18 Novembro 2016
Para nos fazer contemplar o Rei do Universo, a Liturgia nos põe diante da figura de um Rei-Servidor, que morreu na cruz sem honras nem triunfos, mas que nos fez entrar num Reino onde reinam para sempre o amor, a misericórdia e a compaixão
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras da Solenidade de Cristo Rei do Universo, do Ciclo C. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas
1ª leitura: Na presença do Senhor, em Hebron, os anciãos ungiram David rei de Israel (2 Samuel 5,1-3)
Salmo: 121(122) - R/ Quanta alegria e felicidade: vamos à casa do Senhor!
2ª leitura: “Ele nos recebeu no Reino de seu Filho amado” (Colossenses 1,12-20)
Evangelho: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reinado” (Lucas 23,35-43)
Um Rei, mas não como os outros
A Bíblia quer nos dizer o que é indizível. Recorre para isso a diversos gêneros literários: o mito, a poesia, textos legislativos, narrativas... Como o centro visado por esta ciranda de escritos sempre nos escapa, as palavras usadas não guardam mais o seu sentido habitual; nem mesmo a palavra «deus».
Tomemos como exemplo a palavra «pastor». Foi por causa de Davi, a quem Deus havia tirado de trás da fila de ovelhas para fazer dele o pastor de seu povo, Israel, que “pastor” quer muitas vezes designar o rei. Mas que estranho pastor é este!
Todo pastor vive do seu rebanho, mesmo sendo somente um empregado. São as ovelhas que o alimentam e sustentam com sua carne e sua lã. Mas não é o que acontece com o pastor bíblico, cuja figura mais acabada iremos encontrar no capítulo 10 de João: o verdadeiro pastor é “aquele que dá a sua vida por suas ovelhas”, ao invés de viver delas.
O mesmo tipo de constatação se faz necessário para todas as palavras que designam o Messias e a sua atuação, inclusive a palavra «redenção» ou «resgate». O mesmo vale para «Rei» e o seu «trono».
Corremos o risco de ver neste personagem um ser à parte, distante de nós por sua competência e seu poder. Ora, todo o relato bíblico nos encaminha para a figura de um «soberano» sem nenhum poder sobre os seus súditos. E o vemos até mesmo submetido às decisões destes, ainda que elas o conduzam à morte.
Este Rei, que imaginaríamos uma espécie de autocrata cheio de vontades misteriosas, imprevisíveis e desconcertantes, revela-se finalmente como o Servidor. O primeiro se fez o último e o Todo-poderoso veio até nós sob a forma do Todo-fraqueza.
A realeza de Deus, uma metáfora
Sem precisar ater-nos ao fato de a expressão «Cristo-Rei» ser um pleonasmo, devemos notar que a palavra Cristo já designa aquele que recebeu a unção real, a que o final da primeira leitura se refere. Inúmeros são os textos que nos falam da realeza de Deus; por exemplo, o salmo 95 diz que Deus é «o grande rei sobre todos os deuses», ou o salmo 97, do qual as primeiras palavras são: «Iahweh é rei».
É que, então, entre todos os personagens da terra, não se conhecia ninguém com poder maior do que o rei. Era o único cuja vontade se impunha sem discussão possível.
Tem-se ido muito longe com esta metáfora: representa-se Deus sentado em seu trono e sendo servido por uma multidão de subalternos celestes. Ele está «acima de tudo» e de todos.
Temos dificuldade em ir além desta metáfora, e aceitar o quão importante é reconhecer que a «lei» divina, a lei do amor, seja preferível a qualquer decisão dos poderes humanos.
Esta «realeza» de Deus se exprime e toma forma em Cristo, o «Verbo de Deus», esta Palavra criadora que, em obra desde sempre, ganha corpo ou, por assim dizer, superfície, na pessoa de Jesus.
Com Ele, a realeza de Deus, o seu Reino, está entre nós, está em nós. Secretamente, Ela trabalha a humanidade até que esta chegue à sua plenitude no final dos tempos, para além do tempo, para além da história.
Enquanto esperamos, Ele está em trabalho, em nós e entre nós. Em gestação. Estamos longe daquele soberano sentado em seu trono. Deus é Espírito e o Cristo, que se tornou «corpo espiritual», não exerce nenhuma autoridade comparável à dos soberanos deste mundo.
Aliás, nos evangelhos, não vemos Jesus, visibilidade do Deus invisível, forçar a mão sobre o que quer que seja; jamais. Ao contrário, não faltam os «se queres...» e os «quem quiser...».
A "Onipotência"
O tema da realeza de Deus, e por consequência do Cristo, está ligado ao da onipotência. O problema é que muitos cristãos imaginam que tudo o que acontece no mundo e em suas vidas seja resultado de uma intervenção divina.
O tema da «divina providência» não escapa nunca desta confusão. Claro que Deus está aqui, conosco, em tudo o que temos de viver, mas o mundo foi confiado ao homem.
Deus se despojou, de qualquer forma, do exercício da sua onipotência e responde às nossas preces dando-nos o Espírito, para que possamos gerir da melhor forma tudo o que se impõe a nós (ver Lucas 11,9-13). É assim que se estabelece o Reino do Cristo.
Um Reino que, conforme Jesus disse a Pilatos no evangelho de João, “não é deste mundo”, um mundo que funciona segundo a sua própria lógica, ao sabor das liberdades humanas. Para o melhor ou para o pior. Não é deste mundo nem é neste mundo.
Esta impotência do Cristo tornou-se evidente nas zombarias que teve de suportar quando sofreu e morreu na Cruz. Aí se produziu a inversão fundamental que governa as nossas existências: porque Jesus, acolhendo com toda a liberdade estes sofrimentos e esta morte, agora domina, e a Cruz se torna o trono da sua onipotência.
Por ela, conforme repete o Evangelho de João, ele foi «levantado da terra» e, daí em diante, os olhares de todos os que o trespassaram se voltarão para ele. Aprofundemos mais o que acaba de ser dito: por meio de Jesus e de sua existência histórica, Deus interveio de fato no mundo. E com toda a sua onipotência, afinal de contas.
Onipotência esta que é exercida bem aí, onde ela mais é desmentida: em sua morte foi que o Cristo a exerceu em plena luz. E que se fez revelar por sua vitória sobre o que há de pior, a sua vitória sobre a morte, o «último inimigo» (1 Cor 15,25-26). A Ressurreição já está aí.
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