por esse homem estranho do deserto, sem ornamentos luxuosos a não ser uma veste de pele de camelo e uma vida de austeridade. Mas, sua vida, por si só, falava de algo diferente, de algo novo. Uma voz que encontrava ressonância no interior das pessoas.
Essa é a verdadeira identidade de João: ser uma “voz” diferente daquela que todos estavam acostumados a ouvir e que mantinha tudo como estava. No entanto, Deus o envia como “testemunha da luz”, capaz de despertar a fé de todos; uma pessoa que pode contagiar luz e vida.
Que é ser “testemunha da luz”? É ser como João: viver em função de Outro. Não alimenta seu ego, não busca ser o centro nem chamar a atenção sobre si mesmo; não quer provocar impacto em ninguém. Simplesmente vive sua vida de maneira inspirada; é presença que ilumina porque deixa que o Deus da Luz atravesse sua vida. Irradia luz em sua maneira de viver e de crer.
A testemunha da luz não fala muito, mas é uma “voz”; vive de uma maneira inconfundível. Comunica Quem lhe faz viver. Não proclama “teorias” sobre Deus, mas contagia “algo”; não ensina doutrina religiosa, mas convida a crer. Como testemunha da luz, sua vida atrai e desperta interesse. Não culpabiliza ninguém, não condena, mas contagia confiança em Deus, liberta dos medos, abre sempre caminhos novos. É como o Batista, “aplaina o caminho do Senhor” para facilitar do encontro de todos com Ele.
A testemunha da luz se sente frágil e limitada. Muitas vezes comprova que sua fé não encontra apoio nem eco social. Vê-se, inclusive, rodeado de indiferença e rejeição. Mas quem é testemunha de Deus não julga ninguém, não vê os outros como adversários que devem ser combatidos ou convencidos: Deus sabe como encontrar-se com cada um de seus filhos e filhas.
Na Igreja, ninguém é a “Luz”, mas todos podem irradiá-la com suas vidas. Ninguém é “a Palavra de Deus”, mas todos podem ser uma voz que desperta e move a centrar a vivência cristã na pessoa de Jesus Cristo.
Diz-se que o mundo atual está se convertendo em um “deserto desolador”, mas a testemunha da luz revela que experimenta algo de Deus e do amor, experimenta algo da “fonte” e sabe como acalmar a sede de felicidade presente no interior de cada ser humano.
A vida está cheia de pequenas testemunhas da luz: são pessoas de fé com a marca da simplicidade, da humildade, conhecidos somente em seu entorno; pessoas entranhavelmente boas e transparentes, pois vivem a partir da verdade e do amor. Elas “aplainam o caminho” para Deus. São o melhor que temos na Igreja.
Há vidas que não dizem nada; há vida silenciosas, mas que dizem muito. Há vida anônimas, mas que inquietam. Há vidas cujo silêncio desperta interrogações. Há vidas que são palavras e atos em favor da vida.
Que maravilhosas são essas pessoas que, sem fazer muito ruído, são capazes de questionar as vidas e os corações dos outros. Há aquele que fala muito e não diz nada. Há aquele que apenas tem “nome” e sua vida questiona o resto. Há quem passa sem fazer ruído, mas sua passagem desperta curiosidade.
João Batista, a partir do deserto, deixa transparecer sua identidade na relação com um Outro que não é conhecido por todos. “No meio de vós está Aquele que vós não o conheceis”.
O Batista fala de uma presença velada que não é fácil descobrir; ele é a memória daqueles que custam reconhecer a presença de Jesus. Precisamente toda sua preocupação está em “aplainar o caminho” para que aquelas pessoas pudessem crer n’Ele.
Essa dificuldade permanece hoje. Mas as palavras do Batista estão redigidas de tal forma que, lidas hoje por nós que dizemos ser cristãos, provocam perguntas inquietantes. Jesus está no meio de nós, mas, nós o conhecemos de verdade? Comungamos com Ele e com a causa do Reino? O modo d’Ele ser e viver nos seduz?
Muitos cristãos se limitam a seguir uma religião, a realizar alguns ritos vazios, a cumprir algumas devoções estéreis e que não tem impacto no modo de ser e viver. São inúmeros aqueles que não tem Jesus como referência inspiradora e nem tem significado algum em suas vidas. No melhor dos casos, o único que lhes interessa é a doutrina, a moral e os ritos oficiais para alcançar uma segurança externa. E isto acaba “ocultando” a pessoa de Jesus.
Talvez, esteja aqui a maior incoerência do cristianismo: são tantos homens e mulheres que se dizem “cristãos”, em cujo coração Jesus está ausente. Não o conhecem, não vibram com Ele, não se sentem atraídos e seduzidos por Ele. Jesus é uma figura inerte e apagada. Está mudo. Não lhes diz nada especial em suas vidas. Suas existências não estão marcadas pelo projeto vital de Jesus.
O mundo de hoje e a Igreja precisam de cristãos que sejam “testemunhas da luz”, que ajudem a aplainar os caminhos que conduzem a uma identificação profunda com Aquele que sempre está presente e que nem sempre é reconhecido. Cristãos, cujas vidas anônimas e sem necessidade de dizer muitas coisas, inquietam e despertam interrogações nos outros.
Vivemos imersos num oceano de luz; carregamos dentro de nós a força da luz. Ela sempre está aí, disponível; basta abrir-nos a ela com a disposição de acolhê-la e de fazer as transformações que ela inspira.
Pelo fato de ser benfazeja e criadora, a luz nos permite dizer com o poeta Thiago de Mello, no meio de impasses, ameaças e conflitos que pesam sobre nossa vida: “Faz escuro, mas eu canto”.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desatando os originais recursos e possibilidades de humanidade que o habitam. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”. A vida inspirada pela fé é um “caminhar na Luz”.
Somos portadores da “luz nova”; não extinguir essa luz que ilumina dentro. Abafar essa luz é menosprezar a vida da Graça, o tesouro que nos foi confiado no batismo.
Devemos guardá-la ciosamente, velar por ela, valorizá-la pela nossa colaboração, estimá-la e protegê-la, como a chama olímpica que nos levará à vitória.
Despertar a consciência de que o Advento é um tempo especial de densidade mobilizadora, dentro de nós. Revela-se como uma liturgia cósmica: quatro semanas de evolução para a Luz, trazendo à nossa consciência todas as imagens da natureza e da humanidade, através de textos proféticos inspiradores, de anúncio da Vida.
- Deixemo-nos iluminar por Aquele que é Luz; levemos a luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano.