Em Nó de víboras, de François Mauriac, Prêmio Nobel de Literatura, "o surpreendente não é a narração que Janine faz das transformações do avô, mas a conclusão à qual chega sobre si mesma e sua família cristã: uma família alimentada pelo ressentimento, cujo coração estava na riqueza, na herança ameaçada, cujos os princípios estavam separados de suas vidas”.
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
“Seu livro evoca lindamente o efeito destrutivo da avareza nas relações humanas e a maneira como nossas convicções podem mudar.” Assim o jornal britânico Daily Mail sintetizou Nó de víboras, livro de François Mauriac (1885-1970), Prêmio Nobel de Literatura, publicado em 1932.
François Mauriac (Foto: Reprodução Cultura Animi)
O que mais surpreende o leitor neste romance do escritor francês não é a confissão de Louis, personagem principal, narrada ao longo de quase toda a obra, escrita com o propósito de ser encontrada pela esposa Isa após a sua morte: o desprezo pela religião, a indiferença e o ódio nutridos por toda sua família e o apego por sua paixão, o dinheiro. Ele próprio não se surpreendia com o que encontrava ao examinar o coração:
“Não creia de modo nenhum que faço uma ideia elevada demais de mim mesmo. Conheço meu coração, este coração, este nó de víboras: sufocado debaixo delas, saturado de sua peçonha, ele continua batendo sob aquele fervilhar. Esse nó de víboras que é impossível desatar, que seria preciso cortar com faca, com espada: ‘Não vim trazer a paz, mas a espada’”.
Surpreendente é o depoimento final, da neta Janine, que viveu o outono inteiro ao lado dele antes da sua morte. Ela foi “a única testemunha da transformação dos sentimentos” do avô “durante as suas últimas semanas de vida”, após três encontros com o pároco de Calèse. Aquele homem “terrível, às vezes até medonho”, “foi tocado por uma luz admirável” após a confissão. Sim, ele que anos antes havia lavrado sua profissão de fé do seguinte modo: “Se vier a aceitar, na hora da morte, o ministério de um sacerdote, desde já protesto, em plena lucidez, contra o abuso de minha debilitação intelectual e física para obterem de mim o que minha razão reprova”.
Era o mesmo homem que não tinha coragem de confessar à esposa que “encontrava alguma serenidade na presença daquele homem de batina!” que morava em sua propriedade, como escrevera no relato:
“Muitas vezes eu me levantava com o sol e descia para respirar o ar frio do amanhecer. Olhava o padre sair para a missa, com passos rápidos, tão absorto que às vezes passava a poucos metros de mim e não me via. Era na época em que você ficava consternada com as minhas zombarias, quando eu me obstinava em mostrar suas contradições com seus princípios… Nem por isso eu deixava de ter a consciência tranquila: toda vez que eu a apanhava em flagrante delito de avareza ou insensibilidade, fingia acreditar que não restava nenhum vestígio do espírito de Cristo em vocês, mas não ignorava que, sob meu teto, um homem vivia de acordo com esse espírito, e ninguém percebia.”
O surpreendente não é a narração que Janine faz das transformações do avô, mas a conclusão à qual chega sobre si mesma e sua família cristã: uma família alimentada pelo ressentimento, cujo coração estava na riqueza, na herança ameaçada, cujos os princípios estavam separados de suas vidas:
“Nossos pensamentos, nossos desejos, nossos atos não se enraizavam naquela fé à qual aderíamos da boca para fora. Com todas as nossas forças, estávamos voltados para os bens materiais. (…) O azar de todos nós foi ele [avô] nos ter considerado cristãos exemplares… Não se zangue: desde que ele morreu, tenho convivido com pessoas que podem ter seus defeitos, suas fraquezas, mas agem de acordo com sua fé, movem-se em plena graça. Vovô, se tivesse vivido entre tais pessoas, acaso não teria descoberto há muitos anos esse porto que só conseguiu atingir às vésperas de morrer?”
O comentário de Janine ao tio Hubert, filho de Louis, lembra a resposta que padre Ardouin dirigiu a Hubert, anos antes, quando questionado se é permitido aos cristãos odiarem os judeus, com a justificativa de “que era preciso odiar os carrascos de Nosso Senhor”. Ao que padre respondeu: “Cada um de nós tinha o direito de odiar um único carrasco de Cristo: ’Nós mesmos, e não outro…’”.