Por: André | 25 Outubro 2013
O fariseu acredita que é por si mesmo, por suas boas obras, que ele se justifica e se salva. No limite, ele não tem necessidade dos outros, nem de Deus. [...] O publicano não tem nada do que possa jactar-se e dar graças a Deus. Em sua lucidez, só pode implorar o perdão de Deus. O publicano não se compara com ninguém; ele permanece aberto e acolhendo a misericórdia de Deus e confia nesse Deus que salva e que torna justo; caso contrário, ele não teria ido ao Tempo para rezar.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 30º Domingo do Tempo Comum – Ciclo C do Ano Litúrgico. A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Eclo 35,12-14.16-18
Segunda leitura: 2 Tm 4,6-8.16-18
Evangelho: Lc 18,9-14
Eis o texto.
Quem faz parte do Reino de Deus e quem se exclui dele? A questão nos é colocada há três semanas. É do Reino aquele ou aquela que sabe voltar atrás para tomar um outro caminho, como vimos há duas semanas. É do Reino também aquele ou aquela que sabe rezar comprometendo-se a realizar o que está pedindo na oração, como vimos no domingo passado. E, hoje, podemos dizer que é do Reino aquele ou aquela que é capaz de se reconhecer pequeno, pobre, limitado e que não busca salvar a si mesmo, mas se deixa salvar por Deus, numa atitude de fidelidade confiante, perseverante e humilde. Mas que mensagens podemos tirar da Palavra de hoje?
1. A justiça não é um privilégio
A parábola de Lucas sobre a oração do fariseu e do publicano dirige-se a todas e todos aqueles que acreditam que a justiça é um privilégio; de sorte que aqueles e aquelas acreditam que são justos desprezam necessariamente os outros que não o são: “Contou ainda esta parábola para alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros” (Lc 18,9). E, portanto, desde sempre, sabemos que a justiça é para todos, sem exceção. Chega inclusive a ser o primeiro valor de toda a Bíblia. Vem mesmo antes do Amor, porque, do contrário, como podemos amar alguém se somos injustos com ele?
No Oriente antigo, cabia aos soberanos aplicar a justiça para todos. O rei devia tomar a defesa das categorias sociais desfavorecidas. Se tinha apreço à sua honra real, devia fazer todo o possível para que não houvesse pobres em seu país. Não se tratava de uma justiça de equidade ou de nivelamento por baixo, mas de uma justiça que privilegiasse e salvasse todos aqueles e aquelas que são vítimas da injustiça. É isto que ensina Ben Sirac, o Sábio, na primeira leitura de hoje, em seu ensinamento aos jovens da burguesia de Jerusalém, no segundo século antes da nossa era: “O Senhor é juiz que não faz diferença entre as pessoas. Ele não dá preferência a ninguém contra o pobre. Pelo contrário, atende a súplica do oprimido. Ele não despreza a súplica do órfão, nem a viúva que desafoga suas queixas” (Eclo 35,12-14).
No fundo, se Deus fazia da justiça um privilégio, era, em primeiro lugar e acima de tudo, por causa daqueles que sofriam a injustiça; ele amava particularmente o oprimido, o órfão e a viúva, porque eles eram pobres e eram incapazes de encontrar advogados que defendessem seus direitos na sociedade daquela época. Ben Sirac acrescenta: “Ele não desiste, até que o Altíssimo não intervenha para fazer justiça aos justos e realize o julgamento” (Eclo 35,18). É neste sentido que devemos compreender a bem-aventurança de Jesus no Evangelho de Lucas: “Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence” (Lc 6,20). Felizes, sim, porque Deus não gosta de vê-los pobres. Ele decidiu intervir a seu favor. Tomar o partido do pobre é defender a honra de Deus: “A súplica do pobre penetra as nuvens, e ele não sossega, enquanto ela não chegar até lá” (Eclo 35,17). Foi, sem dúvida, o que fez João Crisóstomo, no século IV, dizer: “A oração feita com fervor e no perigo, esta é a oração que sobe até o céu. Falta-lhe certeza? É, pelo contrário, uma grande certeza e uma grande vantagem acreditar que não temos certeza; assim como é uma vergonha e uma condenação acreditar que temos todas as razões para estarmos seguros de nós mesmos. Mesmo que você tenha realizado muitas boas ações, e sua consciência não o culpar por nada, se você achar que tem razões para estar seguro de você, você perderá qualquer benefício da oração. Por outro lado, mesmo se a sua consciência estiver sobrecarregada do fardo de milhões de pecados, por mais que esteja convencido de ser o último dos homens, você poderá falar com Deus com toda a segurança”.
2. A justiça... Uma questão de humildade
Na parábola de hoje, o que Lucas quer mostrar aos cristãos da sua comunidade é que a justiça tem horror ao orgulho e está plenamente em sintonia com a humildade. A oração do fariseu é uma autêntica oração de ação de graças. O fariseu diz que ele deve a Deus o fato de ser o que é. Sem a ajuda de Deus, sem dúvida faria parte dos ladrões, dos injustos e dos adúlteros: “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano” (Lc 18,11). O fariseu agradece a Deus também por lhe dar um zelo que ultrapassa a simples obediência à Lei de Moisés: “Eu jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos” (Lc 18,12). Mas o duplo problema do fariseu é provocado por seu orgulho: 1) Sua justiça torna-se um privilégio que concede a si mesmo ao comparar-se com os outros e ao desprezá-los: “Eu não sou como o resto dos homens... Eu não sou como esse publicano” (Lc 18,11); 2) O fariseu acredita também que é por si mesmo, por suas boas obras, que ele se justifica e se salva. No limite, ele não tem necessidade dos outros, nem de Deus.
A oração do publicano, ao contrário, caracteriza-se por sua humildade: “O publicano, mantendo-se à distância, não ousava sequer levantar os olhos para o céu, mas batia no peito dizendo: ‘Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!’” (Lc 18,13). O publicano, que é um pecador público, mantém-se numa atitude de humilde reserva; ele não tem nada do que possa jactar-se e dar graças a Deus. Em sua lucidez, só pode implorar o perdão de Deus. O publicano não se compara com ninguém; ele permanece aberto e acolhendo a misericórdia de Deus e confia nesse Deus que salva e que torna justo; caso contrário, ele não teria ido ao Tempo para rezar. Sua humildade valeu-lhe a justiça, ao passo que o orgulho do fariseu não mudou sua situação; sua oração é inútil. São João Crisóstomo dizia que era melhor ser pecador e humilde do que virtuoso e orgulhoso. Ele escreveu: “Imagina duas carroças: a uma delas você atrela a virtude e o orgulho, na outra, o pecado e a humildade, e verá que a carroça puxada pelo pecado adianta-se em relação ao da virtude, não em virtude da sua própria força, mas pela força da humildade que está junto”.
3. O fariseu e o publicano hoje...
Se atualizarmos a parábola, estou persuadido de que podemos nos reconhecer nestes dois personagens do Evangelho de Lucas. Quando, em 2006, fui eleito deputado federal por Ottawa, alguns me disseram: ‘Raymond, você sabe que ser deputado é um privilégio. Em Quebec há apenas 75 pessoas que ocupam este cargo’. É verdade que podemos tomar isso como um privilégio, assim como podemos tomar qualquer cargo como um privilégio. Por outro lado, qualquer cargo que exercemos na sociedade e na Igreja, quando somos autoridade, é para servir os outros e defender as pessoas mais vulneráveis que sofrem injustiça. Não é, pois, o cargo que conta, mas o compromisso que dele decorre... E este compromisso deve necessariamente se traduzir em transformação do mundo para torná-lo mais justo e melhor. É o que dá sentido ao cargo que ocupamos e, independente de qual seja este cargo, é preciso reconhecer humildemente os nossos limites e nossas pobrezas, para acolher o outro, os outros, em seus limites e em suas pobrezas. Mas, atenção! A humildade não é humilhação. A última frase do evangelho de hoje pode prestar-se a confusão: “Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,14b). Não se trata de se elevar ou de se abaixar; trata-se simplesmente de se reconhecer tal como somos.
Para terminar, eu gostaria de compartilhar com vocês esta bela oração do francês Michel Hubaut intitulada: Não podemos nos enganar diante de Deus. “Senhor, ajuda-me a compreender que o fundamental não é, em primeiro lugar, querer ser virtuoso, de estar dentro da Lei, nem mesmo de ter boa consciência! Ajuda-me a compreender que o fundamental não é, em primeiro lugar, me sentir culpado ou indigno, mas de me situar na verdade diante de Ti. Senhor, dá-me a simplicidade de acolher, maravilhado, a gratuidade do teu Amor que é minha verdadeira nobreza, minha justiça e minha santidade. Que minhas práticas religiosas sejam sempre abertas à tua graça, à tua vida, aos teus dons. Senhor, que a lucidez sobre o meu estado de pecador nunca me desencoraje, nem me amargure, mas volte o meu coração para a tua misericordiosa ternura. Senhor, dá-me viver a única relação verdadeira, aquela do Amor que me capacita a olhar minha miséria sem me fechar nela, pois sei que tu não cessas jamais de me amar! Senhor, quando eu tomo consciência do teu Amor fiel, sempre oferecido, e do meu Amor fugitivo, sempre frágil, do que eu poderia me prevalecer?”.
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A oração do coração (Lc 18,9-14) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU