16 Agosto 2018
Polícia Civil de Rondônia prendeu um suspeito dos homicídios, mas não localizou os corpos de Flávio Souza, Marinalva Souza e Jairo Pereira.
A reportagem é de Elaíze Farias, publicada por Amazônia Real, 14-08-2018.
No recente relatório anual sobre os assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente em mais de 20 países em 2017, a organização internacional Global Witness citou entre as 57 pessoas mortas no Brasil os nomes dos trabalhadores rurais de Canutama, no sul do Amazonas, Flávio Lima de Souza, Marinalva Silva de Souza e Jairo Feitoza Pereira. Eles desapareceram no dia 14 de dezembro do ano passado, quando realizavam um levantamento fundiário da comunidade Igarapé Araras que lutavam para regularizar junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O relatório da Global Witness foi divulgado no mês passado. O conflito agrário é a principal suspeita para as mortes dos três trabalhadores, segundo a Polícia Civil de Rondônia.
A comunidade Igarapés Araras, localizada à margem da BR-319 (que liga Porto Velho a Manaus), está em terras da União, segundo o Incra. Há uma disputa litigiosa pelas terras com a fazenda Shalom, que pertence ao grupo empresarial Rosiquepolo Holding e Master Holding S/A, do empresário Orestes Fernandes Polo, com sede em Ariquemes (RO). Em setembro de 2017, a Justiça Federal do Amazonas cancelou a pedido da União, do Incra e do Ministério Público Federal do Amazonas, em decisão liminar, três registros de imóveis em nome do grupo empresarial Rosiquepolo Holding e Master Holding S/A que estavam cadastrados no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Canutama.
Dois funcionários da fazenda Shalom, Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota, são apontados pela Polícia Civil como autores das mortes dos trabalhadores rurais e tiveram as prisões preventivas decretadas pela juíza Joseilda Pereira Bilio, titular da Comarca de Canutama. Os dois são acusados de crime de homicídio, segundo a polícia. Mesmo foragidos, Antônio e Rinaldo ameaçaram os moradores da comunidade. Por medo da ação de pistoleiros, várias famílias deixaram a comunidade Igarapé Araras.
“O assassinato é o exemplo mais notório de uma série de táticas usadas para silenciar os defensores, incluindo ameaças de morte, prisões, intimidação, ataques cibernéticos, agressões sexuais e ações judiciais”, diz a ONG Global Witness, em seu site, sobre as mortes dos três trabalhadores.
Oito meses após os desaparecimentos, a Polícia Civil de Rondônia anunciou no dia 03 de agosto que prendeu Antônio Mijoler Garcia Filho. Na quinta-feira passada (09), ele foi interrogado por policiais civis do município de Humaitá, no Amazonas, que se deslocaram até Porto Velho. Rinaldo continua foragido.
“Ele (Antônio) negou qualquer participação direta ou indireta nos desaparecimentos. Entretanto estamos trabalhando continuamente para que todos os envolvidos sejam responsabilizados pelos atos praticados”, disse à Amazônia Real o diretor do Departamento de Polícia do Interior (DPI) do governo do Amazonas, Mateus Moreira.
Embora tenha falado em “desaparecimentos”, Mateus Moreira disse que a Polícia Civil considera que Flávio Lima de Souza, Marinalva Silva de Souza e Jairo Feitoza Pereira estejam mortos, mesmo que os corpos não tenham sido encontrados.
Segundo o policial, o acusado Antônio Mijoler continuará preso na Casa de Detenção Doutor José Mário Alves, conhecida como presídio Urso Branco ou Pandinha. Não há operação prevista para sua possível transferência para cadeia de Canutama ou Humaitá, cidade próxima.
O delegado Paulo Kackiones, da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Velho, responsável pela prisão, disse que Antônio Mijoler foi encontrado no forro de uma residência na capital do estado. “A gente estava no encalço dele em apoio à delegacia de Canutama. Ele foi visto numa residência e passou a ser monitorado pela polícia e aguardávamos o momento oportuno [para prendê-lo]. Ele estava disfarçado, sem bigode, sem barba, usando chapéu. Quando percebeu a polícia perto, tentou se esconder no forro”, disse Kackiones.
Antônio Mijoler foi preso dentro do forro de uma casa em Porto Velho (Foto: Polícia Civil de Rondônia)
A morte dos três trabalhadores rurais e o conflito agrário envolvendo os trabalhadores rurais, a fazenda Shalom e a União também estão sendo investigados pela Polícia Federal a pedido do Ministério Público Federal do Amazonas. Mas a PF disse à reportagem que não poderia dar informações sobre o caso. “Como o inquérito policial está sob sigilo, o fornecimento das informações solicitadas resta prejudicado”, disse a superintendência da PF à reportagem.
O diretor da DPI no Amazonas, Mateus Moreira, disse que as buscas dos corpos foram encerradas no final do ano passado, mas podem ser retomadas conforme o curso das investigações. “A nossa intenção é resgatar os corpos e entregá-los às famílias. As buscas só foram encerradas porque apesar de todos os esforços, com Polícia do Amazonas e de Rondônia, Canil e Corpo de Bombeiros, não foi possível localizar”, disse. Quanto ao outro foragido, Rinaldo, o delegado disse que não há informações concretas onde possa estar.
José Ângelo Lima de Souza, irmão de Flávio, disse à reportagem que a família estava na expectativa da prisão de Antônio Mijoler. Ele aguardava que o suspeito confessasse o crime, quando falou com a reportagem ainda antes do interrogatório do último dia 09.
“Ele pode confessar, mas também pode negar tudo. O nosso objetivo é que se faça justiça. E que a gente pelo menos saiba o que de fato aconteceu. Essa situação tem consumido as famílias. Muita gente está com acompanhamento psicológico. Dá uma sensação de sequestro. Uma situação muito ruim”, disse ele.
Esposa de Flávio, Roseana Souza acredita que com a prisão, serão esclarecidos os fatos ligados ao desaparecimento dos três trabalhadores rurais. Ela contou que quando soube da notícia da prisão de Antônio Mijoler precisou receber atendimento médico por ficar muito abalada.
“Minha pressão subiu. Foi uma surpresa. Achava que não iria conseguir encontrá-lo. O que queremos saber é o que aconteceu. A única coisa que sabemos é que eles não estão mais conosco”, disse ela.
Segundo Roseane, desde o desaparecimento das três lideranças, a comunidade Igarapé Araras vem se esvaziando devido às ameaças e retaliações vindas de funcionários da fazenda Shalom.
“O povo tem se afastado, está com medo. Tem capangas lá dentro, armados, rondando por lá. Não sei quem são. Todas as linhas (lotes) foram abertas por máquinas e não foi a gente”, disse ela.
Flávio Lima de Souza e Marivalva Silva de Souza eram diretores da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade da Região do Igarapé Araras (Asprocria). Jairo Feitoza Pereira era um morador da comunidade que ajudava no levantamento de dados sobre os lotes.
Quando os três desapareceram no dia 14 de dezembro de 2017, os moradores da comunidade Igarapé Araras fizeram buscas por conta própria, sem sucesso, até que comunicaram o desaparecimento à polícia no dia 16 de dezembro.
A área da comunidade Igarapé Araras foi ocupada pelos trabalhadores rurais em 2016 com fins de reforma agrária. Segundo os diretores da Asprocria, a comunidade Igarapés Araras tem 9 mil hectares e 316 lotes de terras. Na época, havia cerca de 300 pessoas cadastradas, segundo Roseane Souza. O número aumentou posteriormente para 318, sendo que a maioria delas saiu em 2018 por receio das ameaças.
Os acusados Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota (Fotos: PC do Amazonas)
Apesar de ser considerado foragido durante quase nove meses, Antônio Mijoler era visto regularmente na fazenda Shalom comandando retirada de madeira ilegal, fazendo ameaças, queimando barracos dos agricultores e expulsando moradores da comunidade Igarapé Araras, segundo relatos de diretores da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade da Região do Igarapé Araras (Asprocria).
Waldiney Teixeira de Souza, diretor da Asprocia, classificou Antônio e Rinaldo como os “capangas” da fazenda Shalom. Ele conta que os dois andavam livremente no local armados e ameaçando os poucos trabalhadores rurais que continuavam pela comunidade.
“Eu tinha casa, tinha roça, mas queimaram tudo. Já saímos. Outros barracos também foram queimados. Os pistoleiros da fazenda humilham as pessoas. Esse cidadão que foi preso (Antônio Mijoler) estava com eles, junto com o Rinaldo. Ele voltou para lá”, disse Souza.
Em um documento enviado ao Ministério Público Federal, em Roraima, no dia 19 de julho passado, Waldiney Teixeira de Souza relata que Antônio Mijoler e Rinaldo foram vistos logo após os desaparecimentos dos três trabalhadores na fazenda Shalom e reiniciaram as ameaças contra os comunitários da comunidade Igarapé Araras.
“Novamente os moradores foram expulsos pelos senhores Rinaldo e Antônio e as benfeitorias feitas pelos moradores novamente destruídas. Eles passaram a abrir estradas na área invadida”, diz trecho da denúncia.
No documento enviado ao MPF, Waldiney Teixeira de Souza diz que os funcionários da fazenda começaram a invadir a área onde estavam localizadas as famílias de trabalhadores rurais no segundo semestre de 2016. No local, as famílias já haviam se instalado após terem conhecimento de se tratar de uma área de União e se organizar para pedir regularização fundiária no Incra como assentamento agrário.
Com o retorno à fazenda após a repercussão do desaparecimento das três lideranças em dezembro de 2017, segundo Souza, os dois reiniciaram as ameaças e pressão contra os moradores. Em maio passado, eles expulsaram um dos agricultores, que registrou um Boletim de Ocorrência na Delegacia de Porto Velho. “Eles humilharam esse rapaz. Coagiram, tiraram fotos dele, disseram que iam matá-lo”, disse.
O BO foi registrado no dia 23 de maio de 2018 na 6º Delegacia de Polícia de Porto Velho. As vítimas [que não serão identificadas nesta matéria por medida de segurança] dizem que no dia 16 de maio foram abordadas por 12 pessoas com armas de fogo. Dois deles interpelaram em tom ameaçador, e eram justamente Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota.
Consta no BO que os dois, Antônio Mijoler e Rinaldo, perguntaram aos agricultores de onde vinham. Quando estes responderem que vinham de um sítio de um assentamento rural, os homens da fazenda perguntaram se eles tinham conhecimento de pessoas desaparecidas no local e informaram que “a área faz parte de um plano de manejo”. Também avisaram para os trabalhadores rurais não voltarem mais ao local e que se os reencontrassem novamente “iriam ter problemas”.
Conforme Souza, este foi apenas um dos boletins de ocorrência feito pelos agricultores relatando ameaças. Todos, segundo ele, foram feitos em delegacias de Porto Velho porque a localização da comunidade, embora seja no sul do Amazonas, é mais próxima da capital de Rondônia do que os municípios de Canutama e Humaitá (cidades próximas uma da outra).
Para Waldiney Teixeira de Souza, a fazenda Shalom é apenas um nome fictício para a prática de extração de madeira ilegal em terra da União.
“Esse local que eles chamam de fazenda não é fazenda. Só tem uma casa. É mais um local que eles botaram para tirar madeira. Está ficando tudo desmatado, a área todinha. O fazendeiro quer mesmo é serrar madeira. Dizem que terra é deles. Essa terra fica na parte da frente. Só que eles querem pegar a área todinha, da parte de trás também, que é onde fica a comunidade Igarapé Araras”, disse Souza.
Preocupado com a retirada de madeira, Waldiney Teixeira de Souza fez uma denúncia escrita à mão e encaminhou à superintendência do Ibama em Rondônia no dia 17 de julho passado. “Vimos por meio desta apresentar denúncia formal de desmatamento, queimadas e retirada de madeira em área da União, intensiva abertura de estradas, causando danos de difícil reparação em meio ambiente e sociedade como um todo”, escreveu ele no documento enviado ao Ibama. A área, segundo Souza, está localizada no KM52, da BR-319, no sentido a cidade de Humaitá (AM).
A reportagem da Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil de Porto Velho para questionar sobre os boletins de ocorrência feitos nas delegacias do estado, mas não obteve resposta.
Indagado sobre o mesmo assunto, o diretor da DPI, Mateus Moreira, disse que os BO sobre fatos ocorridos no Amazonas feitos em Rondônia devem ser encaminhados para as delegacias de Humaitá ou Canutama. Mas ele disse que não há registro desses BO nessas duas delegacias.
“Eles registram as ocorrências em Porto Velho pela facilidade de deslocamentos. Só que essa comunicação de Porto Velho demora um certo tempo para chegar em Humaitá e as vezes nem chega. O pessoal [Delegacia de Humaitá] não tem conhecimento de nenhuma comunicação oficial sobre esses boletins”, disse.
Moreira também foi indagado sobre o retorno de Antônio Mijoler e Rinaldo à Fazenda Shalom, mesmo na condição de foragidos e o fato de sua presença ser facilmente identificada.
“A Delegacia de Polícia de Humaitá fica a 170 quilômetros dessa localidade da fazenda. De Canutama é mais distante. O local é mais próximo de Porto Velho. São 30 quilômetros de distância. Sobre os dois foragidos, se essa informação tivesse chegado até nós, com certeza teríamos nos deslocado para fazer a prisão”, afirmou.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas disse que “possui inquérito civil público em tramitação para apurar possível conflito agrário envolvendo a Associação Comunitária dos Moradores e Produtores Rurais e Agro Extrativistas do Sul do Amazonas (ASPRAM) e o Grupo Master Holding S/A, na região da BR 319, KM 46, sentido Porto Velho Humaitá, no Estado do Amazonas”. Foi a Aspram que fez a primeira denúncia sobre as ameaças.
Segundo o MPF, o procedimento apura os conflitos agrários na região de um modo geral. “Essa apuração reúne representações e informações acerca de diversos casos dessa natureza relatados na região, inclusive o do desaparecimento dos líderes extrativistas em Canutama”.
O MPF disse que “ainda como parte das medidas adotadas no caso, em dezembro de 2017, requisitou a instauração de inquérito policial, atualmente em tramitação na própria Polícia Federal, e vinculado ao gabinete do 9º Ofício do MPF”. O MPF diz que também “há ainda outro inquérito policial requisitado referente ao caso, para averiguar irregularidades na obtenção de títulos na área”.
“A apuração segue em tramitação com a realização de reuniões de diálogo mediadas pelo MPF e diversas requisições de informações ao Incra, à Ouvidoria Nacional Agrária, à Justiça Estadual e à Aspram, entre outros órgãos, no sentido de obter informações atualizadas a respeito das medidas adotadas para solucionar os conflitos em questão e apurar as ameaças relatadas”
O Incra respondeu à reportagem dizendo que “a Superintendência do órgão no Amazonas acompanha o desenrolar do processo judicial para adoção de providências quanto à destinação da área”.
O órgão disse que “a Advocacia Geral da União (AGU) ingressou com ação de cancelamento de matrícula do imóvel Igarapé do Araras sob processo que tramita na 3ª Vara Federal /AM, com concessão de medida liminar, cabendo ainda recurso.”
Também diz que por meio da Ouvidoria Agrária, vem acompanhando o caso, tendo solicitado adoção de providências e prioridade no Inquérito Policial, junto à Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, solicitando urgência no caso.
“Ressaltamos ainda, que o caso segue sob investigação também da Polícia Federal e que a Superintendência do Incra no Amazonas não foi informada da ocorrência de novos conflitos na área.”.
Sobre a denúncia de desmatamento, a assessoria de imprensa do Ibama respondeu que ela foi encaminhada ao Núcleo de Fiscalização de Rondônia para investigação.
A reportagem tentou localizar os representantes do grupo Rosiquepolo Holding e Master Holding S/A, entre eles o empresário Orestes Fernandes Polo, que mantém um clínica médica no município de Ariquemes (RO). A Amazônia Real ligou para empresa dele, mas a atendente informou que o empresário mora em São Paulo e não repassou um contato para a reportagem procurá-lo e nem do advogado de Antônio Mijoler Garcia Filho, funcionário da fazenda Shalom, que está preso por acusação de envolvimento nos crimes.
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Rondônia. Mortes de trabalhadores rurais por conflito agrário continuam na impunidade em Canutama - Instituto Humanitas Unisinos - IHU