A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 10,38-42.
“Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (Lc 10,41).
No evangelho de Lucas, o caminho de Jesus a Jerusalém marca uma progressiva manifestação do Reino. À medida que avança em seu percurso, Ele vai despertando e preparando seus(suas) seguidores(as) a viver as atitudes indispensáveis de um(a) verdadeiro(a) discípulo(a): a presença compassiva, o espírito de acolhida, o abandono das pretensões de poder, a escuta de sua Palavra... Tais atitudes exigem romper com o ritmo estressante da vida para que todos se coloquem, serena e atentamente, aos pés do Mestre. Esta eleição, que aos olhos da eficiência pode parecer superficial e inútil, é uma condição fundamental para chegar a ser um(a) autêntico(a) discípulo(a).
No seu caminho em direção a Jerusalém, o evangelho deste domingo nos revela que Jesus é recebido por duas irmãs, numa casa de família. Este episódio é algo surpreendente. Os discípulos que acompanham a Jesus desaparecem da cena. Lázaro, o irmão de Marta e Maria, está ausente. Na casa da pequena aldeia de Betânia, Jesus se encontra a sós com duas mulheres; ao hospedarem Jesus, o cotidiano de Marta e Maria se altera por completo; elas precisam modificar os próprios hábitos, os próprios ritmos, reordenar as próprias atenções e ocupações.
Com o “Senhor” em casa, tudo muda; graças a Ele, tudo deve encontrar uma nova “ordem”. Jesus, o peregrino sem casa, está no centro de todas as atenções que uma verdadeira hospitalidade exige.
No entanto, Marta e Maria reagem de maneira diferente no encontro com o Mestre ilustre.
Aqui nos deparamos com duas atitudes diferentes. Uma, de total atenção e escuta; outra, de ansiedade, devido aos afazeres habituais e distração. Maria, sentada aos pés de Jesus, põe-se à escuta das suas palavras; Marta, ao invés disso, fica totalmente tomada pelas tarefas e preocupações.
Acolhendo-O e escutando-O, Maria encontra paz, serenidade, tempo, expectativa; Marta, ao contrário, não consegue encontrar a paz; agita-se, preocupa-se, fica insatisfeita, desconcentrada, em contínua ação. Ativismo sem sentido, sem intenção, sem motivação...
O ritmo da vida cotidiana tinha aprisionado a Marta, tornando-a surda à escuta da Palavra. Ela recebe Jesus, mas não o escuta. Embora Jesus entre em sua casa, ela o deixa à porta.
Maria, ao contrário, compreende bem o projeto de Jesus e rompe com os preconceitos culturais de sua época. Sua atitude é surpreendente pois está ocupando o lugar próprio de um “discípulo”, que só correspondia aos homens. Em lugar de andar atarefada com as atividades domésticas “próprias das mulheres”, “sentou-se aos pés do Senhor e escutava sua palavra”. Este gesto, reservado culturalmente aos discípulos varões, a confirma como discípula. De fato, Maria fez a melhor opção: decidiu aprender a escutar a Palavra e se deixa interpelar pela presença do Mestre.
Marta, ao fadigar-se com o interminável trabalho da casa, questiona a contraditória atitude de Maria e interpela o Mestre para que sua irmã, como mulher, se “coloque no seu devido lugar”. No fundo, o que ela pede a Jesus é que mande sua irmã voltar às tarefas próprias de toda mulher e deixe de ocupar o lugar reservado aos discípulos varões.
Jesus lhe dá uma resposta inesperada: felicita Maria porque acertou em sua eleição e repreende Marta por deixar-se envolver pelas preocupações cotidianas sem atender ao que é mais importante.
Em nenhum momento Jesus critica Marta por sua atitude de serviço, tarefa fundamental em todo seguimento d’Ele, mas a convida a não se deixar absorver por seu trabalho a ponto de perder a paz. E recorda que a escuta de sua Palavra deve ser prioritária para todos, também para as mulheres, e não uma espécie de privilégio dos varões. Jesus não despreza a acolhida de Marta, mas seu modo de trabalhar, nervosa, sob a pressão de muitas ocupações. Ele a alerta, e a todos nós, do perigo de viver absorvidos pelo excesso de atividades, apagando em nós a paz, contagiando nervosismo e cansaço e esvaziando a mística da acolhida.
Tem sido frequente ler este texto em chave dualista, reforçando a superioridade da “vida contemplativa” sobre a “vida ativa”. No entanto, o sentido original do texto está no fato de afirmar a primazia do discipulado acima de qualquer outra atividade. Com efeito, a expressão “estar sentado(a) aos pés de Jesus” constitui a atitude fundamental do “ser discípulo(a)”.
O texto imediatamente anterior, no qual o bom samaritano aparece como um modelo por sua ação solidária, impede interpretar a cena de Betânia como uma desqualificação da ação em favor da contemplação; o contexto chama a atenção diante de uma maneira de agir que não nasce da escuta da Palavra, mas do próprio ativismo compulsivo. A escuta da Palavra inspira e dá sentido a toda ação. Ativismo ou ação insensata (sem sentido) revela autocentramento, comparação, competição, queixa...
Marta se precipita em “fazer” e este “fazer” não nasce de uma escuta atenta da palavra de Jesus, correndo o perigo de se converter em um estéril girar sobre si mesma. Ela se limita, apesar de sua boa intenção, a acolher Jesus em sua casa. Maria, no entanto, o acolhe “dentro de si mesma”, oferece-lhe hospitalidade naquele espaço interior, secreto, e que está reservado só para Ele. Marta oferece “coisas” a Jesus; Maria oferece a si mesma; ela elegeu a “melhor parte”. Marta, ao querer que não faltasse nada ao hóspede importante, acaba deixando passar clamorosamente por alto “a única coisa necessária”.
Podemos pensar que Marta e Maria, mais que duas pessoas, são duas atitudes, duas tendências que todos temos e somos na vida. Muitas vezes vivemos num ativismo desenfreado e acabamos perdendo o fluxo de uma vida mais harmoniosa, integrada e pacificada.
Somos seres de ação, mas também somos seres necessitados de calma, serenidade, contemplação...
Como integrar Marta e Maria, como harmonizar ação e contemplação? Eis a questão!
Segundo o místico Eckhart, trata-se de deixar subir o que vem do fundo, de executar ações assinaladas pelo selo da interioridade e da profundidade.
“Vai para o teu próprio fundo e lá age! Com efeito, todas as obras que aí executas, vivem!”
Não se trata, portanto, de qualquer ação, mas daquela que vem das profundezas.
A ação que tem sabor e frescor de “nascente”: a ação contemplativa ou o “agir tranquilo”.
Nós, hoje, nos deparamos com um ritmo de vida mais agitado que em épocas anteriores. Os meios proporcionados pela tecnologia para economizar tempo também multiplicam as ocupações e acabam fazendo-nos cair num ativismo desenfreado. E o excesso de preocupações nos leva a esquecer do fundamental...
Nervosismo, inquietação, queixa, confusão, sofrimento... nascem sempre como consequência de nossa identificação com o eu separado. Esse é o “pecado original”, porque nessa crença errônea se origina a ignorância radical que se traduz irremediavelmente em sofrimento.
Desse modo, nossa vivência como discípulos(as) se converte em um tímido cumprimento de algumas normas e obrigações religiosas, sem espaço para o silêncio e a escuta da Palavra. Somos exortados, somos bombardeados continuamente com mensagens que nos cobram ser mais eficazes, produtivos e competitivos. Mas, com Marta e Maria, Jesus nos interpela e nos chama a investir no essencial: colocar-nos a seus pés para escutar sua palavra.
Acolher o convite para entrar na própria casa (interioridade), espaço do encontro com o Divino Mestre.
- desvele (tire o véu) as preocupações, agitações, ansiedades ali presentes.
- Seja casa aberta e acolhedora, onde o Senhor vem ao seu encontro para lhe falar ao coração. O encontro com Ele se prolonga no encontro acolhedor com os outros.