28 Agosto 2018
Há 50 anos, Sr Ghillean Prance, botânico britânico, esteve na Terra Indígena Yanomami e se encantou pelas variedades locais de fungos comestíveis. Em entrevista ao ISA, ele afirma que a comercialização dos cogumelos hoje pode ajudar a manutenção da cultura Yanomami
A entrevista é de Roberto Almeida, publicada por ISA, 23-08-2018.
Um botânico inglês recém-doutorado pela Universidade de Oxford desembarca em Auaris, hoje Terra Indígena Yanomami, Roraima. O ano é 1968, e a comunidade o presenteia com algo que ele nunca tinha visto. Um grupo de mulheres Sanöma, parte do povo Yanomami, volta da roça com misteriosos embrulhos de folhas de bananeira.
Região de Auaris (Fonte do mapa: ISA)
Ghillean Tolmie Prance, que já tinha tudo pronto para começar seu trabalho de taxonomia de plantas, observa com atenção e faz a pergunta que mudaria os rumos de sua pesquisa. O que há dentro dos embrulhos? A resposta veio com uma surpresa: cogumelos, muitos deles.
E para que servem?, continuou.
Sob risadas das mulheres Sanöma, ficou sabendo: são para comer, é claro.
A história de Prance, 81, contada em vívidos detalhes 50 anos depois, ainda emociona o botânico, ex-diretor do Jardim Botânico Real, em Kew, no Reino Unido, condecorado cavaleiro britânico pela Rainha Elizabeth II por serviços prestados às Ciências Naturais.
Participante do XVI Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia, realizado em Belém entre os dias 7 e 10 de agosto (saiba mais aqui), Prance havia desembarcado no Brasil a convite do governo britânico no Ano Brasil-Reino Unido de Ciência e Inovação e participou da Mesa Redonda Gastronomia e Biodiversidade, organizada pelo Instituto Socioambiental e o Instituto ATÁ.
Na mesa, Resende Sanöma e o antropólogo do ISA responsável pela pesquisa sobre os cogumelos Yanomami, Moreno Saraiva, apresentaram a iniciativa de produção e comercialização dos cogumelos: “É um projeto que valoriza o conhecimento indígena ao mesmo tempo em que gera uma alternativa de acesso a bens necessários para o cotidiano das comunidades, como ferramentas de metal para a produção de suas roças”, afirma Saraiva.
Resende Sanöma, por sua vez, é neto de uma das Sanöma que se divertiram com a pergunta de Prance sobre os cogumelos cinco décadas atrás. “Eu lembro de você lá”, disse Resende ao botânico. “Eu era bem pequeno e lembro.”
Laços foram refeitos e Prance descobriu, com satisfação, que o Cogumelo Yanomami, após longa pesquisa intercultural, está sendo comercializado com o objetivo de promover o bem-viver das comunidades. A história da pesquisa está contada no livro vencedor do Prêmio Jabuti em 2017 na categoria gastronomia, Ana amopö: Cogumelos Yanomami.
Até a década de 1960, pesquisadores ainda não tinham feito a conexão entre o conhecimento indígena e o consumo de cogumelos. Foi com o trabalho do botânico brasileiro Oswaldo Fidalgo e Prance, que em 1976 publicaram o artigo “The ethnomycology of the Sanama Indians” (A etnomicologia dos índios Sanöma), que a chave virou e outros estudos se seguiram.
“Prance foi pioneiro nos estudos sobre o conhecimento etnomicológico dos povos indígenas do Brasil. Seus artigos foram as únicas referências durante quatro décadas, até a publicação do livro Ana amopö”, afirmou Noemia Kazue Ishikawa, uma das maiores pesquisadoras do assunto e co-autora do livro, que está à venda na loja online do Instituto Socioambiental (adquira seu exemplar aqui).
Ana amopö: Cogumelos Yanomami, publicado pelo ISA e pela Hutukara Associação Yanomami, foi escrito em sanöma, uma das línguas da família linguística Yanomami, e traduzido para o português. O livro resulta do trabalho de pesquisadores indígenas da região do Auaris, no extremo noroeste de Roraima, na Terra Indígena Yanomami e registra o conhecimento yanomami sobre cogumelos comestíveis, estabelecendo um diálogo com o conhecimento científico.
“Os cogumelos são uma fonte muito importante de proteínas”, disse o botânico. “Temos que acabar com tanto gado”, afirmou.
Como foi sua chegada em Auaris nos anos 60 e como você vê isso hoje, em perspectiva?
Foi uma viagem bastante precária. Usamos um avião dos missionários – eles não estavam lá, o que foi ótimo. Ficamos em uma de suas casas. Foi uma das primeiras comunidades isoladas em que estive. A cada vez que um avião pousava, ele era imediatamente rodeado de índios, muito curiosos para saber quem havia chegado. Estávamos em apenas três pessoas: eu e dois mateiros do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas).
O que aconteceu em seguida?
Eu imediatamente comecei a arrumar os materiais para coletar plantas e não demorou nada até que eu visse eles comendo em suas casas e vi senhoras voltando de suas roças com embrulhos de folhas de bananeiras cheios de alguma coisa. Eram cogumelos, fungos. Perguntei para que serviam e elas disseram: para comer, é claro! Eu nem fazia ideia. Pensei que pudessem servir como remédio ou qualquer outra coisa.
E assim começou sua pesquisa com cogumelos.
Perguntei a elas sobre os cogumelos, disse que eu estava coletando. Perguntei: vocês comem outros além destes? Elas disseram que sim. Pedi para me mostrarem e uma senhora me levou até o campo e foi assim que tudo começou. Um ponto interessante é que eu já havia estado entre os Yanomami antes, por bastante tempo, em outra comunidade. E os guias que saíram conosco para coletar plantas eram homens, então eu nunca havia visto nada sobre os cogumelos, porque o conhecimento relacionado estava com as mulheres. Foi uma grande lição para mim. E acontece que, em Auaris, a avó de nosso amigo aqui [Resende Sanöma] era quem me informava sobre os cogumelos.
E como você se sentiu ao ver Resende Sanöma aqui?
A única palavra que posso dizer hoje para expressar o que vi aqui é ‘saudades’. Porque não temos uma palavra que expresse exatamente isso em inglês. Isso me trouxe tantas memórias maravilhosas das pessoas. Estou bastante feliz em ouvir que hoje, quando eles comercializam alguma coisa, é em seu benefício próprio. Pela minha experiência, e eu vi tantos casos de exploração das pessoas, sejam indígenas, caboclos ou quilombolas, é muito importante ver a ética de tudo isso, que mudou muito. E acho que a etnobiologia tem sido parcialmente responsável por essa mudança, o que é uma coisa boa. Tenho muita esperança que eles [os Yanomami] mantenham sua cultura, porque o pior que pode acontecer a qualquer pessoa é perder a cultura da qual deveriam ter orgulho.
O que você viu de mais interessante nos cogumelos dos Yanomami?
Uma das coisas interessantes da cultura do cogumelo é que eles crescem em troncos apodrecidos. A maioria [dos cogumelos] está em seus roçados. Os Yanomami usam o fogo, mas não limpam a área totalmente – deixam muitos troncos apodrecendo. Não sei se foi inadvertidamente ou planejado, como parte do plantio de bananas.
Qual seu sentimento ao ver um projeto de comercialização dos cogumelos?
Quando vi o pacote de cogumelos pela primeira vez, com o nome Sanöma no rótulo, fiquei muito preocupado. Pensei: quem está explorando as pessoas? Isso porque eu não sabia nada do projeto, vi o pacote em uma loja no Rio de Janeiro. O que me deixou tranquilo foi saber que ele está sendo feito por etnobiólogos e pelo ISA e tem sido supervisionado apropriadamente. Meu único conselho é: mantenha em pequena escala. Não pode cair nas mãos de um grande mercado, ou de uma grande empresa. Small is beautiful, para citar o nome de um livro [do economista EF Schumacher], e isso vai fazer com que a cultura possa ser mantida.
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Pioneiro de pesquisa sobre cogumelos indígenas reencontra os Sanöma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU