19 Fevereiro 2016
O belo rosto do Cristo e o rosto humilhado do Servo, que não têm mais aspecto humano. Ver "Jesus só" é vê-lo em sua beleza e em sua dor. O segredo que o Senhor impõe aos seus discípulos, de certo modo, não é afastado integralmente: pois, não será a esperança da Ressurreição, antes de tudo, uma vitória secreta da fé?
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 2º Domingo da Quaresma, do Ciclo C. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências Bíblicas
1ª Leitura - Gn 15,5-12 17-18 - Deus fez Aliança com Abraão homem de fé.
Salmo: 26(27) - R/ O Senhor é minha luz e salvação.
2ª leitura: «Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso» (Filipenses 3,17-4,1)
Evangelho: «Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante» (Lucas 9,28-36)
Misteriosa, a oração de Jesus! Pois, faz-se um só com o Pai e ele mesmo é pessoa divina. Mas, nele, Deus se fez passar à natureza e à condição de um ser humano, semelhante a cada um de nós. Nele, a nossa liberdade de seres criados deve escolher fazer-se uma só com a liberdade divina. Há, por isso, um caminho a percorrer, até que retorne à glória de onde veio. Intrigados pelo tempo que passa em oração, os discípulos pedem-lhe que lhes ensine a rezar (Lucas 11). Responde dando-lhes o Pai Nosso.
Será que estas poucas frases resumem as longas orações de Jesus? Sou tentado a crer que sim, mas ainda é preciso alcançar o significado todo destas breves fórmulas. Visam ao resultado feliz das nossas existências; projetam-nos a um final glorioso de nossas trajetórias tão trabalhosas e desconcertantes. Pois eis que esta glória final se inscreve fugidiamente no semblante de Jesus, também em suas vestes e neste corpo humano em que vive para sempre. É a mais perfeita união entre o homem e Deus.
Os três discípulos o entreveem numa espécie de êxtase, do qual não podem captar imediatamente o significado, mas que os desperta e deslumbra. Pedro, esquecendo o caminho que resta por percorrer, quer instalar-se e erguer a tenda, no resplendor da luz divina. Mas a “nuvem escura”, a mesma que acompanhava os Hebreus em sua longa e dura marcha de Êxodo, é que lhe vai responder. À felicidade do versículo 33 sucede o terror do versículo 34. Vinda desta nuvem, cujas trevas contrastam com a glória da transfiguração, a voz de Deus fez-se ouvir, para glorificar Jesus. E este volta imediatamente a ser o Jesus de todo dia.
No horizonte, a Páscoa.
O rosto de Moisés, ao descer de novo a montanha, resplandecia de luz. Pois o mesmo não se deu com Jesus. A luz da transfiguração perdeu-se na nuvem e, dali em diante, ficou visível apenas para a fé na Palavra que acabara de designá-lo como Filho. Só furtivamente fora revelado como a luz do mundo, como a luz que brilha nas trevas das nossas vidas, mas que são trevas que não podem ser detidas (ver João 1,1-14). Acabamos de fazer alusão a Moisés. Justamente, ei-lo aqui na montanha, com Elias. Estes dois homens representam a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias), ou seja, tudo o que, na Bíblia, comanda a história.
Falam com Jesus do «Êxodo que ele deveria cumprir até Jerusalém». De diversos modos, a Escritura inteira é preparação e imagem da Páscoa do Cristo. É que toda a história humana caminha para este desfecho, do qual ainda esperamos a última revelação, expressa na Bíblia pelo tema da volta de Cristo. Não esqueçamos que o relato da transfiguração está enquadrado entre os dois primeiros anúncios da Paixão e que o ponto de partida para Jerusalém e para a Páscoa é mencionado nas primeiras linhas do capítulo seguinte.
A luz que inunda Jesus na montanha é profética, com respeito à sua ressurreição. Por isso é que, sem dúvida, na versão de Mateus (17,9), Jesus diz aos três discípulos: «Não conteis a ninguém essa visão, até que o Filho do homem ressuscite dos mortos.» Em sua segunda carta (1,16-21), Pedro falará da transfiguração como do fundamento de sua fé. É que o Cristo ressuscitado não emitia nenhuma luz e ficou difícil identificá-lo: não se podia reconhecê-lo imediatamente.
Pedro, Tiago e João foram chamados juntos, quando ainda eram pescadores de peixes. Foram os três primeiros discípulos. Sem hesitação alguma, deixaram os seus barcos, as suas redes e o seu pai. Os três estão juntos na transfiguração e nós os encontraremos de novo juntos no Getsemani. Vimos que, ao serem chamados, estavam ocupados com outra coisa, enquanto toda a multidão escutava Jesus. Na transfiguração como em Getsemani, adormecem; o que é uma maneira de se ausentar. É verdade que, nos dois casos, era noite. Mas a noite não é somente uma consequência da rotação da terra.
Na Bíblia, é uma alusão às trevas que cobriam o abismo do nada antes que Deus tivesse criado a luz, separando-a das trevas, para dar lugar ao primeiro dia. O sono noturno é uma imagem da morte: noite dos sentidos, noite da inteligência, noite do espírito. Os três discípulos retiram-se da marcha da história e do itinerário da salvação da humanidade. Eles, no fundo, retornam ao nada original. Mas é aí que a luz vem visitá-los.
Em Lucas 24,9-12, a mensagem das mulheres que tiveram a coragem de ir até o túmulo que haviam encontrado aberto e vazio, é que irá despertá-los das trevas a que estavam aprisionados desde o Getsemani. O que aconteceu com estes três apóstolos é típico do que acontece com todos nós. Há momentos privilegiados em que, com frequência sem qualquer aviso prévio, vemos tudo claro. É quando a luz nos inunda! Mas, um instante depois, recaímos nas trevas da incompreensão. É então que, com os olhos fechados, temos que escolher acreditar nas palavras que ouvimos e que nos designaram este Jesus como sendo o Filho de Deus.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Jesus em sua beleza e em sua dor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU