"Compartilhando o apelo de Thomas Merton para vermos nos salmos mais do que literatura edificante, poemas religiosos ou meras palavras de sabedoria que nos indicam caminhos para viver, Francisco acrescenta que eles são muito mais do que isso porque 'neste livro não encontramos pessoas etéreas nem abstratas, pessoas que confundem a oração com uma experiência estética ou alienante. Os salmos não são textos compostos de forma teórica, são invocações, muitas vezes dramáticas, que nascem da experiência viva da existência'".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"Os salmos são o alimento da vida interior. (...) São eles o pão milagrosamente preparado por Cristo para nutrir aqueles que o seguiram ao deserto. (...) Os salmos, apesar da sua antiguidade, devem ser considerados como uma das formas de oração que mais convêm aos homens de todos os tempos." São com essas palavras que Thomas Merton, monge trapista da Abadia de Gethsemani, Kentucky, EUA, no prólogo de "Pão no deserto" (Vozes, 2008), convida os leitores, a partir de suas notas pessoais sobre o saltério, a fazerem dos salmos "mais do que literatura" e, como ele próprio o fez, fazê-lo "nosso Pão no deserto".
O Livro dos Salmos, composto de 150 preces, explicou o Papa Francisco em uma de suas catequeses em 2020, "faz parte dos livros sapienciais porque comunica o 'saber rezar' através da experiência do diálogo com Deus. Nos salmos encontramos todos os sentimentos humanos: alegrias, tristezas, dúvidas, esperanças e amarguras que coloram a nossa vida”.
Compartilhando o apelo de Thomas Merton para vermos nos salmos mais do que literatura edificante, poemas religiosos ou meras palavras de sabedoria que nos indicam caminhos para viver, Francisco acrescenta que eles são muito mais do que isso:
"(...) neste livro não encontramos pessoas etéreas nem abstratas, pessoas que confundem a oração com uma experiência estética ou alienante. Os salmos não são textos compostos de forma teórica, são invocações, muitas vezes dramáticas, que nascem da experiência viva da existência. Para os recitar basta ser quem somos. Para rezar bem, devemos rezar como somos. Não maquiados. Não maquiar a alma para rezar. 'Senhor, eu sou assim'. Ir diante de Deus como somos, com as coisas bonitas e feias que ninguém conhece, mas nós por dentro conhecemos. Nos salmos ouvimos as vozes de orantes de carne e osso, cuja vida, como a de todos, está repleta de problemas, dificuldades e incertezas. O salmista não contesta radicalmente este sofrimento: ele sabe que pertence à vida. Contudo, nos salmos o sofrimento se transforma em interrogação."
O sofrimento e o sentido da vida foram amplamente tematizados e discutidos ao longo da história da humanidade e um de seus expoentes depois da Segunda Guerra Mundial foi o neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl, cuja esposa, pais e irmão foram vítimas do nazismo.
Em "Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração" (Vozes, 1991), ele disse que a reflexão sobre o sofrimento nos campos nazistas não era "especulação inútil sobre a vida". Ao contrário, esclareceu, "essas reflexões eram a única coisa que ainda podia nos ajudar, pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à 'vida', mas também ao sofrimento e à morte. Esse era o sentido pelo qual estávamos lutando!"
A partir da sua experiência clínica e reflexiva, Frankl escreveu sobre uma de suas constatações: a "frustração existencial". "Os pacientes dirigem-se ao psiquiatra porque duvidam do sentido da sua vida ou porque perderam mesmo toda a esperança de o achar", relatou em "Psicoterapia e o sentido da vida: fundamentos da logoterapia e análise existencial" (Quadrante, 2016). Em diálogo com a medicina e a psiquiatria, ele chegou a outra constatação: "Põem-se hoje ao médico problemas que não são propriamente de natureza médica, mas antes de natureza filosófica, e para os quais ele não se acha preparado". Esta situação indica, entre outras coisas, que "a grande doença de nossa época é a falta de objetivo, tédio e falta de significado e propósito" e, portanto, acrescentou, "estou convencido de que uma orientação de sentido é um meio de cura".
O desejo de encontrar e cumprir um sentido na vida, defendeu em sua proposta de uma "psicoterapia a partir do espírito", é a motivação básica dos seres humanos e a própria constatação do vazio existencial pode ser positiva no sentido de impulsionar as pessoas na direção contrária:
"Eu não compartilho a opinião do filósofo Jean-Paul Sartre de que devemos aceitar e suportar, com coragem e heroísmo, a absoluta falta de sentido de nossas vidas. Eu penso que nós devemos, antes, aceitar a nossa incapacidade de reconhecer o sentido maior, em termos intelectuais ou meramente racionais. É isto que temos de aceitar. Isso não impede que acreditemos num sentido maior. Mas levar alguém - um paciente, digamos - a aceitar essa concepção não é papel do psiquiatra, mas sobretudo do teólogo."
Para quem não está familiarizado com os teólogos e com o desenvolvimento teológico em nível científico, um bom começo é seguir as sugestões de Thomas Merton e do Papa Francisco: iniciar pela fonte básica da teologia: os salmos, o Evangelho, a Bíblia.