História de fé de uma família tradicional judaica (Tb 2,9-14) e sua relação com os nossos dias
"Respeitar as diferenças é o melhor caminho para unir o povo brasileiro na fé e na família. Caso contrário, seremos como o velho Tobit da novela bíblica", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
O texto sobre o qual vamos refletir é tirado do livro de Tobias 2,9-14. Você já leu esse livro? Conhece a sua temática? Você sabia que o livro de Tobias é um dos sete livros que os judeus não consideraram inspirados, ainda que o seu conteúdo fosse conhecido entre os judeus. A Igreja Católica reconheceu a sua inspiração tardiamente, por volta do ano 382? Daí que ele é chamado de deuterocanônico, isto é, pertencente à segunda lista de livros inspirados, juntamente com Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc e 1 e 2 Macabeus. Todos esses não foram aceitos na Bíblia Hebraica, chamada de TaNaK. Os evangélicos também não têm esses livros em suas Bíblias, porque o monge agostiniano, Martinho Lutero (1483-1546), com a reforma protestante, preferiu retomar a lista curta de livros inspirados dos judeus. Para guardar na memória o nome desses livros, use a nomenclatura Tojusa Eclobarmac. Fácil, não?
Dito isso, passemos ao conteúdo do livro de Tobias, de modo que possamos compreender a passagem de Tb 2,9-14. O livro de Tobias narra a história de uma família judia, da tribo de Neftali, que estava exilada em Nínive, na região da Mesopotâmia, atual Iraque, Kuwait e Síria. Tobit, o pai, Ana, a esposa, e o filho Tobias são as personagens principais dessa novela sapiencial. Tobit era um judeu piedoso que mantinha os costumes da religião judaica, mesmo distante de sua pátria. No exílio, ele fica cego por causa de excrementos de pardais que caíram nos seus olhos. O próprio Tobit, na abertura do livro, fala de suas atitudes como um exemplar judeu: dava esmola aos seus compatriotas; oferecia sacrifícios; praticava a justiça; fazia peregrinações a Jerusalém; cumpria o sagrado dever de dar sepultura aos mortos; pagava o dízimo; não comia comidas impuras etc.
Seu filho Tobias, quando viaja, a pedido do pai, para receber a dívida de um parente, se apaixona pela prima, de nome Sara, vindo a contrair matrimônio com ela. Sara já tinha sido casada sete vezes, mas um demônio, de nome Asmodeu, matava seus maridos antes mesmo das núpcias. O companheiro de viagem, Azarias, era o anjo Rafael disfarçado. Seu nome significa “Deus cura”. Durante a viagem, Tobias foi mordido por um peixe. Tobias matou o peixe e o anjo o aconselhou a conservar o seu fígado e coração. O desenvolvimento da trama, até o casamento de Tobias com Sara, é regado de detalhes novelísticos interessantes. Fígado e coração de peixe são utilizados para espantar o demônio Asmodeu do quarto do casal. As duas famílias exiladas, a de Tobit e de Sara, estreitam laços com esse matrimônio no exílio. Na volta para Nínive, Rafael cura Tobit de sua cegueira, de modo que ele pudesse celebrar também o casamento de seu filho com Sara, com uma grande festa. Outros detalhes estão no livro. Não deixe de lê-lo!
Conforme o relato de Tobias 2, 9-14, a piedade de Tobit era tão grande que ele, já cego, não acreditou na sua mulher, Ana, quando ela chegou em casa com um cabrito doado por um dos seus fregueses de roupas finas tecidas por ela. A sua mulher questiona o marido, colocando em dúvida o seu modo piedoso de ser. Tobit é comparado a Jó, que também era piedoso, tinha tudo e tudo perdeu. Já a mulher de Tobit é como a mulher de Jó, que depois tanto sofrer com o marido, exclamou: “Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morra duma vez! (Jo 2,9)
O livro de Tobias é uma história envolvente de fé, oração e exortação, tendo em vista a manutenção da tradição familiar. Os destinatários do livro são incentivados a manter a identidade de origem dos judeus, seus costumes, sua cultura, suas leis e a sua religião, mesmo vivendo fora da Palestina, na chamada Diáspora.
Em nossos dias, o discurso de defesa dos valores da família e da religião está em voga. Discursos atrelados a um catolicismo tradicional e à política de direita têm suscitado muita polêmica. São importantes os valores que mantêm as famílias unidas? Sim. Ninguém duvida! O triste é a volta do discurso do início do século XX, “Deus, pátria e família”, como se ele fosse a solução para todos os problemas do Brasil, marcado pela fome, miséria e injustiça social. Esse discurso, falseado na defesa de Deus, pátria e família, é de origem autoritária, que não permite a liberdade das pessoas. O Brasil é um país multifacetado. Vários são os brasis. Por aqui, diversas são as interpretações de Deus, da pátria e da família.
Respeitar as diferenças é o melhor caminho para unir o povo brasileiro na fé e na família. Caso contrário, seremos como o velho Tobit da novela bíblica. E aí, então, precisaremos de uma Ana para nos questionar: “Onde estão as tuas esmolas? Onde estão as tuas obras de justiça? Vê-se bem em ti o que elas são!” (Tb 2,14). E eu acrescentaria: Onde está alicerçada a sua fé? Qual é o modelo de Igreja que sustenta a sua fé e vida familiar?