03 Abril 2018
“A nova crise mundial que explodiu em 2008 veio nos recordar que ao menos o diagnóstico crítico de Marx sobre a dinâmica de expansão do capitalismo, com suas crises periódicas e com sua carga de miséria, exclusão e violência sistêmica, permanece vigente”, escreve o historiador Horacio Tarcus, diretor do Centro de Documentação e Investigação da Cultura de Esquerdas na Argentina.
“Hoje, Marx voltou. É possível que muitas das perguntas que concebemos a propósito de sua obra nos conduzam (para utilizar a expressão de Toni Negri) para além de Marx. Mas, o que é indubitável é que, ainda no século XXI, seja para decifrar nosso presente, seja para realimentar a utopia de excedê-lo, continuamos dialogando com ele”, avalia.
O artigo é publicado por Clarín-Revista Ñ, 30-03-2018. A tradução é do Cepat.
Os aniversários podem ser inoportunos. É o que aconteceu com o centenário da morte de Karl Marx, lá por março de 1983: não poderia ter coincidido com uma conjuntura menos favorável. Eram os tempos cinzas do comunismo de Brejnev, do golpe de Estado do general Jaruzelski, na Polônia, da apoteose de João Paulo II, mensageiro do anticomunismo internacional. Em uma Paris até pouco tempo atrás símbolo da Revolução, brilhavam na TV alguns “novos filósofos”, filhos desencantados de Maio de 1968. A edição londrinense do semanário Time havia lhes convertido em notícia internacional sob um título de capa que oferecia uma síntese eloquente daqueles tempos: Marx is dead. Os países do Cone Sul ainda estavam submetidos a ditaduras militares. Só recordaram o aniversário do velho Marx algumas revistas semiclandestinas, ainda que no ano de graça de 1983 não faltou no jornal La Nación a nota de um “filósofo” do Processo, Jorge L. García Venturini, sobre o totalitarismo de Marx e seu mestre Hegel desafiando o “espírito do Ocidente”.
Desde então, passaram-se 35 anos. Não me atreveria a afirmar que nosso mundo é muito melhor que o de 1983, mas tudo indica que o bicentenário do nascimento de Marx será celebrado, globalmente, em um clima muito mais propício. O sinal mais visível deste novo interesse por Marx é a notável proliferação contemporânea de reedições de sua obra. Os soviéticos, durante os 70 anos que governaram a Rússia, foram incapazes de concluir o tantas vezes anunciado plano de edição de Obras Completas de Marx e Engels. Hoje, o Internationale Marx-Engels-Stiftung (Fundação Internacional Marx-Engels), com sede em Amsterdã, vem realizando um colossal plano de edição crítica em 120 tomos, o que constitui por sua vez um canteiro extraordinário para preparar novas e mais cuidadosas traduções.
Ainda que o marxismo já não seja “o horizonte intelectual de nossa época” como queria Sartre, nem a “acareação com Marx” segue sendo a pedra de toque de todo pensador, como pretendia Lukács, a produção de obras sobre o pensamento de Marx também conhece, neste início de século, um notável aumento. Sua teoria do valor, sua concepção do fetichismo, sua noção de autonomia do político nas experiências bonapartistas e suas teses sobre a expansão do capitalismo para a periferia inspiraram obras contemporâneas tão diversas como as de Slavoj Zizek, Enrique Dussel, Ernesto Laclau, Álvaro García Linera e Moishe Postone (morreu no dia 19 de março).
E se a última geração de velhos marxistas atualizaram esse paradigma – Immanuel Wallerstein com sua teoria do sistema-mundo, Giovanni Arrighi com sua concepção dos ciclos capitalistas e suas crises - ou o expandiram para novas dimensões do saber – Fredric Jameson para a crítica cultural, David Harvey para a geografia, Mike Davis para o urbanismo, Perry Anderson para a filosofia política, Toni Negri para o nova ordem mundial pós-nacional -, uma nova geração de pensadores radicais – não necessariamente “marxistas” – recuperam certos núcleos teóricos da obra de Marx para pensar novas subjetividades e renovadas formas de resistência.
Conforme destacou Razmig Keucheyan, em Hemisferio izquierda, o marxismo já não é hegemônico no universo do pensamento crítico, mas nem a teoria queer, nem os pós-coloniais, nem os acontecimentalistas, nem os desconstrutivistas, para mencionar algumas variantes, deixaram de dialogar com Marx. O autor de O Capital desceu de seu pedestal para dialogar de igual para igual, como certamente teria gostado, com Spinoza ou com Pascal, com Hannah Arendt ou Carl Schmidt.
O próprio itinerário biográfico de Marx conhece, nestes dias, um interesse imprevisto poucas décadas atrás. Por um lado, há poucos meses, era estreado na Europa O jovem Karl Marx, um filme do haitiano Raoul Peck que obteve críticas favoráveis em todo o mundo. Por outro, há apenas um ano, Penguin lançava Karl Marx. Greatness and Illusion (Karl Marx. Grandeza e ilusão), um volume de quase 800 páginas de notável acuidade e erudição do historiador da Universidade de Cambridge, Gareth Stedman Jones, cuja versão espanhola se anuncia para os próximos meses pela editora Taurus de Madri.
O filósofo alemão Michael Heinrich, formado na escola do marxismo crítico de Elmar Altvater, está há anos preparando uma biografia monumental em três volumes (Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna). O primeiro deverá sair em abril próximo, simultaneamente em vários idiomas e em diversas regiões do globo (os próximos volumes estão previstos para 2020 e 2022). Ninguém poderia esperar estas novas biografias já que não se passaram sequer cinco anos do surgimento da penetrante obra de Jonathan Sperber, historiador da Universidade de Chicago: Karl Marx: A Nineteen-Century Life (2013), traduzida por Galaxia Gutenberg como Karl Marx. Una vida decimonónica.
O subtítulo da obra de Sperber nos dá uma pauta do teor destes novos estudos: Marx já não é tanto o Prometeu de Tréveris - como era intitulada a biografia do alemão oriental Gunter Radczun -, como um homem plenamente inserido no horizonte e no drama de seu próprio tempo. Por mais decisiva que tenha sido sua gravitação sobre o século XX, seus novos biógrafos se esforçam em restitui-lo a suas coordenadas históricas (não por acaso, tanto Stedman Jones como Sperber são especialistas na história do século XIX), O britânico acrescentou a sua biografia um capítulo que se aventura para além de 1883 (retorno ao futuro”), ao passo que o estadunidense manifestou expressamente sua intenção de despejar Marx e o marxismo. Isto não quer dizer que não atenda devidamente o legado deixado por Marx, mas que se abstém de ingressar em um terreno que considera distinto e que, de qualquer modo, merece outra obra: o que é que a posteridade fez com esse legado.
Este esforço em separar Marx do marxismo, com todos os problemas que acarreta, nos oferece, de qualquer modo, uma pista para decifrar este novo interesse por Marx. Os novos leitores e os jovens estudiosos já não são os militantes de partido, nem seus companheiros de rota. Não são os comunistas ortodoxos de outrora, nem os partidários das dissidências comunistas - trotskistas, maoístas, etc. -. O último triunfo póstumo de Marx foi se ver libertado da pesada hipoteca de fins do século passado, quando era considerado o responsável intelectual dos comunismos reais.
O desprestígio destes “ismos”, o desaparecimento dos centros de codificação e edição do “marxismo” (Moscou, Berlim e Pequim), o descrédito dos manuais de “marxismo-leninismo” e das interpretações canônicas que culminavam no triunfo inexorável do comunismo, com seus líderes infalíveis e seus estados-guia, em um primeiro momento, arrastaram Marx e sua obra. No entanto, Marx voltou a emergir dos escombros do Muro de Berlim. Não o mesmo Marx, claro, mas, sim, um pensador mais secularizado, menos sujeito às experiências políticas e os sistemas ideológicos do século XX. Para apoiar esta mutação no imaginário social, basta contrastar a solene iconografia dos velhos retratos do barbado Marx com as irreverentes intervenções a que os jovens desenhistas gráficos submeteram suas fotografias na web, nas revistas estudantis, nos fanzines, nos guias. Este Marx com sua barba tingida de verde, seus olhos maquiados com rímel e seus lábios com carmim dialoga melhor com as jovens gerações do século XXI do que aquele Marx hierático das estátuas.
A narrativa dominante em 1983, segundo a qual o autor de O Capital era sem mais o pai da criatura e que de Marx ao gulag não havia mais que uma linha necessária de desenvolvimento, começou a se enfraquecer em fins do século. As perguntas pelo fracasso dos “socialismos reais” começaram a ser dirigidas à obra do próprio Marx, e ainda que o filósofo de Tréveris não oferecia, como no passado, uma resposta a cada interrogação, o século XX se encerrou com a esperança de “libertar Marx” (John Holloway), de abordar um Marx “sem ismos” (Paco Fernández Buey).
Até mesmo admitindo que a profecia de Marx da emancipação humana havia fracassado, o mundo globalizado de inícios do terceiro milênio era assombrosamente parecido ao descrito por Marx no Manifesto Comunista. A nova crise mundial que explodiu em 2008 veio nos recordar que ao menos o diagnóstico crítico de Marx sobre a dinâmica de expansão do capitalismo, com suas crises periódicas e com sua carga de miséria, exclusão e violência sistêmica, permanece vigente. As reedições de O Capital foram então reativadas em todo o globo, ao passo que o novo best-seller em matéria econômica que veio mostrar a relação entre aumento da taxa de acumulação do capital e crescimento da desigualdade, intitulava-se justamente O Capital no século XXI (Piketty). Assim, ainda que de outro modo, continuamos lendo Marx no século XXI.
Karl Marx morreu em Londres, no dia 14 de março de 1883, com a idade de 65 anos. Hoje, sabemos que aquilo que se dizia em O Prometeu de Tréveris – “os homens do mundo todo choraram sua morte” – era no melhor dos casos uma hipérbole reconfortante. Apenas onze pessoas assistiram seu funeral. Contudo, sua obra certamente alcançou um extraordinário reconhecimento póstumo. Já destacamos isto no início desta nota: a grande imprensa o deu por morto, quando se completaram 100 anos de seu falecimento. E, no entanto, seu espectro – como recordou Jacques Derrida em anos sombrios – não deixou de assediar o capitalismo.
Hoje, Marx voltou. É possível que muitas das perguntas que concebemos a propósito de sua obra nos conduzam (para utilizar a expressão de Toni Negri) para além de Marx. Mas, o que é indubitável é que, ainda no século XXI, seja para decifrar nosso presente, seja para realimentar a utopia de excedê-lo, continuamos dialogando com ele. Voltamos sobre suas análises, seu modo sintomático de ler, suas imagens poderosas, sua promessa de redenção humana. “Não há futuro sem Marx - escreveu Derrida naqueles tempos obscuros -. Sem a memória e sem a herança de Marx”.
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Hoje, Marx voltou. Artigo de Horacio Tarcus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU