23 Outubro 2018
"Toda vez que cruzamos com a surpresa da vida que não cede à morte e recomeça a caminhar, experimentamos a ressurreição."
O artigo é de Massimo Recalcati,psicanalista italiano, professor das universidades de Pavia e de Verona, publicado por La Repubblica, 19-10-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como pode ser entendido em termos laicos, o mistério cristão da ressurreição? O corpo de Cristo, que ressurge depois de conhecer a ocultação absoluta de morte, o fim da vida, não é apenas uma imagem consoladora que deveria libertar o homem do peso insuportável de sua finitude, mas pode ser assumido como o símbolo de uma resistência igualmente absoluta da vida contra a tentação da morte.
Não é, afinal, justamente este um dos significados fundamentais da pregação de Jesus? Não tenham medo porque nem tudo é morte, porque o coração da vida é maior que a sombra da morte!
Não por acaso é na palavra antiga Kum que está contido o tema da possibilidade que a vida renove a si mesma justamente onde parece morta, acabada, entregue a um revés fatal. Kum é a palavra-imperativo que, por exemplo, no texto bíblico, Deus dirige a Jonas. Ela sacode o profeta de sua letargia para entregar-lhe uma missão impossível que o obriga a se colocar em movimento. Mas é também a palavra-imperativo que Jesus dirige a Lázaro: Kum! Levanta-te! Anda! Volte a se mexer! Kum é a palavra que reabilita a vida para a vida, precisamente no ponto em que a vida se perde e morre. Aqui está o significado laico da ressurreição.
Devemos tentar ver em Kum a palavra que inspira toda prática humana autêntica de cura. As apostas são decisivas: é possível se levantar, recomeçar, voltar a viver, mesmo quando a experiência da queda, da doença, do fracasso, da catástrofe parecem não ter remédio? Em jogo não está apenas o destino individual da vida, mas o de uma cidade, de um povo, de um ideal, do nosso planeta.
A obra do ‘Grande Cretto’ de Burri que comemora o terremoto de Gibellina ou o One World Trade Center de Daniel Libeskind que evoca o trauma da destruição das Torres Gêmeas, não curam a ferida (incurável), mas sabem como incorporá-la como uma nova forma que permite à vida recomeçar a viver. O mistério da ressurreição, em sua releitura laica, indica não só e nem tanto a possibilidade eventual que a vida possa existir depois da morte, um tema caro a todas as religiões, mas a possibilidade de dar novamente vida a uma vida que parecia perdida, de reconstruir uma cidade destruída, de reencontrar um povo privado de toda forma de identidade, de restituir um rosto humano à vida após à atroz experiência do horror.
A palavra Kum! Levante-se!, é um apelo que exige movimento, relançamento, responsabilidade por um ato que possa reacender a vida. Em jogo está o evento da surpresa que sempre acompanha o "milagre" da saída da vida da zona sepulcral da morte. Não é justamente essa surpresa que está no centro de toda aventura de cura? Podemos pensar em alguns casos clínicos exemplares considerados sem esperança, no curso de uma cura, que ressurgem contradizendo os protocolos e as previsões de prognósticos mais sinistros. Pode acontecer com crianças que sofrem de doenças raras, com jovens acometidos por patologias mentais graves, mas também, em um cenário menos dramático, com estudantes detidos pela instituição escola sem esperança, causas perdidas, irrecuperáveis. Pode acontecer com territórios e cidades que experimentaram - apenas aparentemente irreversível - a catástrofe. Mas, mais geralmente, toda vez que encontramos uma inesperada resistência à morte, toda vez que cruzamos com a surpresa da vida que não cede à morte e recomeça a caminhar, experimentamos a ressurreição.
Como se o significado último da ressurreição coincidisse com aquele da insurreição: não se trata de rejeitar fobicamente a queda ou a doença, o fracasso ou a perda inconsolável, iludindo-se que possa existir um remédio capaz de dissolver a sua presença escabrosa.
Pelo contrário, trata-se de não deixar a última palavra para a morte. É por isso que sabemos que os momentos mais proveitosos para uma vida são aqueles que implicam passagens estreitas, crises, feridas. No entanto, para que o "milagre" da ressurreição possa ser realizado, é sempre necessário um ato de fé que não pode ser confundido com uma simples crença. Não se trata tanto de ter fé em um salvador, mas de ter fé no próprio poder da fé. Quando certa vez perguntaram a Lacan no que consistisse a experiência da análise, ele respondeu, simplesmente, que consistia em oferecer a uma vida perdida a oportunidade de "recomeçar". Bem, a fé no próprio desejo é a condição básica para esse recomeço. Levante-se! É a palavra-imperativo que coloca de novo em pé e em movimento o poder afirmativo do desejo contra a tenebrosa tentação, sempre presente nos seres humanos, da morte.
Porque, afinal de contas, se a ressurreição não pode pretender cuidar a vida de seu destino mortal - não pode liberar a vida da morte – ela pode, por outro lado, libertar a vida do medo paralisante da morte e da sua tentação. Porque o medo da morte, humano quando se trata da proximidade do evento do próprio fim que nos priva da infinita alegria da vida, pode por vezes esconder o medo da vida. A tentação da morte é, na verdade, uma maneira de escapar do desgaste que a vida impõe. Essa é a maior tentação.
Testemunhar que nem tudo é morte, nem tudo é devastação, nem tudo é destinado a acabar, que ressurgir é uma tarefa da vida, é o segredo que a palavra Kum! carrega consigo ao longo dos séculos.
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'Levanta-te e anda' uma ressurreição laica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU