07 Dezembro 2018
"Com a transformação do clima, mais da metade da população pode estar exposta a ondas de calor extremas e talvez um terço a doenças vetoriais. Buscando alianças com líderes religiosos, os profissionais da área da saúde e outros líderes comunitários devem fazer parte da estratégia para lidar com a mudança climática."
O artigo é de Veerabhadran Ramanathan, Marcelo Sanchez Sorondo, Partha Dasgupta, Joachim von Braun e David G. Victor, publicado por Foreign Affairs, 31-07-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Nos últimos anos, houve uma sequência de notícias terríveis sobre o clima global. Politicamente, o Acordo de Paris de 2015 sobre o clima caminha a passos lentos. Os Estados Unidos anunciaram que vão abandonar o pacto e nenhum outro país entrou no lugar. As emissões aumentaram em 1,4% no ano passado e nenhum grande país industrializado deve cumprir as promessas de controle de emissão do Acordo, o que significa que o mundo está muito distante de alcançar o objetivo de limitar o aquecimento a 2℃ acima das temperaturas no nível pré-industrial. Cientificamente, as notícias são ainda mais severas. Pesquisas recentes em Ciências Climáticas indicam que a probabilidade de acontecerem eventos extremos como ondas de calor, colapso de grandes mantos de gelo e extinções em massa, está se tornando ainda mais drástica. E há cada vez mais evidências de que a mudança climática terá um impacto extremo na saúde humana em um futuro próximo.
Estas duas vertentes apresentam um roteiro para melhorar a situação: as novas pesquisas científicas sobre mudanças climáticas, com suas terríveis ideias sobre o que os humanos estão fazendo com o meio ambiente, poderiam ajudar ativistas e líderes políticos na construção das condições políticas propícias para cortes profundos e dispendiosos nas emissões. Até agora, a maioria dessas pesquisas confirmou a máxima destacada pelo cientista político Aaron Wildavsky décadas atrás: "quanto maior a riqueza, maior a segurança”. Os cientistas acreditavam que, por terem mais recursos, as sociedades mais ricas conseguiriam se adaptar a um mundo mais quente, e os países pobres sofreriam mais. Isso representava um problema político, porque a maioria das emissões advinha de economias emergentes ou ricas. Na verdade, o bilhão de pessoas mais ricas do mundo (em países ricos e pobres) é responsável por mais de 50% das emissões de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa.
Mas novos estudos demonstram que os ricos estão bem mais expostos do que se pensava — principalmente ao calor mortal. Antigamente, os esforços para elaborar políticas de apoio ao combater à mudança climática concentravam-se em argumentos abstratos sobre o lento acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera. Essas preocupações dificilmente tinham um grande impacto político, porque a maioria das sociedades colocava um peso maior em prioridades tangíveis de curto prazo em comparação a efeitos cumulativos cujas consequências seriam sentidas majoritariamente em outros países. Mas hoje há a oportunidade de mudar a política em torno da mudança climática, porque os cientistas têm o argumento de que ninguém está livre de sofrer riscos extremos e imediatos por viver em um planeta mais quente.
Durante décadas, grande parte da pesquisa científica sobre a mudança climática global concentrava-se em identificar a culpa dos humanos. Cientificamente, alcançou-se esse objetivo há muito tempo. Mas politicamente esses fatos ainda não tiveram muito impacto.
A concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumenta em aproximadamente três partes por milhão (ppm) quase todo ano. Nos anos 90, no início do debate político sobre a mudança climática, para muitos cientistas o limite que não poderia ser ultrapassado era de 350 ppm ou até 400 ppm. Hoje, a concentração de dióxido de carbono está em 410 ppm e só aumenta. Com concentrações mais elevadas, houve um aumento das temperaturas. Desde meados de 1900, a temperatura do planeta aumentou em pouco mais de 1℃, sendo que grande parte desse aquecimento ocorreu a partir de 1980. A última década mensurada — 2007 a 2017 — foi a mais quente. A temperatura dos oceanos também está aumentando — fato hoje bem documentado graças a milhares de robôs submarinos autônomos que percorrem os oceanos do planeta fazendo as medições. Em 2016, a Sociedade Meteorológica Estadunidense, que tem grande cautela científica, declarou que o tempo está diferente porque nós modificamos o clima.
Pesquisas recentes em Ciências Climáticas indicam que a probabilidade de acontecerem eventos extremos como ondas de calor, colapso de grandes mantos de gelo e extinções em massa, está se tornando ainda mais drástica.
A antiga ciência da mudança climática global produziu bons pontos de discussão para quem estava convencido. Mas apenas uma pequena parcela das emissões vem de lugares onde as pessoas já estão mobilizadas, como a Europa Ocidental e as comunidades costeiras e urbanas dos Estados Unidos. Convencer quem já se convenceu não resolve o problema global. É aí que entra a nova ciência.
Ao contrário do que acontecia antes, hoje os cientistas têm uma quantidade gigantesca de dados que permite uma avaliação mais conclusiva do aumento do risco de acontecerem eventos extremos com grandes consequências para o bem-estar humano. Apesar das tentativas de virar a maré, como o Acordo de Paris, as emissões continuam aumentando, ou seja, as temperaturas devem subir em pelo menos quatro graus ao longo do próximo século. Um planeta mais quente será um planeta mais extremo. Depois de 2050, 44% da extensão territorial do planeta estará exposto a secas. Isso levará a condições de seca severa em todo o sul da Europa, na América do Norte (principalmente a leste e sudoeste dos Estados Unidos e do México), em grande parte do sudeste da Ásia e na maioria da Amazônia — afetando aproximadamente 1,4 bilhões de pessoas. Entre 30º N e 30º S de latitude, a probabilidade de haver uma seca que perdure por várias décadas chegará a 80%. O risco também é maior de haver precipitação extrema, que, juntamente com o crescimento populacional, trará enchentes a mais dois bilhões de pessoas.
Embora estes cenários, que ainda estão a décadas de distância, não tenham inspirado sérias ações políticas, os cientistas também estão se concentrando em uma dimensão politicamente mais proeminente das mudanças climáticas: o risco imediato para a saúde humana. Há muito tempo os cientistas sabem da associação entre saúde e mudança climática, já que muitos dos poluentes que contribuem para o aquecimento também prejudicam a saúde humana. No topo da lista estão as partículas finas da queima de combustíveis fósseis (óleo diesel e carvão) e biomassa. A fuligem dos veículos movidos a diesel é das principais causas do aquecimento — uma tonelada de fuligem tem o mesmo efeito de 2000 toneladas de dióxido de carbono. O metano é outro superpoluente que também representa uma série de perigos para a saúde: causa aquecimento direto e eleva a quantidade de ozônio existente perto da superfície do planeta, onde os humanos respiram e cultivam alimentos. Fuligem e ozônio, combinados com as partículas de sulfato e nitrato originados pela combustão de combustíveis fósseis, estão entre as principais causas de poluição atmosférica externa e interna, que atualmente é o principal problema de poluição do ar no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, sete milhões de pessoas morrem por ano em consequência desse tipo de poluição, que causa infecções respiratórias, câncer de pulmão, doenças cardíacas, derrames e doença pulmonar obstrutiva crônica. (Para fins de comparação, note-se que a AIDS, a malária e a tuberculose matam menos da metade desse número e os acidentes de carro são responsáveis por menos de 1,5 milhões de mortes por ano.)
Saber desses fatos já levou políticos da China à Califórnia a regulamentarem a emissão de fuligem e poluentes precursores de ozônio. Quanto mais conhecimento, mais ações. A novidade é que os esforços para controlar os agentes poluentes do clima já não são suficientes para as preocupações sobre a saúde humana. Ao vincular diferentes áreas e empregar grandes conjuntos de dados, os cientistas conseguiram mostrar como a mudança climática traz danos diretos à saúde humana. Por exemplo, especialistas têm atribuído à mudança climática catástrofes como as ondas de calor de 2003, na França, e 2010, na Rússia, que mataram cerca de 10.000 e 15.000 pessoas, respectivamente, bem como outras grandes tempestades e também secas como a da Austrália, que tem devastado parte da zona rural. A combinação de calor e umidade é particularmente letal, e ambas tendem a aumentar com o aumento das temperaturas. A probabilidade de condições meteorológicas extremas teve um aumento de dez vezes entre 2011 e 2015, o período de cinco anos mais quente já registrado. Para piorar a situação, doenças transmitidas através de insetos, como a chicungunha e a dengue, devem se proliferar com a expansão dos habitats dos mosquitos.
Esses mesmos modelos usados pelos cientistas para encontrar as impressões digitais das alterações climáticas na saúde humana sugerem que o pior ainda está por vir. A partir de 2050, a probabilidade de cerca da metade da população mundial estar sujeita a verões com uma temperatura média mais elevada do que o verão mais quente já registrado é de 50%, a menos que o mundo aja imediatamente e em grande escala. Até o final do século, nas regiões mais populosas do mundo, há uma chance de 10 a 30% de ocorrerem ondas de calor atingindo mais de 54℃. Além disso, o calor e as secas ameaçam grandes regiões produtoras de alimento no mundo. Os preços dos alimentos devem aumentar em 23% até 2030, fazendo com que os mercados fiquem mais voláteis e haja uma queda de nutrientes no cultivo com as altas temperaturas. Desastres climáticos extremos também têm um impacto negativo na saúde mental. Sob mais de 54℃, sociedades inteiras podem ficar desconectadas. E os países mais ricos não estão imunes a esses efeitos.
A ciência estatística não tem bola de cristal, e o fato de que as previsões climáticas não são precisas, mas probabilísticas, tem sido uma desculpa muito comum para adiar a ação até que os fatos estejam diante dos nossos olhos. Mas a nova pesquisa sobre eventos catastróficos sugere que as políticas públicas devem seguir a lógica oposta. Existe alguma chance (cerca de 5%) de haver um aquecimento global maior do que 6℃ no próximo século. Na prática, isso significa que os resultados que anteriormente eram considerados o pior cenário possível e em alguma medida improváveis podem chegar mais rápido do que se pensa. Esses riscos já não são distantes e abstratos — em partes porque os impactos do clima estão aumentando rapidamente e em partes porque leva tempo para alterar as trajetórias das emissões que causam o aquecimento. Os esforços para impedir esse futuro precisam começar agora. Por pelo menos mais algumas décadas, é impossível saber em que caminho está o planeta em termos de aquecimento — se é ruim ou péssimo. Quando as coisas ficarem claras, grande parte dele já estará instalada e será muito mais difícil de reverter.
Toda vez que há um grande avanço em pesquisa, a comunidade científica acha que a sociedade vai ouvir e começar a agir. Até agora, não foi esse o caso, já que o comportamento político simplesmente não caminha no ritmo do progresso científico. Dessa vez pode ser diferente, mas os cientistas e ativistas terão de pensar e trabalhar de uma forma diferente. Novas pesquisas são uma oportunidade de os cientistas argumentarem sobre a importância de reduzir radicalmente as emissões de forma politicamente persuasiva e cientificamente fundamentada. Há décadas, a mudança climática é considerada um problema de justiça — uma crise criada pelos ricos que afeta desproporcionalmente os pobres. Esse argumento não é errado, mas os ricos também estão se machucando. É possível que os incêndios de grandes proporções que atingiram Sonoma e Napa, as regiões vinícolas mais ricas dos Estados Unidos, tenham maior impacto político do que as crises distantes — assim como as ondas de calor no Japão e os superincêndios na Europa. Para divulgar essas novas descobertas, os cientistas também precisam pensar sobre como influenciam a sociedade. Em particular, deveriam consolidar novas parcerias com grupos que estruturam a justiça e a moralidade nas sociedades, incluindo as instituições religiosas. Este ensaio vem de esforços para repensar os efeitos da mudança climática para o bem-estar humano e a relação da humanidade com a criação, temas abordados pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si’.
O objetivo final dos cientistas continua o mesmo: profundos cortes de emissões. Para isso, será necessário testar e implementar novas tecnologias — por exemplo, para capturar e armazenar poluição de gases de efeito estufa e sistemas para integrar energia renovável à rede elétrica de forma maciça. A energia nuclear também pode ter um novo papel para que haja mais sistemas de energia limpa, mas primeiro é preciso superar a opinião pública e política contrária em muitos países. Porém, as novas pesquisas sugerem que nem mesmo eliminar as emissões será suficiente. Também será preciso remover o trilhão de toneladas de dióxido de carbono, aproximadamente, que já está na atmosfera. Evitar novas emissões ajudaria a reduzir o aquecimento num futuro distante; remover as emissões que já se acumularam teria um efeito mais imediato. Estão surgindo ideias novas e promissoras. Mas uma coisa é associar um código imaginário a modelos climáticos que demonstram que o problema pode ser resolvido; outra é testar e construir essas tecnologias em escala industrial.
Evitar novas emissões ajudaria a reduzir o aquecimento num futuro distante; remover as emissões que já se acumularam teria um efeito mais imediato.
Em longo prazo, será necessária uma grande redução das emissões de dióxido de carbono e outros gases que provocam aquecimento, chegando a quase zero. Mas isso vai levar décadas. Um programa radical de redução de emissões pode chegar zerá-las em valores líquidos em meados de 2050, e até isso seria extremamente difícil. É possível conseguir prevenir mudanças catastróficas usando tecnologias para remover centenas de bilhões de toneladas de dióxido de carbono da atmosfera e programas agressivos de cortes de poluentes de vida curta como a fuligem, o metano e os gases industriais.
Considerando a alta sensibilidade do planeta até mesmo a pequenas flutuações no clima, o que segundo novas pesquisas é mais provável do que se pensava, pode ser preciso alterar o equilíbrio energético do clima diretamente. Estratégias que envolvam a manipulação da quantidade de luz solar que atinge e aquece o planeta, também conhecido como geoengenharia, poderiam ter consequências não intencionais como secas nos trópicos ou a desconsideração da acidificação do oceano que ocorre com o acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera. Também representa um desafio quase impossível de governo: quem deve comandar o termostato planetário? Para a maioria dos cientistas que pesquisam sobre o clima, esses problemas já foram motivo suficiente para tratar a geoengenharia como um tema tabu. Mas a comunidade científica precisa começar a levar essa opção a sério. A American Geophysical Union, o maior órgão profissional de geocientistas do mundo, recentemente aprovou essa posição, embora isso ainda não tenha desencadeado o fomento necessário para a pesquisa.
Finalmente, as sociedades devem começar a se preparar para eventos climáticos cada vez mais frequentes e extremos. Ou seja, proteger ou abandonar áreas costeiras, desenvolver lavouras resistentes a secas e a calor extremo, construir sistemas que possam ajudar os agricultores a fazer previsões de condições meteorológicas extremas e encontrar novas formas de conservar e reutilizar a água. Também será necessário trabalhar muito mais para lidar com as consequências do calor extremo para a saúde, já que algumas delas vão exigir o reforço dos sistemas de saúde pública, bem como reorientar as intervenções e a formação médica.
Saber se adaptar está rapidamente se tornando um ponto central na realidade das alterações climáticas. Com a transformação do clima, mais da metade da população pode estar exposta a ondas de calor extremas e talvez um terço a doenças vetoriais. Buscando alianças com líderes religiosos, os profissionais da área da saúde e outros líderes comunitários devem fazer parte da estratégia para lidar com a mudança climática. Em particular, mesmo quando não compartilham da mesma ideia sobre Deus, os líderes religiosos devem agir em conjunto e individualmente em suas próprias comunidades para preservar a dignidade humana e a nossa casa comum. Já é tarde demais para rapidamente impedir as consequências dos gases que já estão se acumulando. Já estamos atrasados em muitos passos que seriam necessários para isso. O lado positivo, se houver algum, é que reconhecer o brutalidade e crueldade do que se tornou normal ainda pode mobilizar o apoio político necessário para reduzir os estragos das emissões no mundo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Extremos climáticos e saúde global. Novos caminhos para o progresso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU